'Voltei à escola para ensinar meus netos':
as crianças isoladas pela seca na cidade com pior índice de educação do Brasil
A pescadora Francisca
Mariano da Silva, 61 anos, tem acordado todos os dias às 3h para estudar o que
os netos precisam aprender.
Antes de eles se
levantarem, numa casa às margens do rio Solimões, no Amazonas, Francisca já leu
apostilas, reviu o material das aulas da educação de jovens e adultos (EJA) e
ficou pronta para ensinar.
"Eu sentia que
precisava ajudar, porque chegava uma tarefa deles e eu não conseguia mais
acompanhar", explica Francisca, que frequentou a escola até a quinta série
e, há 4 meses, voltou a estudar.
Por mais de um ano, a
avó é a professora possível para Glória, de 10 anos, e Davi, de 12, em
Manaquiri, cidade a 150 km de Manaus que tem sido fortemente afetada pela maior
seca já registrada na Amazônia brasileira.
Os rios que levam
crianças e professores de comunidades ribeirinhas e rurais às escolas secaram,
e 60% dos mais de 4,4 mil alunos estão sem frequentar a sala de aula numa
cidade que já tem registrado indicadores de educação preocupantes.
Manaquiri foi a cidade
brasileira com menor nota no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(Ideb) para os anos iniciais do ensino fundamental em 2023, divulgado neste
ano: apenas 2,5, numa escala que vai até 10.
Nem todas as cidades
ou escolas são avaliadas no índice do Ministério da Educação (MEC), por não
atingirem um número mínimo de alunos.
Nestas eleições
municipais, a BBC News Brasil visitou municípios que estão em primeiro e último
lugar em rankings de indicadores sociais para investigar o que um país desigual
como o Brasil pode aprender com seus extremos.
Além de Manaquiri, a
reportagem foi à cidade melhor colocada no ranking do Ideb - Pires Ferreira, no
Ceará. Outra equipe visitou os municípios com melhor e pior colocação no Índice
de Desenvolvimento Humano — São Caetano do Sul (SP) e Melgaço (PA) (leia aqui).
Em 2024, os alunos de
Manaquiri que estão em casa por conta da seca têm recebido tarefas e alimentos
enviados pela escola — mas, fundamentalmente, têm dependido do conhecimento da
família e de uma conexão de internet (muitas vezes instável) para tirar dúvidas
com os professores.
Mesmo os que moram
perto da escola, como os netos de Francisca, estão com aulas suspensas. Segundo
a prefeitura, professores também estão isolados e os que podem chegar à escola
precisam preparar o ensino remoto.
Francisca percebeu que
o novo cenário longe da escola — que tem se repetido desde os anos de pandemia
— iria prejudicar o futuro de seus netos.
Ela saiu batendo de
porta em porta na Vila do Janauacá, comunidade de Manaquiri onde se chega
apenas de barco, para encontrar ao menos 15 jovens e adultos que gostariam de
retomar a educação numa turma de EJA na escola local. E conseguiu.
“Eu já aprendi
matemática, português e até um pouquinho de inglês. O bom é que a gente ensina
eles e aprende junto”, diz Francisca, ela própria em ensino remoto no EJA desde
setembro.
Mas a pescadora não
acha que o esforço que faz deveria ser regra. “O certo é estar na escola”,
conta.
“Dentro de sala de
aula é uma coisa, a aula remota é outra. O que está acontecendo agora é que vou
ter que forçar mais a minha mente para ajudar eles”.
• Escolas vazias, alunos em casa
A BBC News Brasil foi
até a escola municipal na Vila do Janauacá numa quarta-feira no final de
setembro — e encontrou o prédio vazio, apenas com algumas funcionárias.
Em uma chamada rápida
de grupo com alunos do sexto ano via Whatsapp, a professora Cristiane Ribeiro,
sentada em frente a dezenas de cadeiras vazias, tirava dúvidas dos estudantes
sobre teorias econômicas.
“A gente tem
trabalhado para que as atividades e todo o conteúdo cheguem às casas dos
alunos, mas a gente sabe que não é a mesma coisa”, diz a professora.
A população amazônica
está acostumada ao processo de cheia e seca dos rios ao longo do ano — mas não
na intensidade que tem acontecido, segundo os moradores e cientistas.
De acordo com o Centro
Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), a seca no Brasil
entre 2023 e 2024 é a "mais intensa da história recente" — sendo a
Amazônia uma das regiões mais afetadas.
