sábado, 26 de outubro de 2024

As 'bruxas de Bucha', as ucranianas que de dia são professoras e de noite derrubam drones russos

É quando a noite cai sobre Bucha que as bruxas saem, porque é quando começam os ataque russos com "enxames" de drones.

As 'Bruxas de Bucha', como elas se autodenominam, são uma unidade de defesa aérea voluntária composta quase inteiramente por mulheres, que estão ajudando agora a proteger os céus da Ucrânia, à medida que cada vez mais homens são enviados para as linhas de frente de combate.

Também há mais drones para abater, muitas vezes lançados em ondas pela Rússia para sobrecarregar as principais defesas ucranianas antes de um ataque com mísseis.

Os turnos noturnos permitem que as mulheres conciliem seu trabalho de defesa do país com empregos diurnos como professoras e médicas, por exemplo — há, inclusive, uma manicure.

Muitas dizem que é uma forma de superar a impotência que sentiram quando as forças russas ocuparam a região de Bucha no início da invasão em grande escala.

As histórias de terror daquelas semanas — incluindo assassinatos, torturas e sequestros — só começaram a vir à tona depois que as forças ucranianas libertaram a região no fim de março de 2022.

·        Ataques aéreos e armas antigas

"Tenho 51 anos, peso 100 kg e não consigo correr. Achei que eles iriam me mandar embora, mas me aceitaram!", lembra Valentyna, uma veterinária que se alistou como caçadora de drones há alguns meses, e agora atende pelo codinome Valkyrie.

Ela fala sobre amigos enviados para a linha de frente de combate, e outros que morreram lutando, como parte do que a levou a buscar essa função.

"Posso fazer esse trabalho. O equipamento é pesado, mas nós, mulheres, podemos fazer."

Valentyna consegue demonstrar isso algumas horas depois, quando um alerta de ataque aéreo é acionado em toda a região.

Sua unidade sai da sua base na floresta, e seguimos sua caminhonete na escuridão, enquanto se dirige ao meio de um campo. A equipe de quatro pessoas salta, e começa a montar suas armas.

As metralhadoras são de outra era: duas Maxims fabricadas em 1939, com caixas de munição estampadas com estrelas vermelhas da época soviética.

Serhiy, o único homem da equipe, tem que despejar água de uma garrafa manualmente para que elas não aqueçam demais.

Isso é tudo o que está disponível: o melhor equipamento da Ucrânia está na linha de frente de combate, e o país está constantemente pedindo mais a seus aliados.

Mas as armas antigas são mantidas impecavelmente, e as 'bruxas' dizem que derrubaram três drones desde o verão deste ano no país.

"Minha função é ouvi-los", explica Valentyna.

"É um trabalho tenso. Mas temos que nos manter concentrados, para [ouvir] o menor som sequer."

Sua amiga Inna, também na faixa dos 50 anos, está participando de uma de suas primeiras missões.

"É assustador, sim. Mas dar à luz também é, e eu ainda fiz isso três vezes", ela ri, me contando que seu codinome é Cherry: "Por causa do meu carro, não do tomate."

Professora de matemática, ela, às vezes, tem que voltar correndo da floresta para dar uma aula.

"Deixo minhas roupas no carro. Meus saltos altos. Passo um pouco de batom, e dou a aula. Depois, volto para o carro, troco de roupa rapidamente na esquina, e saio fora."

"Os homens se foram, mas nós estamos aqui. O que as mulheres ucranianas não podem fazer? Nós podemos fazer tudo."

Em algum lugar no horizonte, há um feixe de luz de outro grupo, vasculhando os céus em busca de perigo em sua própria zona de patrulha.

Não há dados públicos sobre o número total de unidades voluntárias — ou quantas mulheres estão envolvidas. Mas como a Rússia envia drones carregados de explosivos quase todas as noites, elas ajudam a formar um escudo adicional em torno das grandes cidades.

