Espelho, espelho meu… As rixas sobre o que
é e o que deveria ser o Brasil
No dia 9 de abril, o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) causou o início de uma
curiosa discussão nas redes sociais: publicou o mapa-múndi com o Brasil no seu
centro. Alguns gostaram por considerá-lo decolonial, já outros o viram como uma
aberração por ir contra as cartografias consagradas do nosso planeta. Ainda que
possa ser tido como um factoide diante de graves problemas econômicos, sociais
e climáticos, a discussão revela bastante a respeito da percepção dos
brasileiros sobre si próprios, o país e a sua relação com o mundo.
Em 1943, Joaquín
Torres García fez um desenho da América do Sul invertido de acordo com os
padrões cartográficos. Hoje em dia, é um desenho bastante apreciado pela
esquerda. Não por coincidência, as críticas ao mapa com o Brasil centralizado
vieram da direita, associando o mapa a uma suposta “falta de noção” por querer
tornar o Brasil um país central, quando, na realidade, teria um papel
periférico. Os que o elogiavam seriam lunáticos ou, na realidade, seriam os que
o criticavam os afetados pelo complexo de vira-lata (expressão feliz de Nelson
Rodrigues para um sentimento de inferioridade brasileiro, um narcisismo às
avessas)?
A discussão
superficial sobre o mapa revela labirintos discursivos que nos mostram
concepções de identidade, desejos e perspectivas morais sobre o futuro. As
rixas sobre o que é e o que deveria ser o Brasil não são de hoje. Desde o
século XIX, com a independência, tem-se discutido as questões do país e as
possíveis maneiras de resolvê-las. E as sugestões de como resolvê-las estão
pautadas por concepções sociais e morais: ou seja, estão assentadas sobre
análise a respeito da realidade, mas também possuem preferências éticas.
Diagnóstico e prognósticos são, portanto, duas facetas que se complementam
quando se pensa sobre a sociedade brasileira.
A séria discussão
sobre as mazelas do país gerou visões bastante pessimistas tanto no senso comum
quanto nas discussões intelectuais, acadêmicas e políticas. Quais seriam os
males que impediriam o Brasil de realizar as suas capacidades? E uma vez
diagnosticado o problema, qual seria o projeto mais adequado para resolvermos
os problemas sociais e realizarmos nossos potenciais a contento? Novamente, as
respostas divergiram enormemente. Evidentemente, esse movimento não é neutro,
não é desprovido de concepções morais de sociedade e variaram da direita à
esquerda.
As sugestões sobre em
quem deveríamos nos inspirar, desde o final do século XIX e durante o século
XX, alternaram entre Europa e Estados Unidos, com algumas poucas vozes que
defendiam uma organização própria, sem cópias. Dessa forma, a discussão também
dizia respeito à autonomia nacional: (i) teríamos a capacidade de nos
inventarmos como sociedade, (ii) devemos ter bons padrões já consolidados para
nos inspirar ou (iii) teríamos que importar os modelos bem-sucedidos? Sabendo
que existe uma grande predisposição a aceitar os modelos sociopolíticos e
econômicos norte-americanos como objeto de desejo a ser implantado por aqui,
perguntamo-nos: será que o brasileiro médio efetivamente aceitaria os motivos
éticos e as disputas sociais que movem a sociedade dos Estados Unidos como
louváveis?
• Narciso às avessas
Com olhos voltados
para a Europa e para os Estados Unidos, nossos intelectuais estiveram
frequentemente interessados em nossas ausências: falta de sociedade civil, de
órgãos representativos, de riquezas materiais, de integração política, de
urbanidade, de indústria, de trabalhadores brancos…
O Brasil independente
nasceu de um processo político todo próprio: quase nada teve de nativismo
anticolonial. Nossa geração da Independência era a mesma que estava empenhada
no projeto do Império Luso-Brasileiro (ou seja, ao invés da emancipação
política, apostava na criação de um regime político conjugado a Portugal, ao
estilo do Reino Unido).
Projeto frustrado pela
Revolução do Porto, em que os portugueses foram intransigentes na tentativa de
restaurar o pacto colonial com o Brasil à maneira que se configurava antes da
abertura dos portos de 1808. José Murilo de Carvalho demonstra como essa elite
foi homogeneizada em educação e treinamento… em Coimbra. Formados pelas lentes
europeias, muitos dos nossos heróis do rompimento colonial enxergavam a
civilização apenas lá, enquanto aqui, segundo eles, reinaria a “barbárie”.
