Os diários de pracinha brasileiro capturado
por nazistas na 2ª Guerra: ‘Comíamos neve para enganar o estômago’
“Dia 15 de
julho.
Faz três
sábados que estamos enfiados nesse navio. Segundo dizem, chegaremos amanhã. As
últimas notícias que temos são de que vamos para a Itália e que desceremos no
porto de Nápoles. Penso que jamais voltaremos para o Brasil...
Tenho
sonhado muito com minha família. Uma coisa com que ainda não me acostumei é
comer só duas vezes ao dia. Vamos ficar bem
perto do inimigo, mas o que podemos esperar, a não ser isso? Talvez, em breve,
iremos combater. Por fim, às 4h recebemos a notícia que tanto esperávamos:
chegaremos amanhã cedo. Enfim, vou sair desse terrível porão, mas só Deus sabe
o que nos espera lá fora.”
As linhas acima foram
escritas em 1944 pelo cabo Waldemar Reinaldo Cerezoli, um dos 25 mil
brasileiros enviados à Europa para combater os nazistas na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Elas foram redigidas dentro do navio americano General Mann, que transportou o
primeiro grupo da Força Expedicionária Brasileira (FEB) a deixar o Brasil para
lutar contra as forças do Eixo (Alemanha,
Itália e Japão). Estavam a bordo 5,8 mil homens, a maioria deles pracinhas,
como ficaram conhecidos os brasileiros destacados para lutar ao lado dos
Aliados (Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos) e que não eram
militares de carreira. Eles deixaram o porto do Rio de Janeiro em
29 de junho, sem saber quando ou onde desembarcariam. No pescoço, levavam uma
placa de reconhecimento militar para identificação em caso de morte.
Waldemar Cerezoli
sobreviveu e, com ele, seu diário, no qual registrou detalhes de sua rotina nos
381 dias que ficou fora do país — 142 deles como prisioneiro de guerra em um
campo de concentração alemão. O caderno, com 98 páginas preenchidas a caneta
azul, voltou na bagagem do ex-combatente em 1945 e foi conservado por sua
família após sua morte, em 1975. Mas só agora, oito décadas depois do
desembarque do primeiro contingente brasileiro na Itália, o manuscrito veio à
tona, resgatado pela historiadora Cristina Pellegrino Feres.
Pesquisadora do
Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (LEER), da
Universidade de São Paulo (USP), Feres vem se debruçando sobre a história da
FEB, com foco nas pessoas comuns que tiveram a vida transformada pelos
acontecimentos históricos. “Não me interessam os dados sobre batalhas, sobre
estratégia militar, me interessa o homem em combate, a valorização do indivíduo
na história”, afirma.
Feres recebeu uma
fotocópia das páginas do diário no fim da década de 1990, das mãos de um amigo
da família de Waldemar. Como ainda não pesquisava o tema, deixou o caderno
guardado, até que, em 2020, decidiu analisar seu conteúdo. Em novembro de 2023,
ela lançou o livro A dupla face da guerra: A FEB pelo olhar de um
prisioneiro (ed. Intermeios), no qual, além de reproduzir
integralmente o texto do diário, interpreta e dá contexto ao relato, com base
em fontes acadêmicas e em documentos históricos.
·
Diários de guerra
Muitos pracinhas
registraram por escrito sua experiência durante o conflito, contrariando a
orientação do Ministério da Defesa da época, que proibiu os soldados de
manterem diários. “No começo, todo mundo anotava tudo”, relatou o cronista
Rubem Braga, então correspondente de guerra, no jornal Diário Carioca.
Segundo Maria Luiza
Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da USP, o diário de
guerra, além de servir como fonte histórica, cumpre diversas funções para seus
autores. Um exemplo: o hábito de escrever ajuda o soldado a manter as
referências temporais na falta dos marcos convencionais da vida em sociedade —
como festas, casamentos e feriados. Mas não só. “Muitas vezes, cumpre com o seu
papel de autoajuda nos momentos de angústias e frustrações; em outros, serve
para o narrador retomar o equilíbrio e a respiração após um bombardeio”, afirma
Carneiro, no prefácio do livro sobre o diário de Waldemar — que ela considera
uma “preciosidade histórica” por ter sido produzido in loco, em
meio a situações de estresse individual e coletivo.
