sexta-feira, 25 de outubro de 2024

“Planejamento urbano tem de parar de cometer erros e começar a corrigi-los”, provoca urbanista português

“Estamos à beira de um desastre climático irreversível”. É assim que começa o relatório do clima de 2024 publicado semana passada pela Universidade de Oxford e que reúne uma série de indicadores sobre as condições do planeta Terra. Com um começo desses, é desnecessário dizer que o que se segue não é nada animador. Para não piorar a situação, o relatório faz uma série de recomendações, como a diminuição do consumo de energia e de combustíveis, principalmente os fósseis.

Referência no estudo da morfologia urbana – a forma física das cidades e o modo como essa forma vai sendo transformada ao longo do tempo pela ação de diferentes agentes – o urbanista português Vítor Oliveira, professor da Universidade do Porto, agora vem pesquisando como as cidades podem contribuir para diminuir os impactos das mudanças climáticas.

“A morfologia urbana nos permite perceber qual é o impacto que a forma urbana tem nas alterações climáticas, ou seja, há aspectos da forma física das cidades que não têm qualquer influência nas alterações climáticas, mas há outros aspectos que têm bastante influência”, afirma Oliveira, que é autor do livro Morfologia Urbana: um estudo da forma física das cidades, da editora Pucpress.

O pesquisador lembra que uma das questões-chave para diminuir os impactos do ser humano na Terra é a necessidade de mudar os nossos padrões de vida. “É absolutamente fundamental reduzirmos o consumo de energia”, disse, em entrevista à Marco Zero. “Há formas urbanas que nos levam a consumir mais energia. Um nível é o dos transportes, como nós gastamos energia para nos movermos na cidade. Há cidades que quase nos obrigam a usar o automóvel, onde os moradores são dependentes do automóvel. Há outros tipos de cidade em que o modo como as diversas peças estão combinadas nos permitem – obviamente, depois temos que querer –, andar a pé, de bicicleta, de transportes públicos, consumindo menos energia”, destaca.

O pesquisador aponta outro fator para diminuir o consumo de energia, que é o modo como as construções estão organizadas pela cidade. “Geralmente, se forem prédios altos e isolados uns dos outros vão ter uma maior superfície exposta e eventualmente vão levar a maiores consumos energéticos”, afirma. “Mas, por exemplo, o fato de termos uma grande densidade de prédios pode levar a uma organização da cidade em que seja mais fácil instalar uma rede de transporte público e aí já podemos ter um menor consumo energético. Por isso, estas questões nunca são a partir de generalizações”, explica.

Para Vítor Oliveira, a densidade é a principal característica para que uma cidade consiga um menor impacto para as mudanças climáticas. “Dificilmente nós vamos encontrar uma cidade que seja toda ela um bom exemplo ou um mau exemplo. Mas a densidade é a característica que mais determina as questões fundamentais da nossa cidade. Porque, de fato, quando nós aumentamos ou quando baixamos a densidade dos vários elementos da forma urbana é quando nós mudamos mais dramaticamente a forma das cidades, para melhor ou para pior”, afirmou.

Depois da densidade, o pesquisador elege a diversidade como o segundo ponto chave para uma cidade enfrentar a crise climática. “A diversidade de pessoas, em termos de raça, em termos de gênero, em termos de orientação sexual, de idades. A diversidade é um aspecto que devemos valorizar. E não só em termos sociais, mas também econômicos. Podemos também passar esta leitura das pessoas para as empresas e ter uma série de atividades econômicas bastante diferentes. Tudo isto contribui para a riqueza de uma cidade”, comenta.

Planejamento demais pode prejudicar

O pesquisador não conhece o Recife, mas aponta Brasília como uma cidade que tem sérias dificuldades para ser resiliente frente às mudanças climáticas. “Na morfologia urbana nunca há um modelo de cidade que todas as outras devem tentar seguir. Há uma série de fatores estabelecidos nas cidades ditas tradicionais que em Brasília não existem. Lá, temos edifícios com elementos similares e densidade muito baixa. Por exemplo, há a separação absoluta de funções (moradia, serviços, comércio), com o planejamento controlando tudo, não deixando espaço nenhum para os outros agentes participarem”, critica.