Da posição das "bruxas" em um campo, Yulia rastreia dois drones em seu tablet. Eles estão sobre a região vizinha, então não há perigo iminente para Bucha, mas as metralhadoras vão permanecer no local até que o alerta termine.

·        Não há mais homens

O comandante da unidade voluntária, Andriy Verlaty, é um homem de grande porte, que acabou de voltar de Pokrovsk, na região de Donbas, no leste do país, onde os combates são mais ferozes.

"Há fogos de artifício sem parar", diz Verlaty sobre a situação no local, com um sorriso.

Ele costumava ter cerca de 200 homens operando unidades móveis de defesa aérea na região de Bucha, e patrulhando durante o toque de recolher noturno, muitos deles inaptos para o serviço militar completo.

Até que a Ucrânia reformulou sua lei de recrutamento, necessitando urgentemente de mais soldados, e muitos dos membros da equipe do coronel de repente se viram elegíveis para a linha de frente de combate.

"Cerca de 90% dos meus homens acabaram indo para o Exército, e outros 10% se esconderam, se dispersando como ratos. Ficamos com quase ninguém”, diz Verlaty sem rodeios.

"Apenas com homens sem pernas ou com metade do crânio faltando."

Ele tinha uma escolha: preencher as funções com homens abaixo da idade de alistamento ou recrutar mulheres.

"No início, parecia uma piada: 'Vamos pegar as mulheres'! As Forças Armadas não tinham muita confiança nelas. Mas isso realmente mudou", diz ele.

·        Retomando o controle

As "bruxas" passam os fins de semana em um treinamento militar mais amplo. No dia da nossa visita, era a primeira aula delas sobre como invadir um prédio. Elas praticam nas ruínas do galpão de uma fazenda, apontando rifles para as portas antes de entrar com cautela.

Algumas conseguem parecer mais convincentes do que outras, mas o comprometimento e o foco das mulheres são evidentes — porque suas razões para fazer isso são profundas e pessoais.

"Me lembro da ocupação. Me lembro do horror. Me lembro dos gritos do meu próprio filho", Valentyna me conta, entre pequenos suspiros.

"Me lembro dos corpos, quando estávamos fugindo."

A família dela escapou de Bucha passando por tanques carbonizados, soldados e civis mortos. Em um posto de controle russo, ela diz que um soldado os fez abaixar a janela do carro, e depois colocou uma arma na cabeça do filho dela.

Ela está repleta de uma fúria silenciosa.

É também por isso que Valentyna se recusa a parar de acreditar na vitória da Ucrânia, apesar do pessimismo que se instalou em grande parte do país após quase 1.000 dias de guerra em grande escala.

"A vida mudou, todos os nossos planos foram desfeitos. Mas estou aqui para ajudar a acelerar o fim desta guerra. Como as meninas dizem aqui, não vai terminar sem nós."

Passando por cima de cacos de vidro e escombros com suas botas militares, e um rifle na mão, Anya é outra "bruxa" voluntária. A administradora, de 52 anos, considera o treinamento militar empoderador.

"Durante a ocupação, senti a total inutilidade da minha existência. Eu não podia ajudar ninguém, nem me defender. Eu queria aprender a usar armas para poder ser útil."

Há muito toma lá, dá cá nas conversas com os treinadores: as mulheres estão se divertindo. Porém, mais tarde naquela noite, em sua base na floresta, uma delas se abre ainda mais, e conta uma história de arrepiar.

Quando Bucha foi tomada, as forças russas começaram a ir de casa em casa. Eles estupraram e assassinaram. Até que, um dia, espalhou-se um boato de que os invasores estavam chegando para matar as crianças.

"Pela decisão que tomei naquele dia, jamais perdoarei os russos", confidencia esta mulher.

Não vou compartilhar os detalhes do que ela me disse — a decisão extrema que ela tomou —, apenas que os soldados nunca vieram, e ela nunca precisou colocar a decisão em prática. Mas essa mulher tem sido assombrada por esse momento desde então, e pela culpa.

A primeira vez que ela sentiu alívio foi quando começou a aprender a se defender, defender sua família e seu país.

