José Raimundo Trindade: ‘O império em seu
labirinto’
Gabriel Garcia Márquez
vislumbrou Simon Bolívar na sua busca incessante por uma terra de liberdade,
porém já perdido entre inimigos e a perda inevitável de sua cognição, assim
preso em “seu labirinto”, o general perdeu grande parte de seu vislumbre histórico.
Parece ruim comparar o general Simon Bolívar e sua importância histórica para
América Latina e usá-lo para visualizar a atual perda de cognição do Império
estadunidense, mas o uso metafórico me pareceu interessante.
O objetivo deste texto
é fazer breve análise do processo eleitoral e da crise institucional
estadunidense em três atos. A construção comparativa de um labirinto aparece ao
se observar às saídas possíveis do Império: uma continuidade frenética de
guerras e a inevitabilidade, ao nosso ver, de um projeto fascista. O primeiro
ato ensejará o contexto de crise do imperialismo estadunidense; o segundo
tratará do avanço da disputa entre os novos blocos internacionais,
especialmente o novo bloco da Eurásia (China e Rússia) e o desfalecimento do
dólar; por fim, o terceiro ato tratará dos limites da democracia liberal e os
riscos fascistas e belicistas.
·
A crise prolongada do
império
Os EUA saíram da
segunda guerra mundial como um poder global, imperial no sentido leninista, ou
seja, controle dos fluxos mundiais de capital, base tecnológica e organização
do sistema militar. A rivalidade com a URSS (União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas) se dava curiosamente nos três campos, por mais que no caso da União
Soviética se tratasse de uma forma econômica híbrida (o Socialismo Real).
A URSS possibilitava
fluxos de investimentos (capital fixo e circulante) para um conjunto de países,
assim como base tecnológica e estrutura militar (o Pacto de Varsóvia).
Poderíamos afirmar, com certo grau de exatidão, que a disputa EUA/URSS, era uma
disputa total e de permanente repercussão na reorganização econômica do
capitalismo central e periférico.
A derrota da URSS foi
assim um duro golpe em qualquer projeto atenuador das relações burguesas mais
críticas. Tanto é assim que somente com o fim da URSS e com a queda do Muro de
Berlim em 1989 e 1991, observa-se o avançar definitivo do credo neoliberal.
Mesmo com a sua
vitória dobre o Socialismo real o preço pago pelo imperialismo estadunidense
foi elevado. Para superar a União Soviética se fez necessário recompor o
capitalismo europeu e antigos rivais serem recolocados na disputa concorrencial
capitalista, especialmente Alemanha e Japão. Assim como estabelecer uma ponte
com a China Revolucionária (Henry Kissinger refaz os laços com a China ainda em
1976). Aqui o objetivo era isolar a URSS. Mal sabiam que recriariam o antigo
dragão.
O declínio
estadunidense se deu aos poucos e ainda se dá lentamente, isso pelo controle
quase que monopólico do “dinheiro mundial” e pelas forças de transferência de
valor da periferia capitalista para o centro imperial e, também, pelo último
ciclo tecnológico sobre seu controle, o ciclo das “big techs“, o que, ao
nosso ver, está se encerrando e, provavelmente, inaugurará uma nova e fratricida
corrida tecnológica e militar.
·
A nova disputa de
blocos econômicos e sociais
Eric Hobsbawm (2012,
p. 479) notava que a Rússia, seja como um império czarista ou na forma da União
Soviética tinha sido uma “grande potência desde o século XVIII, sua
desintegração tinha deixado um vazio entre Trieste e Vladivostok”. Da leitura
do historiador inglês parece surgir claramente que o tempo histórico de uma
Rússia frágil seria muito curto e que logo se estabeleceria relações de poder
que retomariam a conflitualidade entre Moscou e as forças do imperialismo
estadunidense. De fato, após o fim da URSS se impôs um forte cerco ideológico e
econômico, inclusive buscando desfazer a Federação Russa, tal como se fez com a
antiga Iugoslávia, à custa de bombardeios que praticamente destruiu Belgrado.
Durante os anos 1990
se interpôs o chamado “princípio do novo século americano”, uma tentativa de
dar continuidade à pax firmada após a Segunda Guerra em torno do poder nuclear
estadunidense, porém a permanência do questionamento russo, mesmo depois da sofrida
derrota da Guerra Fria, tornou o cenário sempre crítico para o capitalismo
bélico estadunidense. No quadro posterior aos anos 1990 seis elementos são
importantes de serem visualizados e tratados:
(i) A afirmação do
dólar como moeda mundial. O sistema financeiro firmado em Breton Woods já tinha
entrado em declínio desde meados dos anos 1960, porém os arranjos comerciais
internacionais e o poder econômico estadunidense mantiveram o dólar como principal
referência nas trocas, inclusive pela ausência de qualquer instituição
monetária alternativa.
