sábado, 26 de outubro de 2024

Brasil pode ter agência única para avaliação de tecnologias, mas avanço depende do Ministério da Saúde

A discussão sobre a judicialização da saúde pública ganhou nos últimos meses novos capítulos, com decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelecendo critérios para processos que envolvam fornecimento de medicamentos não incorporados ao Sistema Único de saúde (SUS) e o acordo entre União, estados e municípios sobre a responsabilidade de cada ente no custeio de tratamentos obtidos via decisão judicial.

No entanto, outros desdobramentos podem surgir dessa tentativa do STF em organizar as discrepâncias da saúde no país, colocando os interessados para dialogar. Na última segunda-feira (21), o ministro Gilmar Mendes falou a jornalistas, durante o CNN Talks, que a ideia de construir uma agência única de avaliação de tecnologias de saúde tem sido ventilada.

“É uma discussão que está posta. Isso tem que ter uma iniciativa do Executivo e levar ao Legislativo para conseguir uma grande reforma dos sistemas. O pessoal da saúde suplementar reclama que era preciso que houvesse o mesmo tratamento que se dá para o SUS, para o sistema suplementar, e que houvesse essa reforma. Acho que é importante que haja essa chamada agência de análise de tecnologia. Já há propostas nesse sentido”, disse o ministro.

Apesar do tema não ser exatamente novidade, ressurge no contexto da incorporação de tratamentos com valores cada vez mais altos, na casa dos milhões de reais. A ideia seria trazer mais organização, celeridade, eficiência e independência, fazendo que a nova agência avaliasse medicamentos de acordo com a necessidade da população. Isso englobaria os sistemas público e privado, substituindo o papel da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e da Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar (Cosaúde).

Para as operadoras de planos de saúde, o tema é considerado importante para discutir a precificação dos produtos no Brasil, possibilitando uma proximidade dos valores praticados pelo Ministério da Saúde, principalmente em terapias avançadas e doenças raras. O tema vem ganhando força na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que busca encabeçar a discussão junto a outros poderes.

Entre 2019 e 2020, Denizar Vianna, então secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, tentou liderar a discussão dentro da pasta, propondo mudanças para o então ministro Henrique Mandetta. Com a troca de nomes e a chegada da pandemia de Covid-19, o assunto acabou saindo da pauta.

“Iniciamos essa discussão lá atrás, construímos um documento bastante robusto e temos municiado a ANS em relação a isso. No STF, recentemente discutimos o compartilhamento de risco, que é outra discussão importante, e me pediram a fundamentação também da agência única, que a gente chama de Agência Nacional de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ANATS). Alguns parlamentares também estão demandando isso. Mas não vemos um movimento do Ministério da Saúde”, afirmou Denizar.

Procurado, o Ministério da Saúde afirma estar elaborando uma nota sobre o tema, mas não houve envio até o fechamento desta matéria. Caso a resposta seja enviada, a redação do Futuro da Saúde irá atualizar essa reportagem.

•        Primeiros passos e importância

Durante o período entre 2019  e 2020, o Instituto de Avaliação de Tecnologia em Saúde (IATS) coordenou, à pedido do Ministério da Saúde e financiado pela Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial da Saúde, a elaboração do Projeto Estruturante de Agência Nacional de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ANATS), um documento que apresentava um modelo, financiamento e estrutura para o nosso órgão que iria unificar os processos de ATS.

A ideia era trazer mais sustentabilidade, celeridade e isonomia ao processo, promovendo sinergia entre as esferas, independência e fortalecimento das relações de trabalho. A agência única, além de avaliar tecnologias para incorporação no SUS e na saúde suplementar, iria assessorar a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Atualmente, os três órgãos possuem processos semelhantes de ATS, mas feito de forma independente.

“A agência ajudaria reduzir essas redundâncias e os profissionais que trabalham com ATS, são escassos. As necessidades são maiores do que a disponibilidade de pessoas, o que logicamente também influencia nos recursos financeiros”, explica Maicon Falavigna, pesquisador do IATS, sócio da Inova Medical e um dos coordenadores do projeto que resultou no documento.

Parte do motivo para a sugestão vem na busca pela independência do processo. Apesar da Conitec ser uma comissão que faz recomendações, o Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde tem forte influência na organização e na fila de tecnologias que serão avaliadas. Foi o caso, por exemplo, em 2021, quando avaliou o chamado “kit Covid”. Apesar disso, deu parecer negativo à incorporação.

“As pessoas podem ser trocadas também de acordo com a definição da pasta. A falta de independência abre espaço para interferências, que podem ter seus motivos legítimos ou não, incluindo questões ideológicas, como observado durante a Covid, a aspectos orçamentários, uma vez que as definições da Conitec impactam em gastos públicos” observa Falavigna.

Ter uma agência independente também abre espaço para ter funcionários de carreira. Atualmente, existem situações onde pessoas envolvidas com ATS são bolsistas ou com contratos provisórios, o que torna-as mais vulneráveis às pressões políticas. Ter uma estrutura sólida, como das agências reguladoras, pode contribuir para o fortalecimento do processo.

Em um cenário onde o STF definiu critérios mais rígidos para que medicamentos não incorporados pela Conitec, fortalecendo o papel da Comissão, cobra-se para que haja uma maior transparência sobre os processos de avaliação. A agência única ganha força nesse sentido também.