Maria Odila Dias, em A
interiorização da Metrópole, identifica esse sentimento na elite política
nacional. Separados do restante da população por um abismo, esses homens
uniam-se por interesses materiais, mas também por uma dupla insegurança. A
primeira, uma crise de personalidade: somos mesmo civilizados? A segunda, uma
fobia social. Entre 1791 e 1804, um levante de escravizados no Haiti levou à
abolição da escravatura e à independência do país. Nossa aristocracia rural
temia ser substituída pela repetição desse episódio em terras nacionais. Devido
a esse medo da “barbárie”, muitas das nossas instituições sociais, econômicas e
políticas permaneceram intactas: a monarquia, o tipo de Estado e a escravidão.
Os diagnósticos do
atraso foram diversos. Segundo muitos dos autores, teríamos a herança maldita
da cultura ibérica, que carregávamos graças à nossa má-sorte de termos sido
colonizados pelo país errado. Ou, então, seríamos vítimas de determinismos
geográficos: nosso bioma, relevo e clima tropical impediriam definitivamente o
povoamento, a ocupação territorial e o desenvolvimento econômico. Mas a forma
mais perversa de explicar a tardança brasileira, certamente, foi a que entendia
que a chaga do país era a sua mistura racial.
Eugenistas como
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951) trouxeram para
o Brasil os estudos avant-garde de intelectuais como Arthur de Gobineau
(1816-1882) e Georges Vacher de Lapouge (1854-1936). Em um país altamente
miscigenado como o nosso, esses discursos eugenistas encontraram aqui um espaço
propício e se elaboraram as teses biologicistas de desigualdade de raças.
Os sinais positivos,
obviamente, estariam na população branca, enquanto os negativos, na população
negra e indígena. A mestiçagem, assim, seria um problema: impediria nossa
modernização e democratização. E qual seria a via para a democracia? Arianizar
o país pela mistura do “mestiço superior” com o branco, pelo incentivo à
imigração seletiva, pela exclusão política e, no limite, pelo controle de
natalidade.
• Tupi or not tupi?
Porém, nem só de
desejos de embranquecimento viveram nossos intelectuais: um anseio amplo de
alcançar a “civilização” estimulava suas imaginações. Mas como? Deveríamos
copiar modelos de outros países? Se sim, quais? Dos elogiosos à cópia aos
Estados Unidos, podemos apontar as proeminentes figuras de Quintino Bocaiúva
(1836-1912) e Monteiro Lobato (1882-1948).
O ministro Quintino
Bocaiúva, figura das mais destacadas do golpe republicano, tinha enorme
admiração pelas instituições estadunidenses e defendia seu transplante para o
Brasil, mas não sem tradução. Ela se daria pelo americanismo da constituição
argentina de 1853 e pelo exemplo de presidentes constitucionalistas como
Domingo Sarmiento, Nicolás Avellaneda e José Alcorta, que o ensinavam sobre a
necessidade de um esqueleto conservador, calcado no estado de sítio, para o
corpo liberal federativo do regime. Só assim seria possível controlar as lutas
intestinas do país e consolidar a autoridade republicana.
Enquanto isso,
Quintino Bocaiúva tratava de estreitar laços com o governo norte-americano, que
parecia, por um lado, disposto a reconhecer a república dos Estados Unidos do
Brasil (como ficou alcunhado o país na sua primeira versão republicana), que
imitava sua constituição e sua bandeira, porém, por outro lado, se mostrava
preocupado pela presença militar dentro do novo governo. As potências europeias
de então não faziam qualquer questão de reconhecer o governo comandado por
Deodoro da Fonseca antes que os Estados Unidos da América o fizessem. No final
de janeiro de 1890, a nação da América do Norte reconheceu o governo e percebeu
a funcionalidade da posição subalterna que o Brasil oferecia.
Monteiro Lobato, algum
tempo depois, faria o seu elogio aos “states” (palavra escolhida pelo próprio
Lobato) em sua obra América, escrita após três anos de estadia nos Estados
Unidos. Para ele, a América estadunidense é encarada como uma terra de gigantes.
Da complexa mescla naturalista entre raça, cultura e meio ambiente derivaria a
força espontânea dos norte-americanos responsável pelo progresso natural
daquele lugar, algo muito distinto do que ocorreria em terras tropicais, terras
do excesso e do descontrole. É lá, nos “states”, que está o que interessa. “Um
romance de Alencar ou um Macedo não me acorda coisa nenhuma na alma; já os
livros de Jack London, de Melville e mesmo os de Mark Twain com cenas do
Mississippi bolem comigo”, escreveu em 1932.
