Marco temporal é apontado como causa do
aumento da violência contra indígenas
A disputa por terras e
o acirramento dos conflitos entre fazendeiros e indígenas na região de
Douradina, no Mato Grosso do Sul, marcam a escalada da violência contra os
povos originários no país. Para indigenistas, a vigência do Marco Temporal,
aprovado pelo Congresso e questionado no Supremo Tribunal Federal (STF), tem
feito comunidades sofrerem com a insegurança jurídica e o aumento das
tentativas de tomada de terras.
O cenário sangrento
foi evidenciado pelo Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil,
publicado na última semana pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). De
acordo com o documento, o número de indígenas mortos saltou de 180, em 2022,
para 208 no ano passado. O Mato Grosso do Sul foi vice-líder no número de
ocorrências, com 43 indígenas assassinados.
Segundo o indigenista
e coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib),
Maurício Terena, o estado possui um histórico de hostilidade aos povos
originários e, junto a isso, uma forte influência do agronegócio na política, o
que beneficia o lado dos agricultores na disputa de terras. "O MS tem um
histórico de violência muito grande contra os povos indígenas. Apenas 2% do
estado representa áreas reservadas para povos indígenas, enquanto 97%
representa as propriedades rurais, segundo dados do Cadastro Rural",
apontou.
"O que a gente
percebe é que nenhum governo consegue enfrentar essa disputa histórica e fazer
as demarcações das terras indígenas. É um estado onde o agronegócio impera nas
suas relações políticas, econômicas e de poder", alertou.
As áreas rurais do
município de Douradina vêm sofrendo com uma intensificação dos conflitos desde
o início deste mês. Em junho, os indígenas da localidade iniciaram um processo
que chamam de "retomada" de terras, reconhecidas como originárias desde
2011. Com isso, os fazendeiros, que se consideram proprietários da área,
começaram a usar da violência para expulsá-los.
A situação, de acordo
com Terena, é frequente. "Sempre tem conflito, a gente está vivenciando
mais um, dada toda essa conjuntura política, tanto no Congresso quanto no STF,
que configura a vigência de uma lei com a ausência de demarcação de terras. O
cenário é propício para para haver o caos, infelizmente, que a gente está
vivenciando, em que os povos indígenas estão aí cansados de esperar",
comentou.
A situação levou o
Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a autorizar, no último dia 17,
o emprego de agentes da Força Nacional no estado para "preservação da
ordem pública" e da "integridade" nas Terras Indígenas do Cone
Sul do MS. Assinada pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a portaria
estabeleceu a atuação das tropas na região por 90 dias.
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Denúncias
Lideranças indígenas e
membros dos povos Kaiowá e Guarani criticam a falta de demarcação de suas
terras, apontadas como a razão para os atos violentos. Eles alegam ainda que a
atuação das forças de segurança, ao invés de protegê-los, também age com hostilidade.
A Assembleia-Geral do
Povo Kaiowá e Guarani — Aty Guasu — tem feito denúncias recorrentes aos
ataques. Em vídeo postado nas redes sociais pela organização é possível ver um
comboio de caminhonetes alinhadas com faróis acesos no meio da noite, enquanto
os fazendeiros dizem que estão "se preparando para o grande conflito"
e que "a tropa de choque está chegando" para enfrentar os indígenas.
Após a postagem, o
Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) destacou, em nota, a
"situação de grave insegurança jurídica em razão da vigência da Lei
14.701/2023, Lei do Marco temporal".
<><> STF
A Apib enviou ao STF
uma manifestação pedindo urgência na análise da lei para a demarcação de terras
indígenas, chamada pela entidade de "lei do genocídio" dessas
populações. A medida, aprovada em setembro de 2023 pelo Congresso, é
questionada em uma série de ações que tramitam na Corte.
O relator, ministro
Gilmar Mendes, suspendeu o andamento em abril, uma nova audiência para tratar
do tema está marcada para o dia 5 de agosto. Segundo o coordenador jurídico da
Apib, a violência contra os indígenas tende a aumentar caso não ocorra uma cessação
da disputa entre os poderes Legislativo e Judiciário. Para ele, essa é a única
solução para os conflitos de terras que o país tem vivenciado. "Enquanto
não se acabar essa disputa entre os poderes, enquanto não se resolver de uma
vez por todas, a gente não vai ter uma solução desses conflitos", afirmou.
