Brasil pode ter agência única para
avaliação de tecnologias, mas avanço depende do Ministério da Saúde
A discussão sobre a
judicialização da saúde pública ganhou nos últimos meses novos capítulos, com
decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecendo critérios para
processos que envolvam fornecimento de medicamentos não incorporados ao Sistema
Único de saúde (SUS) e o acordo entre União, estados e municípios sobre a
responsabilidade de cada ente no custeio de tratamentos obtidos via decisão
judicial.
No entanto, outros
desdobramentos podem surgir dessa tentativa do STF em organizar as
discrepâncias da saúde no país, colocando os interessados para dialogar. Na
última segunda-feira (21), o ministro Gilmar Mendes falou a jornalistas,
durante o CNN Talks, que a ideia de construir uma agência única de avaliação de
tecnologias de saúde tem sido ventilada.
“É uma discussão que
está posta. Isso tem que ter uma iniciativa do Executivo e levar ao Legislativo
para conseguir uma grande reforma dos sistemas. O pessoal da saúde suplementar
reclama que era preciso que houvesse o mesmo tratamento que se dá para o SUS,
para o sistema suplementar, e que houvesse essa reforma. Acho que é importante
que haja essa chamada agência de análise de tecnologia. Já há propostas nesse
sentido”, disse o ministro.
Apesar do tema não ser
exatamente novidade, ressurge no contexto da incorporação de tratamentos com
valores cada vez mais altos, na casa dos milhões de reais. A ideia seria trazer
mais organização, celeridade, eficiência e independência, fazendo que a nova
agência avaliasse medicamentos de acordo com a necessidade da população. Isso
englobaria os sistemas público e privado, substituindo o papel da Comissão
Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e
da Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde
Suplementar (Cosaúde).
Para as operadoras de
planos de saúde, o tema é considerado importante para discutir a precificação
dos produtos no Brasil, possibilitando uma proximidade dos valores praticados
pelo Ministério da Saúde, principalmente em terapias avançadas e doenças raras.
O tema vem ganhando força na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que
busca encabeçar a discussão junto a outros poderes.
Entre 2019 e 2020,
Denizar Vianna, então secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos
do Ministério da Saúde, tentou liderar a discussão dentro da pasta, propondo
mudanças para o então ministro Henrique Mandetta. Com a troca de nomes e a chegada
da pandemia de Covid-19, o assunto acabou saindo da pauta.
“Iniciamos essa
discussão lá atrás, construímos um documento bastante robusto e temos municiado
a ANS em relação a isso. No STF, recentemente discutimos o compartilhamento de
risco, que é outra discussão importante, e me pediram a fundamentação também da
agência única, que a gente chama de Agência Nacional de Avaliação de
Tecnologias em Saúde (ANATS). Alguns parlamentares também estão demandando
isso. Mas não vemos um movimento do Ministério da Saúde”, afirmou Denizar.
Procurado, o
Ministério da Saúde afirma estar elaborando uma nota sobre o tema, mas não
houve envio até o fechamento desta matéria. Caso a resposta seja enviada, a
redação do Futuro da Saúde irá atualizar essa reportagem.
• Primeiros passos e importância
Durante o período
entre 2019 e 2020, o Instituto de
Avaliação de Tecnologia em Saúde (IATS) coordenou, à pedido do Ministério da
Saúde e financiado pela Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial
da Saúde, a elaboração do Projeto Estruturante de Agência Nacional de Avaliação
de Tecnologias em Saúde (ANATS), um documento que apresentava um modelo,
financiamento e estrutura para o nosso órgão que iria unificar os processos de
ATS.
A ideia era trazer
mais sustentabilidade, celeridade e isonomia ao processo, promovendo sinergia
entre as esferas, independência e fortalecimento das relações de trabalho. A
agência única, além de avaliar tecnologias para incorporação no SUS e na saúde
suplementar, iria assessorar a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos
(CMED). Atualmente, os três órgãos possuem processos semelhantes de ATS, mas
feito de forma independente.
“A agência ajudaria
reduzir essas redundâncias e os profissionais que trabalham com ATS, são
escassos. As necessidades são maiores do que a disponibilidade de pessoas, o
que logicamente também influencia nos recursos financeiros”, explica Maicon
Falavigna, pesquisador do IATS, sócio da Inova Medical e um dos coordenadores
do projeto que resultou no documento.
Parte do motivo para a
sugestão vem na busca pela independência do processo. Apesar da Conitec ser uma
comissão que faz recomendações, o Departamento de Gestão e Incorporação de
Tecnologias em Saúde tem forte influência na organização e na fila de tecnologias
que serão avaliadas. Foi o caso, por exemplo, em 2021, quando avaliou o chamado
“kit Covid”. Apesar disso, deu parecer negativo à incorporação.
“As pessoas podem ser
trocadas também de acordo com a definição da pasta. A falta de independência
abre espaço para interferências, que podem ter seus motivos legítimos ou não,
incluindo questões ideológicas, como observado durante a Covid, a aspectos orçamentários,
uma vez que as definições da Conitec impactam em gastos públicos” observa
Falavigna.
Ter uma agência
independente também abre espaço para ter funcionários de carreira. Atualmente,
existem situações onde pessoas envolvidas com ATS são bolsistas ou com
contratos provisórios, o que torna-as mais vulneráveis às pressões políticas.
Ter uma estrutura sólida, como das agências reguladoras, pode contribuir para o
fortalecimento do processo.
Em um cenário onde o
STF definiu critérios mais rígidos para que medicamentos não incorporados pela
Conitec, fortalecendo o papel da Comissão, cobra-se para que haja uma maior
transparência sobre os processos de avaliação. A agência única ganha força nesse
sentido também.
