sábado, 26 de outubro de 2024

Javier Vardell:  Brics Plus - Desejado pelo Sul, temido pelo Norte

Um relatório do banco de investimentos Goldman Sachs de 2001 popularizou o acrônimo BRIC ao destacar a grande oportunidade de negócios financeiros que os mercados emergentes como Brasil, Rússia, Índia e China ofereciam. Após a crise financeira de 2008, esse grupo de países emergentes e reemergentes decidiu realizar uma cúpula em Ecaterimburgo, na Rússia, traçando os contornos de uma nova formação geopolítica.

A primeira ampliação ocorreu quando a África do Sul foi convidada pela China a unir-se para formar o BRICS, em 2010. A partir desse acontecimento, a sigla se popularizou, incluindo o “S” do parceiro africano. O processo de expansão atingiu seu ápice na cúpula de Joanesburgo, em 2023, quando o grupo dos cinco membros convidou uma série de nações do Sul Global — incluindo várias potências médias e regionais — a se integrarem. Esses países foram: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã.

Em 2024, mais de 30 países — entre eles Turquia (que é membro da Otan), Indonésia, Tailândia, Bangladesh, Malásia, Argélia, Síria, Colômbia, Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Cuba, Sri Lanka e Sérvia — manifestaram explicitamente sua intenção de se juntar ao agora chamado BRICS Plus ou BRICS+. Espera-se que, na cúpula que está sendo realizada em Kazan, Rússia, entre os dias 22 e 24 de outubro de 2024, vários países se integrem à formação política.

Alguns analistas interpretam o BRICS como um clube de debates, baseando-se em algumas características que condicionariam uma maior cooperação entre os membros: a diversidade de interesses entre eles, a falta de uma estrutura organizativa formal, os conflitos históricos entre alguns membros e os problemas de ação coletiva no processo de tomada de decisões.

No entanto, apesar desses aspectos destacados, algumas perguntas surgem: o que motiva um número cada vez maior de países do Sul Global e potências médias a expressar um grande interesse em se juntar a este “clube”? Quais são os elementos de atração que fazem do BRICS Plus uma instituição tão sedutora? Para tentar responder a essas questões, devemos ir além dos aspectos conjunturais e levar em consideração os grandes movimentos de placas tectônicas geopolíticas e geoeconômicas.

Desde a crise financeira mundial de 2008, a hierarquia da economia mundial e a governança global instituída na ordem econômica liberal liderada pelos Estados Unidos atravessam uma crise sistêmica. Parafraseando o historiador Adam Tooze, poderíamos falar de uma policrise da globalização neoliberal, ou seja, múltiplas crises que ocorrem de maneira assíncrona. Essa policrise abrange várias dimensões: uma crise econômica do sistema mundo capitalista baseada nas características de parasitismo rentista da globalização neoliberal, que mostra sinais de esgotamento; a impossibilidade desse modelo de promover assistência para o desenvolvimento às nações do Sul Global, como alertou o economista chinês Justin Yifu Lin; uma crise geopolítica, derivada da anterior, que evidencia movimentos de insubordinação no Sul Global; uma crise de funcionalidade, marcada pelo fracasso das instituições internacionais tradicionais nas mais diversas e variadas agendas; uma crise ecológica e uma crise de legitimidade e de autoridade, que se reflete na perda de confiança em relação à “ordem liberal” em geral e à hegemonia americana em particular.

O BRICS plus e a desconexão

Esta policrise é o pano de fundo de um caos sistêmico, mas ao mesmo tempo uma oportunidade que acelera os tempos de uma grande desconexão global da hierarquia do sistema mundo capitalista, sob a hegemonia dos Estados Unidos. Referimo-nos ao que Samir Amin antecipou na década de 1980 como clivagem fundamental para a consolidação de um sistema policêntrico.

No entanto, o fim da Guerra Fria fortaleceu uma tendência contrária, ou seja, em direção à homogeneização do sistema mundo capitalista como produto da expansão da globalização neoliberal. O “momento” unipolar dos Estados Unidos se impunha, baseado no poder da moeda (dólar), do capital financeiro e seu imenso poder militar.

Mas essa resposta hegemônica enfrenta desafios após duas décadas. Desde a crise econômica de 2008, observamos uma tendência de contramovimento global onde a liderança da República Popular da China se torna cada vez mais evidente, em um cenário em que o grande ator asiático se tornou um verdadeiro rule maker global.