<><> Fonte
de conflitos
A antropóloga e
secretária de Cidadania do Mato Grosso do Sul, Viviane Luiza, explicou ao
Correio que os conflitos de terras no estado se originaram na década de 1940,
quando a região passou por uma forte expansão econômica e agrícola. À época, a
União vendeu vários títulos de terras para pequenos agricultores, sem
considerar que algumas dessas terras estavam em território indígena, o que só
veio a ser determinado muitas décadas depois.
Ela contou que,
considerando esse histórico, tem buscado construir um trabalho de mediação dos
conflitos que consiga beneficiar tanto o lado dos fazendeiros — chamados de
"sitiantes" —, quanto o dos indígenas. "Só assim a gente
consegue ter uma garantia de paz no campo. Para as comunidades indígenas, a
segurança de que os territórios estão sendo garantidos, e, para esses
sitiantes, a garantia de um outro local, de forma que eles entendam que tem
solução", afirmou Luiza. Segundo a secretária, foi essa a maneira que o
governo encontrou para diminuir a judicialização.
Viviane Luiza falou
ainda sobre a necessidade de elaborar políticas públicas. "Não é só
entregar aquela terra para os indígenas e virar as costas. Isso também não vai
ajudar. Temos questões que precisam ser avaliadas ponto a ponto, e é nessa
especificidade que estamos trabalhando", apontou.
Em uma linha similar
de pensamento, o procurador do Ministério Público Federal (MPF) do MS, Marco
Antônio Delfino de Almeida, reforçou a importância de buscar uma solução que
considere as demandas de ambos os lados.
Para ele, o conflito
possui uma perspectiva de solução jurídica simples, que passa por um acordo que
indenize os fazendeiros pelas terras que serão oficialmente cedidas aos
indígenas, ao mesmo tempo que assentará alguns indígenas que se encontram em
terras não-reconhecidamente indígenas.
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Acordos quebrados
Contudo, ele pondera
que esse acordo só será possível com uma postura dedicada dos governos de
cumprir com as indenizações e realizar os reassentamentos. "Um dos grandes
problemas é que a gente busca resolver problemas pontuais, e o problema indígena
não é um problema pontual, é um problema que você tem que ter um cronograma de
resolução, porque um programa de resolução traz para todo mundo a tranquilidade
de programar sua vida", destaca o procurador.
Segundo Almeida, há
uma série de acordos que foram quebrados historicamente, o que provoca
desconfiança. "Precisamos ganhar credibilidade e reforçar que o acordo
será cumprido e que as ações serão feitas. A partir do momento em que a gente
consiga construir isso, conseguiremos avançar em outras agendas. Precisamos de
um exemplo positivo para que consigamos avançar nesses acordos. Enquanto isso
não acontece, ficamos presos no passado", lamenta.
• Relator da ONU pede suspensão imediata
da lei do marco temporal
O relator da
Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito dos povos indígenas, José
Francisco Calí Tzay, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Senado a
suspensão imediata da aplicação da Lei 14.701, que estabelece o marco temporal
para a demarcação de terras tradicionais.
"Esta suspensão
poderia evitar um risco iminente para os povos indígenas do Brasil de serem
privados ou despejados de suas terras tradicionais nos termos da Lei 14.701,
atualmente em vigor. Apelo também ao Senado Federal para que respeite as normas
internacionais de direitos humanos que reconhecem os direitos dos Povos
Indígenas às suas terras e territórios sem limitação temporal", afirmou
José Francisco, em comunicado divulgado pelo colunista Jamil Chade, do Uol.
"É importante que
o Estado brasileiro lembre que, as terras e territórios tradicionalmente
pertencentes ou ocupados pelos povos indígenas, são elementos definidores de
sua identidade, cultura e sua relação com os ancestrais e as gerações futuras.
Abrir o caminho para políticas extrativistas apenas para interesses
empresariais, legitimará a violência contra os Povos Indígenas e violará os
seus direitos às terras, territórios e recursos naturais", emendou o
relator da ONU.
Na quarta-feira
(10/7), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado adiou para outubro
a votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que fixa o marco temporal
da data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, para a demarcação
de terras indígenas.
O Congresso aprovou,
em setembro de 2023, a Lei 14.701/2023. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) chegou a vetar trechos da norma, mas os parlamentares derrubaram o veto.