“Brasília é uma cidade muito especial, a nível mundial. Ela foi a concretização de um sonho que propunha romper completamente com a forma como se fazia cidade até então. Por os edifícios terem uma densidade muito baixa e estarem todos afastados uns dos outros, se eu morar em Brasília, eu não consigo fazer nada sem carro. Os transportes públicos são difíceis”, acrescenta.

Outro ponto que o pesquisador chama atenção sobre a capital do Brasil é de que não há disponibilidade para a mudança. “O Plano Piloto é classificado como Patrimônio da Humanidade e isso não permite alterações. É uma questão-chave na adaptação às alterações climáticas nós podermos ir mudando os pedaços das cidades. Quando as cidades são feitas de vários pedaços, é mais fácil mudar. Quando são feitas de grandes blocos, como acontece em Brasília, a mudança é muito difícil. Por Brasília ser tombada, é impossível a mudança.”

Vítor Oliveira defende que as cidades devem ter espaço para crescerem e encontrarem suas próprias estratégias, organicamente. “Não me parece que o planejamento seja a garantia de uma boa cidade e desconfio muito de visões em que o planejamento controla tudo. O planejamento pode ajudar a evitar a construção em alguns lugares que são vulneráveis. Isso posto à parte, eu acho que os assentamentos informais têm muito a ensinar ao planejamento: porque o planejamento, a partir de dada altura, caminhou para um conjunto de preocupações que foi se isolando bastante do que a maioria das pessoas quer. Foi-se tornando uma disciplina cada vez mais fechada em si mesmo. E foi deixando de dar às cidades uma série de qualidades”, acredita.

·        As soluções que as periferias encontram

Se um planejamento urbano tão fechado quanto o de Brasília deixa pouco espaço para mudanças necessárias, as periferias das grandes cidades podem oferecer soluções para uma convivência menos traumática com as mudanças climáticas – desde que já tenham resolvido questões importantes, como o saneamento e o risco de deslizamentos e enchentes.

“Sem qualquer visão romântica do que as favelas são, imagino o quão duro deve ser viver nelas, acho que elas têm muito para ensinar ao planejamento”, afirma. “Eu tenho de confessar que não vejo as periferias de um modo muito diferente dos centros. Obviamente que há diferenças. Mas, para mim, as questões mais importantes são comuns. Quando eu passo dos centros para as periferias, normalmente, uma diferença importante é que os centros tiveram mais tempo para crescer. Para ir, aos poucos, encontrando as melhores formas para responder às necessidades da população. E as periferias tiveram que fazer isso mais depressa.”

O professor defende que a remoção de comunidades para obras deve ser realizada somente em último caso. “Eu acho que a remoção de uma comunidade acarreta sempre alguns riscos porque pode provocar o seu desenraizamento e, normalmente, no novo espaço para onde ela se muda faltam uma série de coisas que existiam no primeiro. Obviamente, se o risco de desastre natural for muito forte, a remoção deve acontecer. Mas adaptar, corrigir e minimizar o risco parece-me uma solução muito mais interessante”.

·        Parar de errar e começar a corrigir

Oliveira não acredita em índices que avaliam se as cidades têm uma morfologia mais ou menos adaptada para enfrentar as mudanças climáticas. “Existem uma série de métodos que permitem medir uma série de questões que são relevantes para a morfologia urbana. Eventualmente haverá colegas meus que conseguem condensar isso num índice que nos dá um número único. Mas, pessoalmente, acho isso um bocado perigoso. As cidades são muito complexas para haver um instrumento que me permita dizer que São Paulo vale 5.6 e Recife vale 3.4, por exemplo. Acho que as coisas são demasiado complexas para serem reduzidas a um número. As generalizações são perigosas”, afirma.

O que o pesquisador defende é que as cidades façam estudos aprofundados para avaliar suas características. “Os casos têm que ser analisados concretamente para podermos ser rigorosos nas afirmações. A morfologia urbana tem uma série de teorias, de conceitos e métodos que nos permitem analisar qualitativamente ou medir quantitativamente uma série de aspectos que nos interessam e que variam de estudo para estudo”, diz.