O dólar como moeda de
transação possibilita importantes vantagens aos EUA, quatro delas são notáveis:
(a) o poder de
“senhoriagem”, o que implica ganhos com o controle da moeda e que são
apropriados diretamente pelo Tesouro dos EUA;
(b) vantagem na
incorporação de instrumentos financeiros de controle e regulação sistêmica, o
principal é o Sistema Swift, que controla as movimentações e fluxos entre
moedas;
(c) ganhos na paridade
de troca;
(d) base nominal para
emissão dos títulos do tesouro estadunidense, fator chave no financiamento
fiscal e organizador do duplo déficit (fiscal e comercial).
Aspecto que nos interessa aqui se refere ao
custo transacional em dólar, em função dos três elementos acima, que estimula
diversos países a reverem ou adotarem novas opções, claro que esse poder
monetário estadunidense se enfraquece em conformidade aos outros aspectos que
trataremos. Um ponto colateral chave foi que esse poder monetário e de produção
de déficits fiscais e comerciais também encadeou uma crescente
desindustrialização nos EUA, algo que voltaremos depois.
(ii) Nenhuma outra
potência militar rival. Esse ponto comparece com uma sombra pós-guerra do
Vietnam e teve vários episódios críticos. O principal foi a tentativa
malsucedida de desmantelamento do Exército russo, algo que levou já em 2007 há
uma forte reação do Urso euroasiático com sua intervenção no conflito da Síria
e, posteriormente, a retomada da Crimeia. Em 2018 os russos revelam ter domínio
tecnológico de mísseis hipersônicos com tecnologia superior aos EUA e OTAN.
A capacidade interventora militar dos EUA
pressiona seu orçamento fortemente, sendo uma taxa média superior a 5% do PIB,
em parte financiado com dívida pública o que estabelece os contornos da crise
fiscal. Dificilmente uma potência imperial se mantém durante muito tempo
com gastos de guerra tão elevados, por mais que uma parte deste financiamento
venha de transferências da periferia capitalista para o centro.
(iii) Controle sobre
as estruturas de comércio mundial. O centro do financiamento estadunidense,
além do primeiro ponto já tratado, foi seu controle sobre a estrutura de
comércio mundial que envolvia dois aspectos interligados: o controle sobre as
instituições multilaterais (OMC, Banco Mundial e FMI) e, também, dos mecanismos
de imposição e controle das taxas de juros de financiamento mundial. Algo
importante e ilustrativo foi o “choque Volker” que elevou fortemente as taxas
de juros e refez os fluxos de empréstimos rumo ao centro, aliado a quebra
financeira da periferia. Essa arquitetura não consegue mais se manter e o
principal motivo é a ascensão da China e do bloco eurasiano.
(iv) Globalização
reprodutiva do capital. As alterações ainda nos anos 1980 e 1990 foram no
sentido de uma corrida por “menores salários”. A lógica do capital era e é por
uma taxa de exploração maior e estímulo à elevação da taxa de lucro, uma das
consequências foi o “outsourcing global” e uma descentralização industrial
principalmente rumo à Ásia.
A China realiza uma
estratégia diferenciada, primeiramente capta os referentes fluxos industriais,
estabelecendo grandes plataformas/cidades de produção exportadora para o centro
capitalista e, ao mesmo tempo, implementa uma planejada e acurada estratégia
tecnológica de “catching up“, com enorme sucesso na utilização de
políticas fiscais expansionistas, ao lado de uma adoção somente cosmética da
fórmula de valorização cambial e restrição monetária do “Consenso de
Washington”.
O resultado foram
taxas de crescimento econômico acima de 10% na média para quase três décadas
(1980/2010), somente se atenuando, para taxas médias em torno de 5% a.a. no
período 2010/2020. Como resultado disso estava dado o estabelecimento de uma
grande frente de disputa internacional entre o imperialismo estadunidense e um
novo e gigantesco “player” mundial.
(v) Livre fluxo
financeiro. O livre fluxo financeiro visava principalmente a periferia do
sistema, sendo o Brasil, por exemplo, um desses portos centrais para
especulação e ganho rentista. Novamente neste caso a China não caiu na
cantilena e o resultado dos controles que o Estado impôs no caso do país
asiático foi o fortalecimento de Bancos locais e enorme capacidade de
reinvestimento produtivo, o que levou a China a se tornar a grande base
industrial do planeta e estabelecer um plano de globalização própria, a chamada
“Nova Rota da Seda”.