Nos dias de hoje, as condições estruturais para a aceleração da desconexão — que não é sinônimo nem de autarquia nem de desglobalização — estão dadas. A desconexão não é um estado de situação acabado, mas um sintoma de um processo transitório no caos sistêmico.

Fiel a Amin, desconexão não significa a renúncia completa a qualquer relação com o exterior, mas sim submeter as relações externas à lógica de um desenvolvimento interno independente delas. Em consequência, cada vez mais países da periferia e da semiperiferia tentam romper os laços de exploração e espoliação com o capital financeiro mundial, associado a elites locais, e tentam alinhar suas relações exteriores com suas necessidades de desenvolvimento doméstico.

Como resultado disso, o BRICS Plus se apresenta como o instrumento geopolítico para promover as desconexões particulares, com suas variadas contradições. Esse processo envolve todas as regiões periféricas e semiperiféricas do sistema mundo capitalista, com grande influência e liderança política da China, que, por sinal, foi o país que lançou a iniciativa de ampliar os BRICS na cúpula de Xiamen, em 2017, e manteve sua política externa de democratização do grupo em todas as cúpulas. Em síntese, a desconexão representa a expressão e a aspiração do Sul Global a uma forma alternativa de globalização que permita um maior espaço de manobra para promover os desenvolvimentos nacionais autônomos.

O BRICS evoluiu além de ser uma mera coalizão de países emergentes que buscam uma maior participação. O BRICS Plus significa uma transformação qualitativa e não meramente quantitativa, surgindo como uma força geopolítica centrípeta nesta nova era de transformações estruturais.

A atração do BRICS Plus

À luz do contexto descrito, vários fatores-chave contribuem para a expansão do BRICS Plus, tornando-o um polo de atração para os países do Sul Global. Esses fatores estão atravessados pelo lento processo de declínio dos Estados Unidos e sua gradual perda de credibilidade internacional em diversos planos.

¬¬¬ Fator geopolítico: 

# muitos países, incluindo aliados dos Estados Unidos, como Arábia Saudita (em relação ao petróleo), e Turquia (em matéria de segurança), perderam a confiança na liderança americana. Essas nações chegaram a reconhecer a incapacidade dos Estados Unidos em oferecer bens públicos internacionais como o fizeram no período do pós-guerra com seus aliados a partir de 1945.

¬¬¬ Fator financeiro internacional: 

# a utilização do dólar americano como uma arma contra seus adversários e a aplicação de sanções econômicas indiscriminadamente estão erodindo a confiança no sistema monetário internacional e impulsionando um embrionário processo de desdolarização. O impacto a longo prazo dessa tendência poderia levar a um sistema financeiro mundial mais multicêntrico. Essa mudança poderia abrir caminho para uma nova ordem econômica internacional que inclua mecanismos monetários alternativos para meios de pagamento, unidades de valor e reservas de valor, além do fortalecimento de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, o banco dos BRICS) e o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (AIIB).

¬¬¬ Fator cultural e civilizatório: 

# o BRICS Plus promove um novo tipo de globalização inclusiva que reconhece a diversidade cultural e de civilizações frente ao universalismo eurocêntrico promovido pelo Ocidente geopolítico. Esse enfoque se baseia em um quadro comum de valores, como a soberania, a coexistência pacífica e a não intervenção nos assuntos internos, refletidos no “espírito” da Conferência de Bandung de 1955.

¬¬¬ A Governança mundial: 

# o BRICS Plus pretende promover um conjunto alternativo de normas e valores que desafiem a atual ordem mundial dominada pelo Ocidente. O principal objetivo é consolidar um sistema multipolar e democratizar as relações internacionais. Nesse contexto as economias emergentes e os países do Sul Global teriam uma maior influência na economia global e na governança mundial.

Essa expectativa está em consonância com os objetivos mais amplos do grupo, que é reequilibrar a ordem econômica e política mundial em favor das nações em desenvolvimento, marginalizadas nas instituições internacionais existentes — a ordem liberal baseada em regras — dominadas pelo Ocidente.

·        Perspectivas para uma governança mundial multicêntrica

A importância do BRICS Plus deve ser entendida por sua contribuição à proposta de um novo modelo de governança mundial frente à policrise assíncrona atual. Esse modelo deve nascer do processo de desconexão em curso, no qual a governança dos assuntos mundiais deve ser mais compartilhada e colaborativa entre várias potências e entre elas e o Sul Global, em vez de estar dominada por uma única superpotência ou um pequeno grupo de nações ocidentais.