“A primeira coisa que me parece importante, quando falamos de alterações climáticas, é que o planejamento deveria ser capaz de parar de produzir erros. Ou seja, nós continuamos a fazer mal. E muitas das coisas que fazemos mal, são difíceis de corrigir”, diz. “O segundo passo é tentar começar a corrigir aquilo que foi mal feito, quando não era uma preocupação a questão das alterações climáticas. Por isso há esses dois passos: parar de fazer mal e começar a corrigir”, enumera.

E, com esses diagnósticos em mãos, as cidades devem agir. E logo. “É muito comum uma prefeitura, em qualquer parte do planeta, com um discurso que está alinhado com o conhecimento científico sobre as alterações climáticas, mas com ações que têm muito pouco a ver com o discurso, seja nos projetos que desenvolve diretamente, seja regulação da atividade privada. Continua-se a permitir uma série de erros que depois são muito difíceis de corrigir. Por isso acho que a questão fundamental é termos uma ação coerente com o nosso discurso. É muito importante uma liderança ao nível central dos nossos diversos governos que motive e que conduza as pessoas nesse sentido”, afirma.

 

¨      Crise climática, saúde e o futuro das cidades. Por Sophia Samantaroy

As cidades que não adotarem ações significativas voltadas a enfrentar as mudanças climáticas vão encarar um futuro de grave degradação, com o colapso da infraestrutura e a deterioração ambiental. Esse foi o alerta dado por especialistas em clima e saúde na palestra anual da Academy of Medical Sciences & The Lancet International Health Lecture, em Londres.

“Em 2050, o clima de Madri se assemelhará ao de Marrakech hoje. Não é uma boa perspectiva”, disse o Professor Mark Nieuwenhuijsen, o palestrante principal do evento. Para evitar esse cenário, as cidades devem se adaptar e manter a saúde como prioridade nos projetos. “Para nossas cidades, precisamos buscar soluções que reduzam as emissões de CO2 e também melhorem o ambiente, a igualdade e, claro, a qualidade de vida e a saúde.”

Até 2050, espera-se que dois terços da população mundial vivam em cidades. Nesse contexto, as mudanças climáticas ameaçam cada vez mais a saúde humana nas áreas urbanas. As centenas de milhares de quilômetros de asfalto e concreto exacerbam o aumento das temperaturas. As mudanças climáticas são responsáveis por 37% das mortes relacionadas às altas temperaturas, o que deixa as cidades especialmente vulneráveis às ondas de calor e ao calor extremo. Mark Nieuwenhuijsen argumenta que os planejadores urbanos devem passar a considerar a saúde ao projetar o futuro das cidades.

Prevenir mortes relacionadas ao clima nas cidades requer planejamento urbano com foco intencional na saúde, comentou o pesquisador. Ele argumenta que o planejamento urbano inteligente é capaz de reduzir as emissões de gases de efeito estufa e promover a saúde, mas isso só será possível se conseguirmos romper com o “vício” nos combustíveis fósseis.

“Sabemos que combustíveis fósseis são responsáveis por mais de 5 milhões de mortes por ano devido à poluição do ar”, alerta ele. Apesar do crescente conhecimento sobre os males causados por eles à saúde, as cidades continuam a se expandir, “e a Europa lidera esse movimento”. O uso de combustíveis fósseis levou a um “planejamento urbano centrado no carro, dominado pelo asfalto e com expansão urbana extensa, o que tem efeitos prejudiciais à saúde”, disse Nieuwenhuijsen.

A expansão das áreas urbanas aumenta a dependência de carros. Mas já se sabe que os sistemas de transporte público e o transporte ativo – como caminhar e andar de bicicleta – têm um melhor custo-benefício. 

<><> Cidades compactas vs cidades verdes – políticas que incluem o melhor de ambos os modelos (classificação das cidades europeias)

Na Europa, onde muitas cidades estão crescendo mais rápido que suas populações, a alta densidade populacional tem vantagens potenciais. Entre elas estão os tempos de deslocamento reduzidos, menor dependência de carros, maior eficiência energética e menor consumo de materiais de construção.

