A Busca Democrática do Comum na
Diversidade: Desafios para a Construção de Contra Hegemonia
Precisamos ter
presente os momentos históricos da própria tomada de consciência e as lutas
efetivas contra o bloco político dominante do capitalismo, que conta com o
poder de Estado como expressão de sua hegemonia. Não podemos achar que temos
hegemonia democrática transformadora. O Lula, atual presidente, que ganhou uma
eleição democrática, com ampla e extremamente heterogênea aliança, diante de um
candidato com propostas de extrema direita autoritária, não expressa nossa
hegemonia. Ela carrega uma proposta democrática para gerir o capitalismo que
temos. A governabilidade possível imediata é nos limites de tal realidade
estatal, considerando os três poderes e a nossa Constituição. Evitamos o pior,
a destruição da própria democracia. Mas o capitalismo, em sua versão de
neoliberalismo globalizado e financeirizado continua sendo o pilar, dentro de
limites democráticas, menos destrutivos e excludentes. No jargão jornalístico
vivemos o comando do “mercado” ou, de maneira mais emblemática, sob a hegemonia
da “Faria Lima” – das entidades empresariais dos diversos setores econômicos,
líderes dos 1% mais ricos.
Considero que é
fundamental termos política e analiticamente bem claro isto para podermos
avaliar os limites das possibilidades de avanços em tal encruzilhada histórica.
O capitalismo é um câncer social bem implantado no Brasil. É bom que se diga
que ele se dá melhor em contexto democrático, apesar de seus representantes
nunca duvidarem de apelar a ditaduras e guerras, se necessário for, para
preservar seus interesses de acumulação. O fato de termos ganho um governo
democrático diante da proposta da extrema direita foi fundamental no momento
histórico, sem dúvida. Mas não transformou a lógica do Estado. Este Estado, as
instituições, os processos e as políticas continuam dentro das “regras do livre
mercado capitalista”, com possibilidades de ajustes e maior atenção ao social,
claro, mas dentro de limites estruturais. Basta lembrar do mantra do teto de
gastos e ajuste fiscal, como cláusulas pétreas, não da Constituição, mas do
mercado. No entanto, precisamos reconhecer e nos sentir aliviados com o Governo
Lula, pois vivemos uma condição melhor para ação política no imediato e no
longo prazo para conquistar hegemonia política transformadora.
Para enfrentar a
questão da construção e conquista de hegemonia temos que olhar para nós mesmos,
cidadanias diversas, para as oportunidades que se abrem em tal contexto. Para
lidar com a oportunidade e o desafio, esclareço a perspectiva em que me situo: alinho-me
com quem defende uma visão e proposta de democracia ecossocial transformadora,
intensa pela participação social em busca de direitos ecossociais iguais
plenos, na diversidade do que somos. Nesta visão, nada ortodoxa ou dogmática,
que tenta não se aferrar aos enferrujados dogmas doutrinários, as correlações
de forças e lutas de classes continuam a ser a base do movimento, de formas
muito combinadas e complexas, essencialmente num cenário mundial. Não
convivemos mais com locomotivas e navios a vapor, mas com jatos, satélites e
naves espaciais, ao mesmo tempo com miséria, fome e grandes periferias,
internas e entre países. Como em todos os momentos históricos, o desafio é nos
reinventarmos pois vivemos este momento histórico, nem passado e nem futuro, mas
presente desafiador, cruel por um lado e estimulante por outro.
Talvez este seja o
maior desafio! A construção de hegemonia não se faz a partir do Estado. A
hegemonia se expressa no poder estatal, mas o processo de disputa que a gera
precisa ter raízes profundas no chão da sociedade, construindo adesão política
majoritária, para conquistar um poder político democrático necessário para a
transformação do Estado e da Economia.[i] Tarefa política desafiadora,
contínua, muito aquém e além dos ritos democráticos de eleições periódicas.
Trata-se de forjar o bloco histórico dos explorados, excluídos, dominados e
discriminados, nunca nos esquecendo que convivemos com vergonhosa injustiça
social e descontrolada destruição ecológica. Mas, ao mesmo tempo, temos diante
de nós enorme diversidades de modos de ser e agir, gente tomando consciência de
si e para si, assim como de outras e outros, criando identidades coletivas
compartilhadas, propostas, organização e formas de luta cidadã, forjando
coalizões em redes e fóruns… até partidos políticos.