(vi) Estado mínimo
social. A figura de um Estado sem intervenção social foi uma das resultantes da
dupla ideológica central do neoliberalismo: Hayek e Friedman. O problema
conformado desde então foi a elevação da desigualdade social e enorme
concentração de renda, uma das consequências, somada a desindustrialização, foi
o reforço do discurso ideológico contra os migrantes, elevação da xenofobia e
uso destas falácias ideológicas pelo neoliberalismo e pelo fascismo.
Três consequências
deste quadro são resultantes:
(a) a confirmação do
declínio do dólar e da crescente crise fiscal dos EUA;
(b) a emergência de um
superbloco alternativo: tanto militar (Rússia), quanto comercialmente (China),
quanto tecnológico (Rússia e China) e;
(c) o fortalecimento
do discurso xenófobo no interior dos EUA e na Europa.
·
O labirinto
Nos últimos dez anos
os EUA entraram na sua mais profunda crise institucional. Episódios ainda do
governo Obama já marcavam as dificuldades da democracia liberal de dois
partidos, um desses episódios foi a enorme dificuldade de votar o orçamento
requerido pelo executivo, algo que fez com que os títulos estadunidenses fossem
questionados impondo grave risco ao regime fiscal do Império.
A institucionalidade
liberal estadunidense foi firmada ainda logo após a guerra de secessão
(1860/1865), apoiada numa forte interação de interesses dos quatro principais
grupos da burguesia (industrial, agrária, comercial, financeira). A lógica
bipartidária (por mais que existam outros partidos, porém de capacidade
insignificante de influência) repousa num consenso em torno do Estado enquanto
forma social de controle e gestão dos interesses comuns da burguesia,
utilizando aqui a fórmula de Friedrich Engels.
Os fatores já expostos de reorganização do
padrão econômico estadunidense tiveram severa influência na sua capacidade
estatal de gestão das desigualdades sociais internas. Vale notar que o Estado
norte-americano passa por três ordens de crise: a crise fiscal em função do
padrão de gastos bélicos; a crise de representação política, com elevada perda
de reconhecimento dos dois partidos do sistema e, por fim, uma crise de
lideranças, havendo ausência de personalidades carismáticas e propositivas.
A crise fiscal remonta
a década de 1970, sendo que o enfraquecimento da base produtiva (pagadora de
impostos) e o fortalecimento do rentismo neoliberal (não pagadora de impostos)
levou a uma crescente dependência do poder de senhoriagem do dólar e do sistema
de endividamento não reprodutivo. Aspecto chave no atual ciclo refere-se a
busca de ganhos e ativos via “acumulação por despossessão”, impondo novas
rodadas de transferência de riquezas da periferia capitalista para o centro,
sem nenhum tipo de projeto nacional possível em contraposição.
Justamente este quadro
conjuntural estrutural que tornam democratas e republicanos muito semelhantes.
A perspectiva de guerras continuadas (para garantir rentabilidade ao capital
belicista), a pressão sobre os diversos países, até europeus, para garantir
fluxos de transferência de renda para os EUA, inclusive com o uso de sabotagem
terrorista (Nord Stream é um exemplo); expropriação ilegal de fundos de países
classificados, pela burguesia estadunidense, de “países perigosos” (Cuba, Irã,
Venezuela, Rússia, Coreia do Norte); uso espoliativo de sanções econômicas, no
caso da Rússia, por exemplo, foram aplicadas as mais pesadas sanções econômicas
e expropriação de fundos soberanos.
A esse conjunto de
piratarias legitimadas pela ordem do sistema imperialista se somam a
subordinação dependente de um conjunto variado de países que consensualmente
suas burguesias transferem riqueza na forma de pagamento de juros, lucros
expatriados e despossessão de ativos locais, isso tudo fruto de elevada
exploração de suas populações. O caso brasileiro é um excelente exemplo disso,
seja com os pagamentos extorsivos de juros da dívida pública (o segundo maior
do mundo), seja privatizando e transferindo bens públicos para fundos
internacionais (Black Rock, por exemplo). Assim, observamos que não há
diferença sensível entre democratas e republicanos, mesmo considerando uma
figura repulsiva como a de Donald Trump.
O império capitalista
estadunidense se encontra em um labirinto, a exemplo do personagem de Garcia
Márquez. O labirinto é tão complexo que parece prolongar o desfalecimento do
seu prisioneiro, a consequência será uma longa agonia e riscos existenciais não
somente para o povo estadunidense, mas para toda humanidade.
Fonte: A Terra é
Redonda
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