Alguns diários de
pracinhas sobreviveram e foram publicados, mas Cristina Feres viu no relato de
Waldemar algumas contribuições inéditas. Primeiro, porque se trata de um dos
poucos testemunhos de um brasileiro capturado pelos alemães. Dos 25,3 mil
pracinhas, só 35 foram feitos prisioneiros. “O Brasil fecha os olhos para essas
histórias”, afirma Feres, acrescentando que os combatentes que caem nas mãos do
inimigo são vistos como a antítese do herói. “Eles carregam o estigma de terem
falhado na missão.”
Dois desses
ex-prisioneiros da Segunda Guerra tiveram seus depoimentos incluídos na coleção
de história oral do Exército. Um terceiro, Eliseu de Oliveira, contou sua
história ao jornalista Altino Bondesan, que compilou as entrevistas no
livro Um pracinha paulista no inferno de Hitler (ed. Guaíra,
1947).
O diário de Waldemar,
por sua vez, é um testemunho escrito no calor dos acontecimentos, sem ter sido
lapidado ou ressignificado pelo filtro do tempo, como acontece com outras
memórias. Talvez por isso o registro passe longe da grandiosidade dos relatos
tradicionais de guerra, revelando uma dimensão cotidiana da rotina de soldado,
que sente medo, tédio, saudade e incômodo — nas palavras de Feres, “as
fragilidades humanas que o discurso oficial tende a ocultar”.
Para a historiadora,
faltam no Brasil ações institucionais para conservar e compilar os relatos de
sobreviventes da Segunda Guerra, como fizeram outros países. “Essa memória
sobrevive em pequenos nichos: entre os familiares, associações de veteranos ou
simpatizantes da temática da guerra. Mas não está na memória coletiva
brasileira”, afirma.
·
Ratos, comida enlatada
e cama de capim
Morador da cidade
paulista de Ribeirão Pires, que na época era um distrito de Santo André,
Waldemar foi sorteado para o Exército em 1941. Segundo sua certidão funcional,
ele era um soldado que se destacava por sua disciplina, força de vontade e
resistência física durante os treinamentos. O diário revela outro lado do
pracinha: o de um jovem de 24 anos consumido pelas saudades da família, que
abandonou sua pacata vida de funcionário dos Correios para empunhar uma
metralhadora no front de guerra e que não teve coragem de contar para a mãe que
havia sido convocado para lutar na Europa — preferiu dizer que estava no Norte
do Brasil.
Seu relato se inicia
com o embarque no Rio de Janeiro, em 29 de junho de 1944, e tem periodicidade
diária até 30 de outubro, logo antes de seu aprisionamento. As agruras do
cativeiro também foram registradas, mas de forma resumida, provavelmente após
sua libertação. A última anotação do caderno é um poema datado de janeiro de
1946, seis meses após seu retorno ao Brasil. De acordo com o diário, o calvário
do grupo começou já na viagem de navio, dormindo em um porão cheio de ratos,
sob um calor infernal e com comida insuficiente.
“Dia 4 de
julho.
A maior
parte dos meus colegas está doente. Eu, felizmente, estou me acostumando com a
viagem, mas cada dia mais triste porque afasto-me cada vez mais da minha terra
e com poucas esperanças de tornar a vê-la. Temos passado fome aqui no navio,
onde só temos duas refeições durante o dia todo, e eu não me acostumo com essa
comida americana, tudo é doce.
À noite, é
uma tristeza, apagam-se todas as luzes cedo e temos que ficar no escuro com os
ratos, e o porão faz um calor insuportável! Todos os dias temos instruções de
abandono do navio, é a maior chateação!”