“Vir aqui realmente ajudou”, ela me diz calmamente. "Porque nunca mais vou me sentir como uma vítima, e ficar com tanto medo."

 

¨      ‘Bruxas da noite’, o temido esquadrão de mulheres que combateu na 2ª Guerra Mundial

Os soldados alemães diziam que o som do vento nas asas dos aviões daquele grupo lembrava o movimento de uma vassoura — e assim começaram a chamá-las de as "Bruxas da noite".

Eram muito jovens, em sua maioria adolescentes voluntárias, que tiveram que superar não só as dificuldades da guerra, mas também o ceticismo e o machismo da época, que levava muitos a duvidarem que um esquadrão formado exclusivamente por mulheres seria bem-sucedido.

No entanto, as aviadoras do 588º Regimento de Bombardeiros Noturnos conseguiram lançar mais de 23 mil toneladas de bombas sobre alvos alemães — e se tornaram peça fundamental na vitória soviética sobre os nazistas na Segunda Guerra Mundial.

"No início, os homens riram de nós", contou a matemática e física russa Irina Rakovólskaya, que liderou o regimento durante algum tempo, em uma entrevista divulgada em 1993.

Depois, isso mudou, segundo ela. "Eles viram como pilotávamos, e os homens do regimento de bombardeiros noturnos começaram a nos chamar de 'irmãs', e os soldados de infantaria diziam que éramos 'criaturas celestiais', enquanto os alemães nos chamavam de 'Bruxas da noite'", acrescentou Rakovólskaya, na ocasião.

As políticas da então União Soviética, que concedia a mesma educação a meninos e meninas, permitiram que muitas jovens aprendessem a pilotar, como explicou Debbie Land, que pesquisa mulheres aviadoras no museu aeronáutico e automotivo Shuttleworth Collection, na Inglaterra, em entrevista ao programa de rádio The Documentary, do serviço mundial da BBC.

Naquela época, existia na União Soviética um programa semelhante ao dos Escoteiros, em que meninos e meninas podiam aprender a pilotar, de forma totalmente gratuita, diz ela.

Por essa razão, "quando os alemães invadiram e arrasaram com as tropas russas, essas meninas estavam prontas."

<><> Lideradas por uma heroína

Muitas estudavam Física, Astronomia, Geografia, Matemática ou Química na universidade quando a Alemanha atacou a União Soviética em 22 de junho de 1941, e o Estado convocou os homens para lutar.

Elas não queriam ficar para trás.

Um grande número de jovens mulheres começou a escrever cartas para Marina Raskova, que na época já era uma piloto famosa na União Soviética — e que se tornaria fundamental para a formação do esquadrão.

Marina Raskova foi a primeira mulher na União Soviética a obter um diploma de piloto profissional — e virou uma heroína do bloco quando conseguiu bater o recorde de voo de longa distância sem escala em 1938.

Nessa ocasião, Raskova não participou como piloto, mas como navegadora do voo, em uma tripulação composta também por outras duas mulheres.

A viagem foi bastante conturbada, e a navegadora teve que saltar de paraquedas antes do pouso de emergência. Ela passou 10 dias sozinha na taiga siberiana, sem comida e quase sem água, procurando o avião.

Essa aventura, e o livro que escreveu mais tarde contando sua experiência, renderam a ela o status de celebridade na União Soviética.

As jovens pilotos que queriam lutar pelo seu país — mas a quem eram oferecidos apenas cargos de apoio em gabinetes ou na área de enfermagem — sabiam claramente a quem recorrer.

Raskova se dirigiu então ao líder soviético Josef Stalin, que era um admirador dela, e pediu para formar seu próprio esquadrão, composto exclusivamente por mulheres.

Stalin concordou, e Raskova criou três regimentos femininos: o 586º Regimento de Combate Aéreo, o 587º Regimento de Bombardeiros Aéreos e o 588º Regimento de Bombardeiros Noturnos, que ficaria conhecido popularmente como as "Bruxas da noite".