Quanto mais compacta a cidade, mais eficiente. No entanto, cidades compactas também têm desvantagens potenciais, como taxas de mortalidade mais altas, densidade de tráfego, poluição do ar e mais barulho – além do calor excessivo.

Nieuwenhuijsen apresentou as cidades europeias divididas em quatro grupos: as compactas de alta densidade, as abertas de baixa altura (ou seja, com edifícios mais baixos) e média densidade, as abertas de baixa altura e baixa densidade, e as verdes de baixa densidade. A análise das cidades nessas categorias mostra uma divisão: as cidades se enquadram, de um lado, em maior mortalidade e menores emissões de gases de efeito estufa; e de outro em menor mortalidade e maiores emissões.

Uma cidade como Barcelona – compacta e de alta densidade – pode esperar ter uma taxa de mortalidade 10-15% mais alta, qualidade do ar pior e efeito de ilhas de calor mais fortes – mas emite menos CO2, explicou Nieuwenhuijsen. No geral, os pesquisadores estimaram que o planejamento urbano deficiente resulta em 20% das mortes prematuras. “Barcelona é uma cidade maravilhosa, mas tem muita poluição do ar, muito barulho e poucos espaços verdes”, explicou.

“Em contraste, cidades mais verdes e menos densamente povoadas têm taxas de mortalidade mais baixas, menores níveis de poluição do ar e um efeito de ilha de calor urbano mais fraco – mas maiores pegadas de carbono por pessoa”, prosseguiu.

Essa dicotomia – altos emissores com melhor qualidade de saúde versus menores emissores com saúde pior – significa que as cidades devem implementar políticas para melhorar a qualidade de vida e reduzir as mortes, mas também para diminuir a poluição. Nieuwenhuijsen acredita que ambos são possíveis.

Políticas que reduzam os níveis de poluição do ar e a dependência de carros, e que aumentem os espaços verdes, ciclovias e a atividade física “reduziriam substancialmente a taxa de mortalidade”, ele argumentou.

<><> Superblocos, espaços verdes e cidades de 15 minutos

Várias cidades já começaram a implementar modelos urbanos inovadores que equilibram os objetivos de menores emissões e ambientes mais saudáveis – e as principais novidades estão na maneira como se utilizam os terrenos públicos.

“Muito do nosso espaço público nas cidades está, hoje, entregue aos carros. Ou seja, na Espanha, 69% do espaço público é utilizado por carros – as estradas também são espaços públicos. As vagas para estacionar nas ruas são espaço público. Quero dizer, esse é o tipo de área que poderíamos usar de uma maneira muito melhor,” comentou Nieuwenhuijsen.

Em Paris, um projeto chamado “cidade de 15 minutos” – onde todos os principais destinos podem ser alcançados dentro de 15 minutos da casa de cada cidadão – aumentou os investimentos em ciclovias e zonas livres de carros.

Os “superblocos” de Barcelona, os bairros de baixo tráfego de Londres e Vauban, o bairro sem carros em Friburgo, na Alemanha, são todas soluções promissoras para reduzir mortes prematuras e aumentar os espaços verdes.

Nieuwenhuijsen e outros especialistas reunidos no evento apontaram esses e outros exemplos como evidências de que mudanças no planejamento urbano são possíveis.

Várias cidades chinesas também adotaram a interseção entre planejamento urbano e novas tecnologias para prevenir inundações por meio de seus projetos de Cidades-Esponja, comentou Maria Neira, diretora de Saúde Pública, Meio Ambiente e Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial da Saúde.

“Cada vez mais, precisamos estar preparados para trabalhar com urbanistas e arquitetos que atuam no nível das cidades. E às vezes tenho a impressão de que eles estão mais preparados, mais avançados, mais engajados e mais apaixonados do que nossos agentes de saúde pública que atuam nas prefeituras”, disse Neira.

“Então precisamos criar soluções e argumentos muito fortes para nossos agentes de saúde pública também, para fazer uma pressão no nível das cidades, no nível urbano, para o engajamento com o planejamento urbano saudável”, concluiu a diretora.

 

Fonte: Marco Zero/Health Policy Watch|Outras Palavras

 

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