Em setembro do ano passado, o STF rejeitou a tese do marco temporal para a demarcação
de terras indígenas. Por 9 votos a 2, a Corte decidiu que a data da promulgação
da Constituição não pode ser utilizada para definir a ocupação tradicional.
Desde então, a tese do marco temporal é alvo de críticas e processo de Ação
direta de inconstitucionalidade (ADI) protocolado pela Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (Apib).
Na quarta, em carta
aberta aos senadores que compõem a Comissão de Constituição e Justiça no Senado
Federal, entidades religiosas de diferentes denominações se manifestaram
contrárias à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 48/2023, que
estabelece o marco temporal.
"Caso a tese do
Marco Temporal prevaleça, estaremos dando continuidade a um vexatório histórico
de violações contra os povos originários. Limitar o direito dos povos indígenas
ao reconhecimento de suas terras secularmente ocupadas é ferir de morte nossa
Constituição e permitir que os casos de genocídios e etnocídios verificados no
passado tenham espaço em nossa sociedade atual", afirmam as entidades.
"Além de impor
esse limite, essa tese abre a possibilidade de que várias das demarcações de
terras indígenas já feitas venham a ser questionadas e até anuladas, agravando
ainda mais o estado de insegurança e violência que se verifica no campo. Das cerca
de 1.300 terras indígenas demandadas pelos povos indígenas, de acordo com
levantamento do Conselho Indigenista Missionário, mais de 64% continuam à
espera de regularização. Além disso, segundo relatório da Comissão Pastoral da
Terra, dos 47 assassinatos ocorridos em áreas rurais, em 2022, 38% foram de
indígenas", acrescentam.
• Índio do buraco: audiência de
conciliação termina sem consenso e Funai deve concluir estudo técnico para
demarcação da área
Depois de audiência de
conciliação ter encerrado sem uma solução consensual, a Fundação Nacional dos
Povos Indígenas (Funai) deve concluir, em seis meses, estudo técnico sobre o
território Tanaru, área onde vivia o “índio do buraco”, em Corumbiara (RO). A
medida foi definida pela Justiça Federal em ação civil pública apresentada pelo
Ministério Público Federal (MPF) para assegurar o reconhecimento da ocupação
ancestral da terra indígena e a destinação socioambiental da área. A ação fica
suspensa durante o prazo para conclusão dos estudos.
A audiência, realizada
por meio de videoconferência em 16 de julho, contou com a participação dos
procuradores da República Daniel Dalberto, Caroline Helpa e Eduardo Sanches, de
advogados e representantes da União, da Funai, da Coordenação das Organizações
Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e proprietários rurais lindeiros da
área em questão. Na ocasião, a União e a Funai indicaram que entendem a área
como indígena. Porém, é necessário definir o instrumento jurídico adequado à
preservação, o que será objeto de estudo pela Funai.
De acordo com o MPF, o
território já deveria ter sido demarcado, considerando todas as evidências já
identificadas de que a ocupação tradicional da área é indígena. Na ação, o MPF
sustenta que o território deve ser considerado patrimônio da União e que a
destinação socioambiental da área deve ser definida com a participação dos
povos indígenas da região e dos órgãos públicos envolvidos na questão.
A área a ser demarcada
inclui território de floresta contínua onde viveu o indígena até a sua morte.
Porém, porções dessa área de floresta possuem matrículas de fazendas
confrontantes. Advogados dos fazendeiros – que atuam como assistentes da União
e da Funai na ação –propuseram deixar uma pequena área para que fosse erguido
um memorial ao “índio do buraco”, que faleceu em agosto de 2022, sendo o último
sobrevivente do genocídio de um povo indígena da região e que recusou todas as
tentativas de contato e aproximação de não indígenas. Ele cavava misteriosos
buracos no interior de suas palhoças, por isso recebeu o nome de “índio do
buraco”.
O MPF esclarece que
não é possível negociar o território com particulares, já que a área pertence a
União em decorrência da ocupação indígena ancestral. Já existe uma restrição de
uso do território definida pela Funai, com duração até 2025. O MPF pede que a
Funai e a União protejam a área durante todo o processo. Após a conclusão dos
estudos técnicos, a Funai deve apresentar à Justiça proposta para demarcação e
destinação do território. A proposta será analisada pelo MPF, que é autor da
ação, e pelas demais partes envolvidas.
Fonte: Correio
Braziliense/MPF-Roraima
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