Popularização da comida de terreiro pode
ajudar a vencer o racismo religioso
“No terreiro tudo se
come, o chão come, o orixá come, os búzios comem, os atabaques comem, mas eu me
refiro a um comer simbólico porque há uma troca energética dos alimentos com a
pessoa que está ofertando. Então, você oferta para agradecer, você oferta para
pedir, você oferta como uma forma de cura, são vários os significados do
alimento no terreiro”. É o que nos conta o historiador e professor de História
da Universidade de Pernambuco (UPE), Mário Ribeiro.
Candomblecista,
Ribeiro acompanha de perto a vivência nos terreiros e é um entusiasta da
cultura negra e afrodiaspórica, tendo como um de seus trabalhos o registro e a
documentação da religião de matriz africana.
O encantamento pelos
alimentos que são servidos no terreiro está relacionado com o significado
histórico que a comida tem para os rituais de candomblé e para o processo de
resgate e resistência do povo negro no Brasil, como explica o historiador:
“falar de comida de terreiro é falar de ancestralidade, de oralidade e de
resistência. Várias gerações de vários grupos étnicos foram trazidos na
condição de escravizados do continente africano e que precisaram se reinventar
nesse processo de diáspora. Então, cada casa, cada terreiro, tem suas regras de
preparo dos alimentos, e a gente tem que partir do princípio e reconhecer que
estamos falando de culturas que foram ensinadas através da oralidade,
respeitando a tradição dos mais velhos, e isso é algo ancestral e sagrado”.
No terreiro, o
alimento é um elo entre o humano e o sagrado e tudo aquilo que é preparado tem
uma finalidade espiritual de conexão com a natureza e com os orixás. Por isso,
tudo é feito com muita concentração, cuidado e devoção, e nada é desperdiçado.
O resultado são pratos e iguarias com sabores únicos, alguns são ofertados para
o orixá e outros partilhados entre os irmãos e irmãs da casa, que desfrutam de
momentos de partilha e fartura.
Justamente pela
importância que o alimento tem nessa relação entre o humano e o sagrado que a
cozinha é um lugar divino. Por isso, há uma pessoa que é escolhida conforme as
tradições do terreiro para ser a cozinheira da casa, conhecida como iabassé. A
função da iabassé – designada pelas divindades – é escolher os utensílios, os
ingredientes, cozinhar e também orientar as demais pessoas que estão na
cozinha.
Patrícia Nascimento é
iabassé do terreiro de Mãe Amara e fala sobre a satisfação de exercer essa
função: “é muito importante para gente poder ter esses momentos de trocas com
outras pessoas que chegam ao terreiro para desmitificar esse lugar, para conhecer
de verdade, acabar com o preconceito, e ver que aqui nós somos uma grande
família, onde todo mundo se acolhe e onde ninguém fica com fome”.
A comida tem um papel
importante na história de resistência dos povos africanos trazidos na condição
de escravizados no Brasil, como explica o historiador Mário Ribeiro.”O acarajé
se populariza quando as baianas vão sustentar suas famílias, as baianas só não,
as negras de ganho no período colonial já ganhavam o seu trocado e sustentavam
suas famílias vendendo quitutes. Se você pegar a literatura você vai encontrar
vários registros como esse. Aqui mesmo no bairro de São José, no centro do
Recife, a gente tem registros literários que falam das pretas de ganho que
vendiam peixe frito, passarinha, cocada e até hoje se você passar na rua das
Calçadas você vai ver mulheres negras que vendem acarajé”.
<><> A
popularização da comida de terreiro
Quando mencionamos as
“comidas de terreiro” é impossível não pensar no acarajé, um bolinho feito de
massa de feijão fradinho e frito no azeite de dendê que se popularizou em
pontos turísticos do Brasil, sobretudo no estado da Bahia e no Nordeste.
Porém, com a ascensão
das pautas de enfrentamento ao racismo, sobretudo no que diz respeito ao
reconhecimento das tradições oriundas das culturas africanas, a culinária
afro-brasileira tem ganhado um lugar de destaque em diversos centros urbanos.
Com isso, é possível conhecer temperos e pratos típicos originários das
tradições de matriz africana.
No Recife, os
restaurantes Altar Cozinha Ancestral, da chefe Carmem Virgínia, e o Dun Ajeun,
da chefe Tayná Passos, ambos localizados no centro da capital pernambucana, são
exemplos de empreendimentos que tem por objetivo popularizar a culinária
afrodiaspórica.
Sendo o Brasil um país
com altos índices de racismo religioso onde, de acordo com uma pesquisa
divulgada pela startup JusRacial, um terço dos 176 mil casos de racismo que
tramitaram nos tribunais em 2023 envolvem intolerância religiosa, a relação com
a culinária de terreiro pode apontar um caminho importante para a quebra de
preconceitos engessados na sociedade.