“As recomendações da Conitec devem sim ser levadas em consideração pelo judiciário, mas a decisão do STF acaba sendo perigosa porque coloca a Conitec como um padrão não passível de contestação, quando temos questões que deveriam ser melhoradas, em especial em sua governança”, avalia o pesquisador do IATS.

•        Saúde suplementar

Alexandre Fioranelli, diretor de Normas e Habilitação dos Produtos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), é um dos nomes engajados pela proposta de agência independente. Ele tem discutido o tema em eventos que tem participado, apontando a iniciativa como um dos caminhos viáveis para buscar equidade para o sistema de saúde.

“Existem várias razões para pensarmos em uma agência única de incorporação de tecnologias em saúde, dentre elas uma maior celeridade no processo de avaliação, com potencial de reduzir a judicialização da saúde. Outra motivação é a independência técnica do processo. Em outra frente, também seria possível, com um órgão específico para esse trabalho, a definição de prioridades no processo de ATS, segundo a carga de doenças para a população brasileira e as necessidades não atendidas”, afirma o diretor.

A possibilidade de centralizar a discussão sobre preços é vista como a mais importante, em um cenário de novas terapias com valores na casa dos milhões de reais. No caso da saúde suplementar, onde dois terços é composto por pequenas e médias operadoras, com média de 8 mil vidas, o tema tem ganhado força quando se fala de sustentabilidade, já que um medicamento pode empenhar todo o orçamento previsto de uma empresa.

“Este é um caminho possível para determinadas tecnologias, onde a governança do Ministério da Saúde pode ajudar na aquisição e discussão de preços, principalmente para tecnologias de alto custo”, observa Fioranelli. Para Denizar Vianna, o caminho dessa discussão sobre aquisição pode começar por uma área específica, como doenças raras. A ideia seria junto a um processo de fornecimento unificado, semelhante a uma fila de transplantes, com cada paciente tendo sua fonte pagadora, seja o SUS ou o plano de saúde.

Gustavo Ribeiro, presidente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), também vê com bons olhos a iniciativa da agência única e independente. Ele aponta que, com a mudança na legislação em 2022, que obriga a ANS incorporar tecnologias incorporadas pelo SUS, em até 180 dias, o processo de ATS já vem se unificando.

“A ideia de uma agência única traz uniformização, equilíbrio e segurança, para o usuário e para as operadoras, assim como para o SUS, de saber que aquela tecnologia que está sendo incorporada, tem segurança e se encaixa dentro da equação do custo. Não há recursos ilimitados e, dentro dessa linha, essa equalização por uma agência única é muito salutar para o Brasil e para todos”, afirma Ribeiro.

•        Mesma precificação?

A essência do debate reside na tentativa de olhar para o sistema de saúde como um só, sem separar saúde pública e saúde privada. Por isso, os especialistas defendem que a discussão de precificação deve ser conjunta, em prol da saúde da população.

“Quem é que paga plano de saúde? São as empresas e pessoas físicas. Se subir a mensalidade, daqui a pouco o plano de saúde vai virar artigo de luxo. Já está virando. Para se manter, a classe média está fazendo downgrade do plano de saúde e em breve só vai ter plano de cartão de desconto”, afirma Denizar Vianna.

A questão de ser um segmento que tem lucro sempre acende um alerta para quem critica a proposta da agência única, mas como explica Denizar, o impacto orçamentário é repassado aos usuários, em uma perspectiva de controlar a sinistralidade. Por isso, a opção de discutir preço de forma conjunta está na pauta, principalmente em um cenário onde há o envelhecimento da população e os novos tratamentos.

Por outro lado, o ex-secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde propõe que exista a possibilidade de mudança na forma como o país negocia com a indústria farmacêutica, tornando as negociações privadas. Isso colabora para que não haja uma discussão sobre os preços praticados em diferentes países.

“Podemos até avançar na discussão da confidencialidade do preço, que é uma ferramenta que o Reino Unido usa, para que esse preço não contamine outros mercados. O preço no Brasil, pelo tamanho da população, pode ser muito mais atraente do que no Uruguai, com 3 milhões de vidas. Mas a oportunidade de a gente ter um preço de entrada para a saúde suplementar no país seria muito interessante”, explica ele.

Por outro lado, Vianna reforça que é preciso colocar a composição do preço na discussão. Segundo ele, o fortalecimento da China como fabricante de medicamentos de altos custos vai mudar a lógica, já que o país asiático consegue oferecer CAR-T, por exemplo, por um décimo do preço praticado, o que irá forçar o mercado internacional a reduzir os valores.

“Até o americano está preocupado com o preço do medicamento. O presidente Biden fez isso para a compra de medicamentos no Medicare. Era impensável que o americano regulasse preços”, observa ele.

Vianna se refere ao anuncio recente em que o governo Biden-Harris anunciou uma medida histórica para reduzir os custos de medicamentos para idosos nos Estados Unidos. Graças à Lei de Redução da Inflação, o Medicare poderá negociar preços de medicamentos pela primeira vez. Com isso, espera-se que os contribuintes americanos economizem US$ 6 bilhões, em uma negociação para reduzir em até 79% os preços de 10 medicamentos essenciais para o tratamento de doenças como câncer, diabetes e doenças cardíacas.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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