“As recomendações da
Conitec devem sim ser levadas em consideração pelo judiciário, mas a decisão do
STF acaba sendo perigosa porque coloca a Conitec como um padrão não passível de
contestação, quando temos questões que deveriam ser melhoradas, em especial em
sua governança”, avalia o pesquisador do IATS.
• Saúde suplementar
Alexandre Fioranelli,
diretor de Normas e Habilitação dos Produtos da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), é um dos nomes engajados pela proposta de agência
independente. Ele tem discutido o tema em eventos que tem participado,
apontando a iniciativa como um dos caminhos viáveis para buscar equidade para o
sistema de saúde.
“Existem várias razões
para pensarmos em uma agência única de incorporação de tecnologias em saúde,
dentre elas uma maior celeridade no processo de avaliação, com potencial de
reduzir a judicialização da saúde. Outra motivação é a independência técnica do
processo. Em outra frente, também seria possível, com um órgão específico para
esse trabalho, a definição de prioridades no processo de ATS, segundo a carga
de doenças para a população brasileira e as necessidades não atendidas”, afirma
o diretor.
A possibilidade de
centralizar a discussão sobre preços é vista como a mais importante, em um
cenário de novas terapias com valores na casa dos milhões de reais. No caso da
saúde suplementar, onde dois terços é composto por pequenas e médias
operadoras, com média de 8 mil vidas, o tema tem ganhado força quando se fala
de sustentabilidade, já que um medicamento pode empenhar todo o orçamento
previsto de uma empresa.
“Este é um caminho
possível para determinadas tecnologias, onde a governança do Ministério da
Saúde pode ajudar na aquisição e discussão de preços, principalmente para
tecnologias de alto custo”, observa Fioranelli. Para Denizar Vianna, o caminho
dessa discussão sobre aquisição pode começar por uma área específica, como
doenças raras. A ideia seria junto a um processo de fornecimento unificado,
semelhante a uma fila de transplantes, com cada paciente tendo sua fonte
pagadora, seja o SUS ou o plano de saúde.
Gustavo Ribeiro,
presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), também vê com
bons olhos a iniciativa da agência única e independente. Ele aponta que, com a
mudança na legislação em 2022, que obriga a ANS incorporar tecnologias incorporadas
pelo SUS, em até 180 dias, o processo de ATS já vem se unificando.
“A ideia de uma
agência única traz uniformização, equilíbrio e segurança, para o usuário e para
as operadoras, assim como para o SUS, de saber que aquela tecnologia que está
sendo incorporada, tem segurança e se encaixa dentro da equação do custo. Não
há recursos ilimitados e, dentro dessa linha, essa equalização por uma agência
única é muito salutar para o Brasil e para todos”, afirma Ribeiro.
• Mesma precificação?
A essência do debate
reside na tentativa de olhar para o sistema de saúde como um só, sem separar
saúde pública e saúde privada. Por isso, os especialistas defendem que a
discussão de precificação deve ser conjunta, em prol da saúde da população.
“Quem é que paga plano
de saúde? São as empresas e pessoas físicas. Se subir a mensalidade, daqui a
pouco o plano de saúde vai virar artigo de luxo. Já está virando. Para se
manter, a classe média está fazendo downgrade do plano de saúde e em breve só
vai ter plano de cartão de desconto”, afirma Denizar Vianna.
A questão de ser um
segmento que tem lucro sempre acende um alerta para quem critica a proposta da
agência única, mas como explica Denizar, o impacto orçamentário é repassado aos
usuários, em uma perspectiva de controlar a sinistralidade. Por isso, a opção
de discutir preço de forma conjunta está na pauta, principalmente em um cenário
onde há o envelhecimento da população e os novos tratamentos.
Por outro lado, o
ex-secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da
Saúde propõe que exista a possibilidade de mudança na forma como o país negocia
com a indústria farmacêutica, tornando as negociações privadas. Isso colabora para
que não haja uma discussão sobre os preços praticados em diferentes países.
“Podemos até avançar
na discussão da confidencialidade do preço, que é uma ferramenta que o Reino
Unido usa, para que esse preço não contamine outros mercados. O preço no
Brasil, pelo tamanho da população, pode ser muito mais atraente do que no
Uruguai, com 3 milhões de vidas. Mas a oportunidade de a gente ter um preço de
entrada para a saúde suplementar no país seria muito interessante”, explica
ele.
Por outro lado, Vianna
reforça que é preciso colocar a composição do preço na discussão. Segundo ele,
o fortalecimento da China como fabricante de medicamentos de altos custos vai
mudar a lógica, já que o país asiático consegue oferecer CAR-T, por exemplo,
por um décimo do preço praticado, o que irá forçar o mercado internacional a
reduzir os valores.
“Até o americano está
preocupado com o preço do medicamento. O presidente Biden fez isso para a
compra de medicamentos no Medicare. Era impensável que o americano regulasse
preços”, observa ele.
Vianna se refere ao
anuncio recente em que o governo Biden-Harris anunciou uma medida histórica
para reduzir os custos de medicamentos para idosos nos Estados Unidos. Graças à
Lei de Redução da Inflação, o Medicare poderá negociar preços de medicamentos pela
primeira vez. Com isso, espera-se que os contribuintes americanos economizem
US$ 6 bilhões, em uma negociação para reduzir em até 79% os preços de 10
medicamentos essenciais para o tratamento de doenças como câncer, diabetes e
doenças cardíacas.
Fonte: Futuro da Saúde
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