Em primeiro lugar, a governança mundial atual indica que a globalização neoliberal está em processo de mutação. Sua superação dependerá de como os países lidarão com uma economia mundial cujo novo centro dinâmico se localiza na Ásia e inclui variedades de sistemas econômicos alternativos não subordinados, mas sim conectados ao modelo respaldado pelas doutrinas neoliberais ocidentais.

Em segundo lugar, uma renovada governança mundial, produto da desconexão global, deve significar a transição do domínio hegemônico ocidental liderado pelos EUA para outro, em que nenhum hegemônico ou bloco hegemônico (Ocidente geopolítico) definirá as normas e valores mundiais imperantes de maneira autocrática.

Essas transformações criarão oportunidades para acomodar e incluir estratégias e políticas de desenvolvimento alternativas. Além disso, abre a possibilidade de ensaiar diferentes perspectivas sobre os mecanismos, normas e valores que impulsionam o desenvolvimento e o crescimento das nações.

Em terceiro lugar, as doutrinas ocidentais devem se flexibilizar, ser menos rígidas, menos impositivas e eurocêntricas em relação aos direitos de propriedade, às concepções sobre o que é crescimento econômico, às noções de Estado de Direito, à ideia de economia de mercado, à circulação de divisas, às ordens econômicas, à concepção de modernização, às formas de democracia, aos direitos humanos e à ideia de desenvolvimento.

Em quarto lugar, as economias emergentes aceleram uma transição na ordem internacional atual, buscando um maior equilíbrio de poder nas instituições da governança mundial, processo que coloca em xeque o eixo tradicional Norte-Sul e as distinções convencionais de centro-periferia.

Em quinto lugar, uma nova governança mundial deve ser construída a partir de uma realidade complexa, gerada pelas contradições da globalização em curso. Ou seja, uma estrutura econômica mundial que se caracterize por uma interconexão e interdependência em transformação que, ao mesmo tempo, gere as condições de um processo de desconexão que modifique a hierarquia na estratificação internacional.

Esse poder transformador das economias emergentes está desempenhando um papel significativo na divisão mundial do trabalho, nas cadeias de suprimento, nas cadeias de valor e nas finanças globais, influenciando tanto o Norte Global quanto o Sul Global com diversas oportunidades e desafios.

Concluindo, apesar das diversas limitações apontadas por seus críticos, o BRICS Plus surgiu como a força transformadora centrípeta que constituirá um novo polo de poder no cenário geopolítico e econômico mundial.

 

¨      ‘A União Europeia, a Otan e os cavaleiros templários’. Por José Luís Fiori

O projeto de integração europeia foi concebido, depois da Segunda Guerra Mundial, como parte de um sistema supranacional liderado e tutelado pelos Estados Unidos, que visava pacificar um continente que viveu em estado de guerra quase permanente nos últimos 800 anos. O projeto inicial foi lançado em 1951 com a assinatura, em Paris, do tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Eram apenas seis países – Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Países Baixos – mas depois a comunidade inicial se expandiu e se transformou na atual União Europeia, com o Tratado de Maastricht, assinado em 1992, e chegou a ter 28 países-membros, até a saída da Grã-Bretanha, em janeiro de 2020.

O projeto inicial da Comunidade Europeia propunha a desmilitarização parcial dos Estados europeus, que deveriam transferir sua soberania militar para uma organização supranacional de defesa – a Otan, que já havia sido criada em 1949 – que garantiria “ajuda mútua” em caso de ataque externo a algum dos países-membros da comunidade. Apesar disso, o Tratado de Maastricht, assinado logo depois da unificação da Alemanha, estabeleceu como objetivo o desenvolvimento de uma política de segurança coletiva própria da União Europeia, mas até hoje nunca havia logrado equacionar o problema do relacionamento desta política de defesa regional com a política de segurança coletiva da Otan, tutelada pelos Estados Unidos.