É nisso que Mário
Ribeiro acredita. “A existência de espaços como esses é louvável porque são
espaços políticos para que as pessoas saibam que não estão consumindo só
acarajé, mas também estão consumindo história, cultura. É como demarcar que as
comidas preparadas no terreiro devem circular livremente em outros espaços e
não devem permanecer em um lugar preconceituoso que discrimina as culturas
negras e muitas vezes demonizam coisas sagradas”, defende o historiador.
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Glossário
1. Ilê: se refere a
casa de candomblé e/ou terreiro.
2. Ialaxé: é o título
dado à ocupante do mais alto posto hierárquico do terreiro.
3. Ialorixá: também
conhecida como mãe de santo e mãe de terreiro, é a sacerdotisa do Ilê.
4. Itan: histórias,
relatos, contos da cultura nagô.
5. Iabassé: pessoa
responsável pelo preparo dos alimentos do terreiro.
<><> O
preparo para Xangô
Roupas claras, pés
descalços e pedindo licença. Foi assim que chegamos no terreiro de Mãe Amara, o
Ilê Obá Aganjú Okoloyá, localizado no bairro de Dois Unidos, zona norte do
Recife. Casa de candomblé com tradição Nagô, o terreiro foi fundado em 1945 por
Mãe Amara e hoje é gerido por sua filha, a mestra em cultura popular, cantora e
condutora do afoxé Oyá Alaxé, Maria Helena Sampaio.
A tradição matriarcal
é uma característica marcante do Ilê de Mãe Amara. Com isso, na ausência da
ialorixá do terreiro, quem nos recepciona é a sua filha e ialaxé, Helaynne
Sampaio. Nossa visita ao local é para vivenciar uma experiência prazerosa:
conhecer a cozinha do terreiro e acompanhar o preparo do tradicional Beguiri.
“O patrono do nosso
terreiro é Xangô, então, a minha avó já tinha essa tradição de toda
quarta-feira, que é o dia dedicado a esse orixá, preparar o Beguiri de Xangô,
como uma forma de pedir fartura, prosperidade, abundância, enfim, coisas boas
para a nossa casa”, explicou a Yalaxé.
O Beguiri de Xangô é
uma iguaria preparada com quiabo, castanhas, amendoim, camarão, carne bovina,
azeite de dendê e temperado com pimenta, sal, cebola e cebolinha. O preparo
segue os ensinamentos de Mãe Amara, como enfatiza Helaynne: “cada terreiro tem seu
modo de preparar as oferendas, aqui nós seguimos os ensinamentos que foram
passados pela minha avó, mas se você for em outro Ilê pode ser diferente”.
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As duas iguarias de
predileção de Xangô, segundo o candomblé, são o Beguiri e o Amalá. O Beguiri é
preparado com quiabo, castanha, amendoim, camarão e carne bovina, regado com
azeite de dendê e temperado com pimenta, sal, cebola e cebolinha. Já o Amalá é
uma espécie de pirão feita com farinha de mandioca e água.
Ao chegar na cozinha,
os ingredientes para preparar o Beguiri já estão prontos e postos sob a mesa,
mas ainda falta cortar o quiabo. Um processo que requer toda atenção e cuidado
das filhas do terreiro e é realizado em silêncio. “Nesse momento do preparo do
alimento nós já estamos nos conectando com os orixás, por isso ficamos
concentrados. Esse é um momento de partilha também entre os irmãos e irmãs da
casa, porque é um momento em que nos reunimos para fazer as comidas”, contou
Helaynne Sampaio.
A maneira como o
quiabo é cortado – na diagonal – é outra especificidade do terreiro Ilê Obá
Aganjú Okoloyá ensinada por Mãe Amara. As partes do legume que não são
utilizadas no prato são reservadas e depois atiradas sob o telhado da casa
“para trazer prosperidade”, segundo a ialaxé.
Depois do corte do
quiabo, os ingredientes são levados ao forno, o quiabo é o último a ser
acrescentado à panela.
Na cozinha, é possível
observar algumas panelas com o nome de Oxalá. A identificação é necessária
porque os alimentos ofertados a esse orixá não devem ter nenhum resquício de
dendê, como explica Mário Ribeiro: “no candomblé cada orixá tem um alimento específico
e isso é definido de acordo com os itãs de cada um. Então, tem orixá que pode
comer dendê, tem orixá que não come. Por exemplo, Xangô é um orixá das comidas
servidas quentes com muito dendê, já Oxalá come comidas brancas, como inhame,
banana e melão. Cada orixá tem suas especificidades”.
O alerta sobre as
especificidades dos alimentos já foi tema do sambista Toninho Geraes na canção
Preceito: “A comida que é de santo / É pra quem sabe preparar / Sem saber mexer
na coisa / Deu dendê pra Oxalá”.
O Beguiri tem um sabor
bem marcante e faz jus à “comida quente” que deve ser ofertada a Xangô. As
texturas do quiabo junto com a castanha e o amendoim são bem marcantes e o
dendê junto com a pimenta trazem o vigor acompanhado da leve ardência.
Fonte: Marco Zero
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