A União Soviética se tornou assim a primeira nação a permitir oficialmente a participação de mulheres em combates.

"Havia muitas (mulheres) pilotos, mas quase não havia navegadoras ou mecânicas capacitadas, então tiveram que formar mulheres em todo esse tipo de coisa, elas tiveram que aprender essas habilidades do zero", explicou ao programa da BBC Reina Pennington, professora de História Russa e Militar na Universidade Militar de Norwich, nos Estados Unidos.

<><> Aviões precários

As mulheres do novo esquadrão também tiveram que se acostumar com os bimotores Polikarpov Po-2, aeronaves antiquadas projetadas em 1928 como aviões de treinamento e pulverização agrícola.

Eram feitos de madeira compensada e lona — e eram bastante vulneráveis, mas também leves. A cabine ficava aberta, então as pilotos não tinham nenhum tipo de proteção contra as noites geladas de inverno.

"Não se podia fazer grande coisa com eles à luz do dia porque eram muito vulneráveis. Não tinham proteção nem metralhadora, e tampouco seriam de muita utilidade contra os Messerschmitts. Então, elas não podiam fazer nada além de voar à noite, mas isso era melhor do que nada, apesar de só poderem levar um punhado de bombas", diz Pennington.

Sem equipamentos para aperfeiçoar a mira, as pilotos do 588º Regimento tinham que realizar uma operação perigosa: quando se aproximavam do alvo, desligavam o motor para se deslocarem em silêncio. Naquele momento, acendiam um sinalizador para que a navegadora pudesse ver onde lançar a bomba. Mas a chama também alertava os alemães sobre sua localização.

A piloto tinha que manter a estabilidade do avião para que a navegadora pudesse mirar, o que era muito complicado porque os alemães usavam luzes poderosas que as cegavam, além de metralhadoras antiaéreas.

Como os Polikarpov Po-2 não contavam com nenhuma proteção, às vezes os aviões pegavam fogo e queimavam como uma caixa de fósforos.

O papel das "Bruxas da noite" não era tanto lançar bombas e semear morte e destruição — mas, sim, "perturbar os alemães, que haviam passado o dia todo realizando manobras", conforme explicou Debbie Land à BBC.

"Então era mais uma questão de não deixá-los dormir, e fazê-los trabalhar a noite toda para que ficassem exaustos no dia seguinte", completou.

Diferentemente de seus homólogos do sexo masculino, o regimento feminino não parava para fumar um cigarro ou tomar uma xícara de chá entre os voos. Assim que pousavam, elas carregavam mais munição e decolavam novamente — às vezes, até 15 vezes por noite, mais do que os homens, segundo os relatos.

A tática de desligar os motores ao se aproximar do alvo não foi inventada por elas, mas era amplamente utilizada na Força Aérea. Mas elas realmente se destacaram, afirmou Pennington, na forma como conseguiram realizar mais voos todas as noites do que praticamente qualquer outra unidade, graças às suas inovações na manutenção e no rearmamento das aeronaves, e na forma como treinaram substitutas.

A comandante Yevdokia Bershanskaia desenvolveu uma forma inovadora de reabastecer os aviões.

Em vez de deixar que cada avião tivesse uma equipe de manutenção e reabastecimento, Bershanskaia adotou um sistema de linha de produção, com equipes especializadas em diversas tarefas, como encher os tanques de combustível ou rearmar o avião.

"Dessa forma, conseguia ter um avião pronto em apenas 10 minutos" — e aumentava o número de viagens por noite, explicou a professora da Universidade de Norwich.

Em reconhecimento às suas conquistas, o 588º Regimento de Bombardeiros Noturnos recebeu o posto de Guarda — e passou a ser chamado de 46º Regimento de Bombardeiros Noturnos da Guarda.

Também conquistou a Ordem da Bandeira Vermelha, e muitas "bruxas da noite" receberam condecorações individuais — 23 delas ganharam o título de " Heroína da União Soviética", a mais alta distinção do país.

 

Fonte: BBC News no Leste Europeu

 

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