A formação e a expansão inicial da Comunidade Europeia avançaram sob a liderança conjunta da França e da Alemanha Ocidental, até a queda do Muro de Berlim. Entretanto, depois da reunificação da Alemanha e da incorporação dos antigos países comunistas da Europa do Leste, a União Europeia caiu prisioneira de uma armadilha circular, da qual nunca conseguiu se desvencilhar. Ela precisava centralizar seu poder político e militar para poder formular uma estratégia internacional, mas essa centralização foi sistematicamente boicotada por seus principais sócios, a França, a Alemanha Ocidental e a Inglaterra, que nunca admitiram abrir mão de suas soberanias nacionais. Um impasse que ficou ainda mais agudo depois da reunificação da Alemanha, que se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente e passou a ter uma política externa cada vez mais assertiva e independente. O comportamento alemão reacendeu as antigas fraturas e competições do Velho Continente, acentuando o declínio da França e favorecendo a decisão britânica de se retirar do projeto comum. Mesmo assim, a União Europeia seguiu sem resolver sua “falha genética” fundamental, ou seja, a falta de poder central unificado capaz de impor objetivos comuns a todos os seus Estados-membros, e continuou dependendo dos Estados Unidos para sua defesa comum.

Essa situação começou a se modificar com a Guerra na Ucrânia, a partir de 2022, que reacendeu o medo comum e a paranoia da União Europeia com relação à Rússia, facilitando o processo de transformação da Otan no verdadeiro governo militar da União Europeia, responsável direto pelo planejamento, financiamento e municiamento das tropas ucranianas.

A verdade é que, desde o momento de sua criação, em 1949, o objetivo da Otan foi “manter os russos fora”, segundo as palavras do Lord Ismay, seu primeiro secretário-geral. Esse objetivo foi cumprido plenamente ao longo de toda a Guerra Fria. Mas depois da dissolução da União Soviética, em 1991, a Otan passou por uma espécie de “crise de identidade” e de redefinição do seu papel dentro da Europa e no sistema internacional.

Num primeiro momento, a organização militar se voltou para o Leste e para a ocupação/incorporação dos países da Europa do Leste que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia – expansão que está na origem última da crise e da guerra na Ucrânia. Além disso, participou diretamente, pela primeira vez na sua história, das guerras da Iugoslávia e do Kosovo, em 1999. E antes disso, em 1994, lançou um projeto de intercâmbio militar e segurança com os países árabes do norte da África, o chamado “Diálogo Mediterrâneo”. Dez anos depois, na sua reunião em Istambul, de 2004, decidiu expandir seu objetivo inicial, criando a “Iniciativa de Cooperação de Istambul” (ICI), voltada para os países do Oriente Médio. No mesmo período, a Otan se colocou ao lado das tropas anglo-americanas, nas guerras do Iraque e do Afeganistão, e depois também no norte da África. E agora, mais recentemente, vem se propondo a expandir sua presença na Ásia, participando do cerco militar da China que vem sendo implementado pelos Estados Unidos.

A Guerra na Ucrânia, entretanto, e a opção dos principais governos europeus de envolver-se diretamente no conflito, acabaram envolvendo a Otan na primeira grande guerra europeia desde a Segunda Guerra Mundial. E tudo indica neste momento que os principais países europeus, com a nova chefia da Comissão Europeia e da Otan, queiram prolongar o conflito da Ucrânia, para facilitar a criação de uma “economia de guerra” no território europeu. Uma economia de guerra que seria liderada pela Alemanha, que já renunciou a sua indústria manufatureira tradicional para transformar-se na cabeça de um “complexo militar” envolvendo os demais países europeus. Esse novo projeto para a Otan e a União Europeia conta com o apoio do atual governo norte-americano, e deverá se manter e aprofundar no caso de vitória dos democratas na próxima eleição presidencial.

Pelo menos foi isto que ficou sacramentado ao final da 75ª Reunião Anual de Cúpula da Otan, realizada na cidade de Washington, em julho de 2024, que confirmou a decisão de prosseguir e aprofundar o envolvimento da Organização na sua guerra Rússia, incluindo agora também a China na condição de adversária da Otan. Neste sentido, ao comemorar seus 75 anos, se pode dizer que a Otan decidiu se transformar definitivamente no “governo militar” da União Europeia, e, ao mesmo tempo, na última fortaleza da “civilização ocidental” contra os “ortodoxos russos”, os “povos islâmicos” e a “civilização chinesa”. Uma espécie de Cavaleiros Templários do século XXI, responsáveis pela defesa do “Norte Global”.

 

Fonte: Outras Palavras

 

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