Mas havia o outro lado
dessa moeda. Contemporâneo de Quintino Bocaiuva, Eduardo Prado (1860-1901)
destacava a influência nefasta da cópia ao sistema norte-americano. Sérgio
Buarque de Holanda (1902-1982), por sua vez, contemporâneo de Monteiro Lobato,
algum tempo depois faria o mesmo.
Eduardo Prado defendia
fortemente, em especial, a influência espanhola sobre os trópicos, afirmando
que a miscigenação iniciada no período de dominação moura sobre a Península
Ibérica, somada à miscigenação ocorrida já em território latino-americano, teria
a capacidade de criar uma raça capaz de sobreviver no “terrível” meio ambiente
da região. Afirmava que a pretensa inaptidão dos homens miscigenados que viviam
na América em seu tempo era apenas um preconceito ao largo difundido pelos
“homens do norte”.
Seu catolicismo
aparece em sua obra e em sua admiração pelo modo de vida espanhol que havia
chegado à América. Apontava que o catolicismo igualava os homens ao colocar
brancos, negros e mestiços sob o mesmo teto, dentro de uma mesma igreja, dando
o pontapé inicial para o mito que atravessou o século XX e ainda nos acompanha
no XXI: a “democracia racial”. Os Estados Unidos e sua religião pagã, aos olhos
do pensador, transformavam homens em máquinas, desvirtuando um pressuposto por
ele considerado humanista. O Brasil do futuro, em sua versão redentora, deveria
ser monarquista e profundamente católico.
O jovem Sérgio Buarque
de Holanda teve muita influência das ideias de Eduardo Prado. Assim como ele,
Sérgio Buarque observou com atenção as nossas raízes ibéricas, vendo com
melhores olhos as que haviam vindo da Espanha do que as provenientes de
Portugal. Ao concentrar-se mais fortemente no utilitarismo yankee,
exemplifica-o dizendo que nascia da ideia de que a felicidade só poderia ser
alcançada pela simplificação extrema da vida: “o estilo utilitário dos
anglo-saxões de hoje espalha-se por todo o mundo”, queixava-se em fevereiro de
1921. Acreditavam ambos em soluções nativistas de origem ibérica. Não se
poderia imitar algo que não estivesse inscrito em nosso forjar histórico.
• Nacionalismos à brasileira
A história dos nossos
nacionalismos é complexa e demonstra os caminhos tortuosos e múltiplos que as
ideologias nacionalizantes podem tomar. No século XIX, nossa principal
preocupação nacional era antilusitana ou oficial, por parte da Coroa. Os
projetos nacionais se complexificaram, de fato, no século XX.
Um desses projetos
começou a se desenhar aqui já nos anos 1910. Negando os estrangeirismos,
denunciando o copismo e valorizando um suposto realismo analítico, autores como
Alberto Torres (1865-1917), Azevedo do Amaral (1881-1942) e o já citado
Oliveira Viana passaram a afirmar um nacionalismo político pautado na
necessidade de soluções próprias para os problemas específicos do país. Mas
essa concepção organicista, que analisava negativamente o privatismo da
sociedade brasileira, desaguava em um projeto de organização pelo alto da nação
dispersa e amorfa. Construir, pela arte política dos dirigentes, o povo
brasileiro. Coerentemente, nomes importantes desta geração passaram a integrar
o projeto autoritário do Estado Novo em 1937.
Se iríamos copiar,
criar ou praticar a antropofagia se tornou também uma questão estética no
começo do século XX. A preocupação dos modernistas sobre os rumos da arte
estava afinada com uma nova perspectiva sobre os males do Brasil: a partir de
então, entendia-se que talvez o problema do país não era racial ou climático,
mas sim, causado por doenças que afligiam o povo pobre. Cuidar dele passaria a
ser a solução política, entender e enaltecer os seus elementos culturais e
artísticos seria a nova diretiva sociocultural.
Responder o que era o
Brasil passaria pelos nossos rincões, por entender a linguagem, a música, as
artes plásticas do povo até então esquecido pelas elites. Essa perspectiva
animou a esquerda brasileira a partir de então. Quem seria o povo oprimido que
representaria verdadeiramente o brasileiro e que poderia nos redimir das
injustiças capitalistas? O vilipendiado caipira, o pescador, o agricultor, o
sambista, o operário.