As privações
continuaram após o desembarque no porto de Nápoles. Os pracinhas dormiam sobre
capim, acordavam antes do sol nascer para cumprir treinos exaustivos e comiam
refeições enlatadas. Eventualmente, alguém conseguia tomates e preparava uma
salada dentro do capacete.
“Dia 16 de
julho.
Estou
louco de fome e cansado. Às 8h, recebemos duas latinhas de comida em conserva.
Esta noite
vamos dormir tendo por teto as estrelas. Começou o sofrimento. Acabou a boa
cama e a mamãe para fazer tudo. Enfim, estamos na guerra e não em casa. Arrumei
um pouco de capim embaixo de uma árvore e deitei-me para dormir.”
Ainda assim, Waldemar
comemora um luxo raro, providenciado pelo Exército dos Estados Unidos. “Estamos
no mato, e temos chuveiro com água quente. Nos quartéis do Brasil nem água fria
tínhamos!”, escreveu.
·
Vinho e mulheres
As primeiras semanas
do diário são marcadas pela ansiedade da espera para entrar em combate. Diversas
vezes, Waldemar escreve que quer ver logo “a cobra fumar” — expressão surgida
como uma provocação (de que seria mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil
entrar na guerra), que acabou sendo incorporada à iconografia e ao uniforme da
FEB. Para passar o tempo, os pracinhas jogavam vôlei ou baralho, lavavam roupa,
limpavam as armas, dormiam ou conversavam “sobre o Brasil e as garotas”. O
cigarro e o álcool eram válvulas de escape para o estresse e o tédio. Waldemar
faz referências constantes a se embriagar com o vinho comprado dos empobrecidos
italianos. “Vinho e miséria aqui não faltam”, escreveu.
“Dia 28 de
julho.
A cada
dois dias recebemos um maço de cigarros, já estamos sem cigarros e não temos
onde comprar. Hoje, recebi o primeiro pagamento aqui na Itália, 2.500 liras que
correspondem a 500 cruzeiros em nosso dinheiro; mas para que me serve isso se
não tenho onde gastar, a não ser no vinho do italiano?”
A confraternização com
a população local incluía o contato com as “lavadeiras”, mulheres italianas
que, na ausência de homens em casa e de meios de sobrevivência, lavavam e
costuravam as fardas dos soldados em troca de algumas moedas. Uma delas,
segundo Waldemar, se afeiçoou tanto a eles que até chorou ao saber que iriam
para o front.
O brasileiro também
cita uma jovem chamada Dora, com quem aparentemente engatou um namoro. “Nunca
vi uma pequena tão bonita e amável, até em casamento falamos”, escreveu.
A miséria da população
chocou muitos pracinhas, que costumavam dar comida ou doces para as crianças
famintas que se aproximavam. Uma delas, Giovanna, de cinco anos, se afeiçoou a
Waldemar, que fez uma fotografia dela e a trouxe para o Brasil.
“Dia 5 de
agosto.
Estive
conversando com os velhos italianos e fiquei impressionado em ouvi-los contar
as barbaridades que os alemães fizeram ao passar por aqui. Levei-lhes duas
latas em conserva e eles ficaram um tanto satisfeitos, dando-me em troca um
cantil de vinho.
À tarde,
me troquei e fui passear na cidade de Tarquínia. Voltei cedo porque a cidade
não vale nada, está tudo destruído. Há somente vinho e frutas.”
·
Cadáveres
Segundo dados do
Exército, 443 combatentes da FEB morreram e 2.722 ficaram feridos na Europa. Uma
parte deles foi vitimada antes mesmo de ir para o front, em acidentes durante
os treinos. “Hoje, morreram mais dois colegas: um afogado e outro com a
explosão de uma mina. Ainda não entramos em combate e já morreram vários
colegas”, escreveu Waldemar, em 4 de setembro. À medida que o tempo passava, o
inimigo ficava mais próximo. Em 11 de setembro, o cabo brasileiro viu soldados
alemães pela primeira vez — eram nove e estavam mortos.