Aí é que reside o
desafio de construção de contra hegemonia cidadã ecossocial. Ela não depende do
Estado, depende de nós mesmos, cidadanias ativas. Não podemos ser dogmáticos
diante do desafio, pois a teoria política nunca substitui a análise de situações
concretas, sempre, em complexo movimento histórico, único ao seu modo. A teoria
é uma referência fundamental, mas não substitui a necessária tarefa política de
análise da história passada, da situação atual, e da conjuntura de relações de
forças no momento vivido, assim como possíveis perspectivas. Tal tarefa precisa
ser feita e renovada continuamente, pois implica em decompor uma realidade em
complexo movimento histórico e recompô-la como uma realidade politicamente
pensada, capaz de inspirar ações e rumos da ação política cidadã.
A hegemonia assenta na
unidade de forças políticas – bloco político – forjada em torno a valores e
princípios orientadores comuns, análises e propostas agregadas num grande saber
cidadão compartilhado como um bem comum, formas de ação diversas mas coalizionadas
organicamente, como um modo comum de agir com autonomia de cada segmento, num
disputa política e cultural no palco da sociedade.
O comum na diversidade
não é um dado, precisa ser construído a partir da sociedade num país
extremamente diverso, em formas de viver e territórios ecossociais diversos,
para que o bloco político democrático dos dominados possa adquirir unidade e
consistência diante do bloco de classes dominantes capitalistas, levando a sua
ação a adquirir capacidade politicamente transformadora.
Carregamos heranças da
conquista e colonização, de extermínio de povos originários e apropriação de
seus territórios – ainda intensa até hoje, só não vê quem não quer – , de
tráfico negreiro e trabalho escravo, de patriarcalismo, de extrativismos
cíclicos, ainda centrais numa economia voltada para fora, com uma tardia
industrialização tardia. Estamos vivendo sob o poder e dependentes de donos de
gado, gente e grandes latifúndios, tanto tradicionais como modernos, em
coalizão com os “donos do mercado” – em conluio com seus operadores e
especuladores nas bolsas. “Os donos”, combinados, provocam migrações internas
de grande escala, com grandes periferias urbanas e rurais, entregues ao festim
de milicianos e traficantes e sua economia paralela. Apesar de certa ousadia de
Lula, o bloco político das classes dominantes nem está aí – aliás nunca esteve
– por ocupar um lugar dependente no concerto das nações, apesar de nosso
tamanho territorial, populacional e econômico.
Mas, não duvidemos, se
trata de um minúsculo bloco de classes capitalistas de grande poder, que dita,
em última análise, a lógica em que assenta o Estado, suas possibilidades e
limites. O grande horizonte é buscar a transformação do próprio Estado para poder
transformar a economia do Brasil e conquistar uma possibilidade de “viver
saboroso” ou “bem viver”. E a força transformadora só poderá emergir do coração
da sociedade, da diversidade de situações de vida e trabalho, num bloco
político histórico dos dominados e excluídos, que conquista hegemonia,
definindo rumos e possibilidades democráticas de ecossociais para todos, sem
esquecer ninguém.
Dito isto – e nem é
tudo – volto ao ponto central: não vamos construir hegemonia democrática
ecossocial e transformadora sem dar conta da enorme diversidade social contida
neste nosso maravilhoso país, com seu povo e território, sofridos apesar de,
muitas vezes, celebrados. Não existe luta maior ou menor, mas lutas
necessárias, todas estratégicas. Com os dogmatismos de esquerda caminhamos para
acumular derrotas políticas. Temos alternativas, muitas e variadas, que são um
patrimônio coletivo da cultura, da arte, da educação, da ciência, da
comunicação, até da fé e prática religiosa. O desafio e sua valorização já foi
pontuado pelo memorável Paulo Freire, que nos propôs o método da troca de
conhecimentos, inspirado em muitos saberes de resistência e de busca de
autonomia. Aliás, é de autonomia, de libertação, de criatividade
político-cultural que se trata. Temos de sobra, mas sem articulação política na
escala necessária. Tal tarefa política, educativa, cultural e de comunicação,
com um viés de liberdade de disputa de visões, narrativas e modos de agir,
traduzidos e difundidos discursos significantes por todos os meios – arte,
festas, música, literatura, redes, rádios comunitárias, alto falantes,
manifestações, etc.– tomada da rua como o espaço cidadão por excelência – é o
campo da disputa de hegemonia que cria raízes.
Fonte: Por Cândido
Grzybowski, em Sentidos e Rumos
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