Os rios da região
registraram neste ano o menor nível da história, como o Negro, em Manaus, o
Solimões, em Tabatinga (AM), e o Madeira, em Porto Velho (RO).
À frente da disciplina
de geografia, Cristiane costuma explicar aos alunos que a crise climática
visível no quintal de casa é resultado de modificações que os seres humanos
fizeram e que a "natureza está tentando encontrar o seu equilíbrio".
Mas, mesmo em época
quando não há grandes cheias ou secas, a educação em Manaquiri já é um desafio.
Alguns alunos passam
horas no barco, outros precisam caminhar na mata fechada para encontrar o
barqueiro que os vai levar à escola.
“Então eles chegam
cansados, fadigados de um sol escaldante como é aqui do nosso Estado, então é
complicado e cansativo”, conta a professora Cristiane.
“Eu creio que os
demais Estados não sabem da nossa realidade. Aqui as dificuldades são maiores.
As pessoas precisam entender que não é só o número pelo número [o Ideb]. Por
trás desse número, existe um grande desafio que essa região enfrenta”.
A cerca de 30 minutos
de barco num braço do rio Solimões que está cada vez mais seco, a família de
Gisele Amorim tenta encontrar saídas para o tempo ocioso das crianças.
"Tenho até medo
de eles ficarem viciados em celular, na televisão, porque é muito desenho. É
triste ver a situação da criança sem estar na escola", diz Gisele, grávida
de seis meses.
Com os rios quase
totalmente secos, o transporte escolar não consegue navegar — em alguns pontos,
apenas pequenas canoas em que só cabem duas pessoas.
“Assim o ensino fica
mais para trás, em vez de ir pra frente”, diz Gisele.
Num município
ribeirinho e tão sensível aos fenômenos climáticos como Manaquiri, seria
necessário um calendário específico em que as férias estudantis ocorram em
períodos de impossibilidade de acesso, explica Fabiane Garcia, doutora em
educação e professora na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
“Eu vim da zona rural
daqui do Amazonas, sei como é a realidade. O nosso calendário tem que ser
diferente da zona urbana e em muitos lugares isso já acontece”, diz Garcia.
Cidades como Tefé (AM)
e escolas em áreas ribeirinhas de Manaus são algumas que preveem o sobe e desce
das águas na hora de estabelecer datas escolares.
A Prefeitura de
Manaquiri disse que tentou se antecipar ao problema de seca com aulas aos
sábados e feriados para adiantar conteúdos, por exemplo. Mas argumenta que a
estiagem começou mais cedo que o ano anterior, atrapalhando a programação.
"Nós não
imaginávamos que a seca ia ser tão rápida assim, ela se adiantou muito esse
ano. É complexa demais a questão do calendário climático aqui", diz o
prefeito Jair Souto (MDB), que esteve à frente da prefeitura em quatro ocasiões
e elegeu seu sucessor, Nelson Nilo (MDB), nestas eleições.
O prefeito diz que o
ideal é as crianças estarem de férias em outubro — começando o ano letivo logo
em janeiro. Não há previsão para a volta às aulas ainda neste ano.
• Problemas além da seca
Mas se as salas de
aula vazias e a impossibilidade de locomoção são um sinal claro dos desafios de
uma cidade como Manaquiri, outros problemas também se acentuam em áreas rurais
do Norte do Brasil.
Na cidade amazonense,
apenas 75% dos professores do ensino fundamental têm ensino superior —– um
número abaixo da média nacional, de quase 87%, segundo dados do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
“Tem muita professora
boa que trabalhava com a gente, mas, quando tem oportunidade de ser aprovada lá
em Manaus, é a primeira coisa, porque lá paga melhor”, diz Júnior Amorim,
professor do sexto ano numa escola no centro de Manaquiri.
Para o professor, os
alunos de Manaquiri são prejudicados ainda pela falta de material que dinamize
as aulas e de uma parceria mais sólida entre as escolas e as famílias:
"Não adianta só quadro e caneta piloto".
A professora Cristiane
Ribeiro, da Vila do Janaucá, explica ainda que, em algumas comunidades
distantes, há professores que estudaram apenas até a quarta série e já são
colocados dentro de uma sala de aula.
De acordo com o
prefeito Jair Souto, tem sido difícil atrair profissionais qualificados para
Manaquiri, especialmente para zonas rurais. “Esse é o grande desafio no Brasil
e nas áreas remotas”, diz o político, prometendo um sistema de aumento de
remuneração com base nos resultados de cada professor — algo a ser aplicado na
gestão seguinte, de seu sucessor.