“11 de
setembro.
Durante a
instrução, entrei em uma trincheira velha e encontrei nove cadáveres de
alemães. Tivemos a curiosidade de revistá-los, e encontramos várias fotografias
de moças, de crianças e deles mesmos. Fiquei com duas fotografias para
lembrança desse dia de sacrifício. Tirei do cinto de outro um porta-cantil.
Tive a
impressão de que é bem triste morrer em combate. Hoje encontrei esses corpos,
talvez amanhã encontrem o meu.”
Uma das maiores
angústias de Waldemar era a falta de notícias da família. Ele escrevia para a
mãe e para a namorada, mas, diferentemente de seus companheiros, não recebia
retorno. “Já escrevi 18 cartas e não sei o que é uma resposta, talvez pensem
que eu já morri”, desabafou, em 13 de agosto. No mês seguinte, quando seu
regimento já estava em meio ao fogo cruzado, chegaram as primeiras cartas para
ele.
“Dia 23 de
setembro.
Esta noite
inteira a artilharia inimiga atirou sobre nós. Tomei café às 8h e estava
costurando quando o tenente me chamou e me entregou duas cartas de minha mãe e
uma de Cida. Ninguém avalia como estou contente! Recebi uma fotografia da
garota e as notícias de casa que são boas.
Amanhã
atacaremos, e agora morrerei contente porque tive notícias da minha família
pela primeira vez.”
·
No front com a ‘gata’
Waldemar foi para a
frente de batalha dois meses depois de sua chegada à Itália. Com ele, levou sua
metralhadora — que ele chamava de “minha gata”.
“15 de
setembro.
Estamos em
primeira linha, entrei em posição com minha metralhadora. Agora já não é mais
instrução, e sim realidade. Estava na metralhadora quando ouvi ruídos poucos
metros à frente, mas, como estava escuro, não pude ver nada. Recebi ordens de
abrir fogo e, pela primeira vez, atirei para matar.”
O relato foi se
tornando mais dramático, com enfrentamentos diretos e mortes de compatriotas.
“24 de
setembro.
Nunca vi a
morte tão perto. Morreu um cabo perto de mim e se feriram quatro. Avançamos
novamente e meu capitão ordenou que abríssemos trincheiras porque iríamos
passar a noite na defensiva.
Cavei um
buraco e coloquei minha gata em posição de atirar. Estava em posição e começou
a chover. Ficamos embaixo da chuva até de madrugada. Às 6h, começou a cobra a
fumar novamente: abri fogo e atirei até o cano da gata ficar vermelho. Às 7h,
parou o fogo e o inimigo recuou.”
Nesse mesmo dia, o
regimento de Waldemar trouxe três prisioneiros alemães, que chegaram quase nus.
“Estavam loucos de fome e sede. Nosso capitão deu a eles umas latinhas em
conserva e eu dei um pouco de água que tinha no cantil”, contou.
Segundo o diário, a
situação dos rivais era tão desesperadora que alguns se rendiam para conseguir
comer. “Ontem à noite, quatro alemães vieram se entregar porque estavam
passando fome”, escreveu o cabo. A situação dos brasileiros também era
precária. “Estou sujo como um porco, faz cinco dias que nem tiro a botina.
Banho há 15 dias que não vejo, mas, infelizmente, a guerra é assim”, contou
Waldemar. “Às 7h, preparei minha cama dentro de um galinheiro, mas não pude
dormir porque os piolhos me atacaram. Pior que os alemães!”, disse, em outro
trecho. Com o passar dos dias, o caos ficou tão familiar que ele nem se abalou
com o barulho de duas granadas que caíram a dez metros de onde dormia. “As
vidraças ficaram em cacos, mas eu nem acordei. À tarde, fritamos batatinhas e
compramos dois cantis de vinho”, escreveu, em 20 de outubro.