Vanguardas
intelectuais posicionadas à esquerda produziram muita cultura com isso. Mesmo
na época da ditadura, como nos conta Marcelo Ridenti no seu livro Em busca do
povo brasileiro, apesar de serem autores odiados pelas elites econômicas, esses
vanguardistas forneceram muito material para os conservadores. Tais vanguardas
enalteciam elementos de identidade nacional, o que não era necessariamente
contraditório com a perspectiva das elites nacionais à direita. É que nas suas
produções artísticas, não podiam encenar seu desejo derradeiro devido à
censura: o fim da propriedade privada dos meios de produção estava interditado.
Diz-se que essa foi
uma das fórmulas encontradas pelos grandes meios de comunicação para lidar com
tais produtores culturais: eles seriam ótimos, mas, devido à ditadura militar,
não poderiam ir além do elogio à brasilidade, pois se falassem de socialização
dos meios de produção seriam censurados. Curiosamente, a cultura do iê iê iê,
amplamente divulgada pela recente, porém já robusta indústria cultural
brasileira, inspirada em padrões estrangeiristas e norte-americanos, era vista
com maus olhos pelas alas militares.
Portanto, havia uma
diferença primordial entre os dois nacionalismos: o nacionalismo tem como
objetivo a revolução ou a ordem? O engrandecimento da imagem do brasileiro
seria para romper com as normas capitalistas ou teria como base o medo dos
distúrbios? Para os grupos à esquerda, tratava-se de apontar as idiossincrasias
locais para transformar o status de país submetido ao imperialismo. Era um
chamado para a insubordinação.
Diferentemente disso,
para aqueles posicionados à direita, o chamado às especificidades brasileiras
tinha como pressuposto mostrar o seu lugar específico (e, talvez, nobre) na
ordenação capitalista e contar com a tutela dos países mais ricos e fortes militarmente.
No golpe civil-militar de 1964, o que mais importou foi o medo com relação às
classes trabalhadoras associadas à pequena burguesia.
O medo das sedições,
que já existia desde o século XIX e atendia pelo nome de haitinização, aparecia
mais uma vez como elemento aglutinador das classes dominantes que renunciavam a
um papel protagonista na sua própria economia para se tornar coadjuvantes e
protegidas pelos grandes monopólios internacionais. Claro, havia também
conglomerados militares que apostavam na necessidade de um país autônomo, não
submetido a uma nação imperialista. Contudo, foquemo-nos nas alas proeminentes
que efetivamente determinaram os rumos da política nacional.
Sob a ditadura
militar, restava encontrar qual seria o lugar específico do brasileiro na
engrenagem capitalista, estando nós resguardados pela segurança oferecida por
um sentido militar dado a esse curioso orgulho patriótico de estarmos submetido
aos Estados Unidos e, por homologia, podermos talvez também ser uma grande
nação. Dessa maneira, se torna compreensível a estranha atitude de um
presidente brasileiro adepto às ideias da extrema direita de bater continência
à bandeira ianque.
O nacionalismo
reacionário do bolsonarismo arquiteta artificialmente um povo, governa
diretamente em nome dele e contra os seus inimigos. Como apontam Christian
Lynch e Paulo Henrique Cassimiro em O populismo reacionário, o discurso bebe,
em sua origem, do reacionarismo olavista. O culturalismo reacionário de Olavo
de Carvalho quer regenerar o que considera como autêntica cultura brasileira. O
Brasil estaria inserido no mundo “ocidental”, esse ocidente essencializado como
a “civilização judaico-cristã” da qual os Estados Unidos seriam o grande
protagonista.
A versão da história
brasileira por ele preferida é a que passa pela ótica da Casa-Grande, pelas
famílias patriarcais de descendência europeia, pelo bandeirantismo reimaginado
como paralelo da Marcha ao Oeste e, é claro, pela ditadura militar brasileira.
O povo, na versão bolsonarista, tem etnia, religião e origem. Daí a
possibilidade de articular como discurso o “patriotismo” e o alinhamento
ferrenho aos Estados Unidos. “O Brasil é tão grande”, é o que afirma, “que
poderia ser os Estados Unidos”.
Este alinhamento ainda
é recortado por outros fenômenos ideológicos e políticos. Há a teologia do
domínio, ou dominionismo, de bases pentecostais e com um grau elevado de
paranoia que defende a transformação da vida civil em uma guerra espiritual,
inclusive no âmbito do controle do Estado. Assim, o alinhamento pode sofrer
algumas variações, sendo mais entusiasta com a presidência de um Donald Trump
do que a de um Joe Biden.