Souto também reclama
da forma como a educação é financiada para os municípios amazônicos.
Assim como a grande
maioria dos municípios brasileiros, Manaquiri depende majoritariamente de
recursos repassados pelo governo federal ou estadual.
Na área da educação, o
dinheiro chega às cidades principalmente através do Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação (Fundeb).
Criado em 2007, o
fundo tem papel fundamental na redução de desigualdades entre as regiões, já
que redistribui recursos nacionais com base no número de alunos — e não levando
em conta o que determinado Estado arrecadou, por exemplo.
Mas o prefeito diz que
Fundeb tem sido insuficiente, já que os recursos repassados não levam em conta
que Manaquiri gasta mais no transporte (em barcos e por longas distâncias), por
exemplo.
A cidade ainda
precisaria, argumenta Souto, de mais recurso por aluno, já que há escolas que
precisam ser mantidas em comunidades ribeirinhas e que funcionam com
pouquíssimas crianças.
"O Brasil precisa
entender a complexidade da região Norte e fazer políticas específicas para a
região. Nós não somos iguais", diz.
O Norte é a região
proporcionalmente mais jovem do Brasil, um país que tem visto sua população
economicamente ativa diminuir em relação aos idosos.
Isso quer dizer que a
forma como os jovens estão se formando vai influenciar o futuro do país,
explica o economista Naercio Menezes Filho, professor do Insper e da
Universidade de São Paulo.
"Como teremos
menos jovens, a gente precisa ter gente cada vez mais produtiva. E um dos
principais fatores para aumentar a produtividade é a qualidade da
educação", diz Menezes Filho, especialista no desenvolvimento da primeira
infância.
"Então é
preocupante que isso não esteja acontecendo na região que a gente tem a maior
concentração de juventude", completa.
O MEC reconheceu, em
nota, que é necessário atacar as desigualdades educacionais no Brasil e disse
que está implementando novos critérios no Fundeb para que cidades que tenham
alunos mais pobres possam receber mais recursos.
Já o Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pela gestão do Fundeb, prometeu
um olhar para o que chama de "custo amazônico", por meio de um
programa voltado para auxiliar no transporte de estudantes da zona rural e de regiões
mais afastadas.
No entanto, até o
momento, ainda não há um orçamento definido para as mudanças, diz o FNDE.
• O que o Ideb não mede
O Ideb é calculado com
base em dois indicadores: a taxa de aprovação escolar; e as médias de
desempenho nos exames aplicados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica
(Saeb), nos quintos e nono ano do ensino fundamental e terceiro ano do ensino
médio.
Ele é considerado o
principal indicador da educação brasileira e consegue ligar alertas.
Mas será que, numa
cidade como Manaquiri, o índice é capaz de captar tudo?
Para a educadora
Fabiane Garcia, da Ufam, as crianças ribeirinhas de áreas rurais na Amazônia
têm uma leitura de mundo e vivências cotidianas que não são vistas em
resultados de provas.
"Em termos de
leitura e cálculo, objetivamente, elas estão falhando. Mas não podemos dizer
que não esteja ocorrendo aprendizado. Talvez seja uma aprendizagem que esses
próprios modelos não captam", diz a professora.
Em escolas indígenas
do Amazonas, exemplifica Garcia, os professores são da própria comunidade e dão
aulas na língua nativa. Muitas vezes esse educador não tem um curso de
graduação, e os resultados de provas de português podem não ser os esperados.
"Isso pode ser
visto no Sudeste como uma coisa ruim, mas a gente precisa entender que isso é
bom porque no fundo a gente está nesse processo de manutenção e resgate da
cultura, da língua", diz.
Na escola da Vila do
Janauacá, uma das salas é dedicada a um pequeno museu com artefatos
arqueológicos que as famílias encontram ali mesmo. São potes de cerâmica e
vasos de civilizações antigas e que fazem parte do dia a dia das aulas.
O Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) informou que já fez uma
visita ao colégio para catalogação dos itens, em meio ao recadastramento de
sítios arqueológicos na região.
“A gente mostra que
outros povos estiveram aqui antes da gente”, comenta a professora Cristiane,
apontando os objetos históricos que as crianças encontraram, literalmente, no
quintal de casa.
Fonte: BBC News Brasil
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