·
Batalha final
O relato de Waldemar
chegou ao ápice em 30 de outubro, data de sua última batalha antes de ser
capturado, no Vale do Serchio, região da Toscana. Sob forte chuva, eles
tentavam subir o morro de São Quirico em direção a uma base defensiva alemã. Surpreendidas
com um contra-ataque, as tropas da FEB tiveram que bater em retirada, mas o
grupo de Waldemar ficou cercado pelo inimigo. Eram 17 pracinhas abrigados em
uma casa, contra 300 soldados alemães, no que seria considerado o primeiro
revés sofrido pelo Brasil na Itália.
“30 de
outubro.
Só me
restava uma granada de mão que estava pendurada no meu cinto do lado esquerdo.
O soldado Eliseu a arrancou do cinto, porque eu não podia me mover para
tirá-la. Eu já tinha onze furos de bala no capacete e estava desabrigado.
Enquanto eu atirava, Eliseu rastejou até perto da trincheira inimiga e atirou a
granada. Aqueles dois já não matariam mais brasileiros.”
Waldemar e Eliseu de
Oliveira foram buscar ajuda no posto de comando próximo, sob fogo cruzado. Quando
voltaram à casa onde os colegas resistiam, uma granada atravessou a janela e
feriu Waldemar e um sargento. Com metralhadoras apontadas contra suas cabeças,
eles se renderam.
“Era
aproximadamente 11h, e eu já estava com fome e sede insuportáveis. Subi para o
andar superior e vi pela janela que o inimigo já tinha cercado a casa. (...)
Enquanto tinha balas, atirei para matar. Quando terminaram meus 3 mil tiros de
metralhadora, peguei meu fuzil e continuei atirando. Atirávamos a dois ou três
metros de distância, dava para ver o ódio estampado no rosto do inimigo. (...)
Vi perfeitamente uma granada entrar pela janela e cobri o rosto com o braço
esperando a explosão. Senti uma pancada na cabeça e desacordei por alguns
segundos. Depois, vi meu braço ferido e senti sangue escorrer pela perna
esquerda. Quis andar, mas não pude.
Olhei para
o sargento e vi sangue no braço dele, que se contorcia de dor e estava com o
braço direito quebrado. Ao meu lado estava o Hamilton deitado em uma poça de
sangue. Um estilhaço havia-lhe cortado a veia.”
·
Campo de prisioneiros
A partir dali, o
relato passou a ser retrospectivo, provavelmente escrito após a libertação de
Waldemar. Ele contou que foi levado a um hospital, onde sofreu nas mãos de
enfermeiros italianos. “Tiraram-me o estilhaço da perna e outro da cabeça, mas
tudo sem anestesia; punham-me gaze na boca para sufocar os gritos”, escreveu. Em
5 de dezembro, os cativos embarcaram em um trem de carga em direção à Alemanha,
em vagões de aço lacrados, e passaram “três dias e três noites fechados como
ratos”.
“À
meia-noite, de 8 de dezembro, tive a honra de desembarcar na Alemanha.
Estávamos loucos de sede e, assim que descemos, começamos a comer neve.
Entramos em forma e seguimos para o campo de concentração. Foi a pior impressão
de minha vida ver aquele cercado de arame onde eu ia entrar, mas não sabia se
sairia.”
À sua frente, estava o
Stalag VII-A, o maior campo de prisioneiros de guerra da Alemanha nazista, na
cidade de Moosburg, na Baviera. Planejado para 10 mil prisioneiros, tinha mais
de 76 mil no momento de sua libertação pelo Exército americano, em 29 de abril
de 1945 — outros 40 mil cativos eram mantidos nos arredores, realizando
trabalhos forçados. Não se sabe se Waldemar levou o caderno para o campo
nazista. Cristina Feres acredita que não. “Acho difícil, até porque a caneta
poderia ser considerada uma arma. Provavelmente o diário ficou naquela casa no
Vale do Serchio e depois foi recuperado por alguém junto com os outros bens
deixados pelos prisioneiros”, diz.
No diário de Waldemar,
os cinco meses de prisão foram resumidos em poucos parágrafos, com conteúdo
perturbador.