A articulação global
da extrema direita também é, obviamente, essencial para entender a relação de
Jair Bolsonaro e Donald Trump. Dando o devido peso a essas considerações, a
aproximação tem por pressuposto este desejo de ver o Brasil resguardado pela grande
potência da civilização judaico-cristã. Tendo tomado diversas formas, algumas
seculares, encontramos essa disposição em outros momentos de nossos
nacionalismos à direita.
• Espelho, espelho meu…
Há muito do senso
comum que parece ter ficado ao lado daqueles que desejavam a cópia do modelo
norte-americano. Mas será que aqueles que reclamam quando não nos alinhamos aos
EUA (ou mesmo à Europa) gostariam de viver na sociedade com esses outros valores
que direcionam os posicionamentos políticos dela?
O lobby nos Estados
Unidos, por exemplo, não é crime. Aqui sim. Nos Estados Unidos, tem-se quase
como um dado normal que as corporações controlam o Estado. No Brasil, também há
essa percepção, entretanto, como algo eticamente condenável. Ou seja: temos uma
percepção de que há mais problemas na gestão pública por aqui porque somamos um
elemento que não é visto como crime nos Estados Unidos.
Ainda que falhemos na
consecução dessa possível virtude, entender essa relação como algo a ser
corrigido mostra uma concepção diferente sobre quem deveria ser o mandatário do
poder político. Deveríamos diminuir os índices de corrupção por legalizar o lobby,
ou seja, passarmos a entender que é o mercado que detém o monopólio legítimo do
Estado, assim como permitido nos EUA?
E as convicções que
guiam a ideia de saúde pública? Hoje, no Brasil, é completamente impossível
qualquer discurso a favor da extinção do Sistema Único de Saúde. É um senso
comum quase inabalável que educação e saúde são um dever do Estado e um direito
do cidadão.
O debate nos Estados
Unidos é bastante diferente. A ideia de cada um por si gerou um sistema
previdenciário e de saúde pública que nenhum brasileiro cogitaria nem no seu
pior pesadelo. Nos Estados Unidos, ter uma doença terminal e/ou cara e ser
tratado pelo sistema público, sem ter que se desfazer de um bem, é uma
realidade impensável.
Em entrevista que um
dos autores deste texto realizou com Charles Rosenberg – On the history of
medicine in the United States, theory, health insurance, and psychiatry: an
interview with Charles Rosenberg –, o historiador estadunidense falou sobre o
quão impensável é, para um norte-americano, acreditar que a expectativa de vida
de um cubano seja similar à dele. A isso, poderíamos somar que seria impensável
a cidadãos dos EUA a existência de um sistema de saúde como o SUS, implantado e
funcionando. A sociedade mais rica do mundo entende que se você adoeceu, isso é
problema só seu. Aqui não.
Ao final da Segunda
Guerra Mundial e com o começo da discussão sobre Estado de bem-estar social,
surgiu um enorme debate nos Estados Unidos a respeito das maneiras que o mundo
já pensou a saúde pública. Basicamente, a questão era: sendo uma das sociedades
mais ricas do mundo, devemos deixar cada um a sua própria sorte? Havia exemplos
de outros modelos menos individualistas que poderiam fornecer respostas que
satisfizessem mais a uma comunidade solidária.
Contudo,
politicamente, os Estados Unidos tomaram uma postura oposta. A proposta mais
ousada no sentido da solidariedade tem sido a de Barack Obama. Ainda que muito
distante de ideias como universalidade e obrigatoriedade de prestação de
serviço, ela virou motivo de chacota entre os republicanos. No Brasil, essa
discussão jamais existiria. O que se requer é o oposto: o SUS precisa do
financiamento de que necessita. Jamais se diria que seria custoso demais e que
deveria ser extinto.
À guisa de conclusão,
podemos evocar a frase que se transformou em um mantra a partir de Tom Jobim:
“o Brasil não é para principiantes”. Não que seja tão difícil assim
compreendê-lo, mas é evidentemente um país com diversas disputas narrativas e
outras tantas propostas a respeito do que fazer. Pautados em evidências sobre
desigualdades socioeconômicas ou em ilusões climáticas, raciais e morais,
criamos inúmeras certezas a respeito de qual rumo a sociedade deveria tomar.
E é curioso esse
entrecruzamento de diversas impressões sobre nós, os outros, os colonialismos
que nos atravessam que, ao contrário de transformar sonhos em pesadelos, tem a
capacidade de transformar pesadelos em sonhos.
Fonte: Por Rafael
Mantovani, Bruno Regasson e Nicolás Gonçalves, em Outras Palavras
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