“No outro
dia, às 9h, vieram uns pães pretos, mas alguns avançaram como loucos nos pães e
quem foi educado não comeu nada. À tarde fomos identificados e recebi uma chapa
com o número 142292, a qual era obrigado a levar pendurada no pescoço. (...) A
comida constituía somente em batata. Dormia-se no pedregulho. A primeira
refeição vinha às 3h ou 4h da tarde, e muitos dias não vinha; então, comíamos
neve para enganar o estômago. Já andava eu barbudo, sujo, cheio de muquirana e
bichos de toda espécie.”
O registro terminou
com a libertação do grupo, que passou três meses viajando pela França, sendo
tratado com regalias.
“Ninguém
avalia nossa alegria. Jamais tive um dia tão feliz! Os tanques comandados pelo
general Patton invadiram o campo e já não éramos mais prisioneiros, trocamos de
lugar com os alemães. No mesmo dia, chegou cigarro e comida à vontade. Comi
tanto que amanheci doente. Montaram chuveiros e tomamos um banho quente, trocamos
de roupa, cortei a barba e já me sentia outro.”
·
‘Neurose’ de guerra
A economia de palavras
para rememorar o cativeiro se manteve após o retorno de Waldemar para o Brasil.
Familiares disseram à pesquisadora que ele era uma pessoa nervosa, calada e que
se recusava a falar sobre o assunto — possivelmente, uma estratégia de defesa
para não ter que lidar com memórias traumáticas. A desmobilização da FEB
ocorreu assim que acabou a guerra, na própria Itália, ou seja, os pracinhas que
haviam embarcado como soldados voltaram como civis. Waldemar entrou para a
reserva e passou a exercer um trabalho braçal em uma pedreira de Ribeirão
Pires.
Dezessete anos depois,
foi reformado por incapacidade. Um exame psíquico da Junta Militar de Saúde o
diagnosticou com “reação depressivo neurótica”. Segundo o parecer médico,
“desde 1945, (quando voltou da Itália incorporado a FEB) ficou nervoso e não
podia trabalhar”, tinha “crises de choro frequentes e tremores nas mãos” e às
vezes “perdia os sentidos”. Waldemar morreu de leucemia em 1975, aos 55 anos.
Existem diversos
relatos de pracinhas que enfrentaram dificuldades para se reintegrar à
sociedade, com reportagens da época noticiando casos de “neurose de guerra”,
alcoolismo, mendicância e suicídio entre esses veteranos. Segundo Feres, esse
impacto emocional foi ignorado pelo Estado brasileiro. “Existem dados sobre os
mortos, prisioneiros e feridos em combate, mas esses que voltaram com sequelas
psicológicas não entraram nas estatísticas”, afirma. Waldemar não recebeu
nenhuma assistência psicológica após a libertação. Ainda que não gostasse de
falar sobre o assunto, recorreu ao diário para desabafar nos meses seguintes ao
seu retorno, relatando ter pesadelos com o sangue, os gemidos e os gritos de
angústia dos colegas que tombaram ao seu lado.
“Vocês não
avaliam o estado moral de um combatente que, após um árduo combate, é ferido e
aprisionado; que passou fome, frio, sede, enfim, tudo que é possível um soldado
sofrer, vendo sempre em sua frente uma cerca de arame, que foi humilhado pelos
seus semelhantes, que viveu vários meses pensando na sua desgraça e sem
notícias de seus entes queridos. Mas sofreu tudo com resignação porque ele
também matou, talvez um pai, um filho ou noivo que alguém esperava, e cuja
espera foi em vão.”
No texto, intitulado
“Procurem compreender-me”, ele faz um apelo para não ser julgado e passa a
impressão de que, depois daquela experiência, ele nunca mais foi o mesmo. “Não
me condenem como ruim, procurem compreender-me. Nunca esqueçam que me separei
temporariamente deste mundo e fui para a guerra, da qual muitos não voltaram.”
Fonte: BBC News Brasil
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