sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Luís Nassif: As semelhanças entre os terraplanistas e os faria limers

Os vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2024 foram Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson. Um dos temas que exploram é a maneira como os bancos passaram a dominar a opinião pública, mesmo após o desastre de 2008. Na ocasião, conseguiram desenvolver um discurso que levou o FED a salvá-los – em vez de abrir processos criminais contra os responsáveis pelos golpes – e a deixar os clientes se afogando.

Vamos recorrer a trechos do livro “Poder e Progresso – uma luta de mil anos entre a tecnologia e a prosperidade”.

<><> O viés da confirmação

Temos uma série de vieses, como a propensão a encontrar provas para algo em que já acreditamos (“ viés da confirmação”), ou a pensar que eventos raros são mais comuns do que na verdade são.

<><> O poder da persuasão

Uma heurística aparentemente razoável consiste em prestar mais atenção em quem tem mais prestígio. De fato, acreditamos quase por instinto que as ideias e recomendações de gente dotada de status merecem nossa atenção. (…) Em outras palavras, somos imitadores tão bons que é difícil não absorvermos a informação embutida nas ideias e visões com que nos deparamos, normalmente propostas pelos mais poderosos.

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Aliás, é só conferir repórteres da área econômica que tratam a Faria Lima como “elite”.

<><> O poder dos bancos

No meio da pior recessão desde os anos 1930, nove instituições financeiras que estavam entre as maiores beneficiadas pelos resgates pagaram bônus de mais de 1 milhão de dólares a 5 mil funcionários—sob a justificativa de que precisavam reter o “talento”.(…)

A retórica de que a grande indústria financeira é benéfica para a sociedade pareceu irresistível porque os banqueiros e sua turma conquistaram uma posição de autoridade, conceberam a narrativa e forneceram sua interpretação das evidências.

<><> Vacinas e Selics

A partir dessas constatações, vamos tentar entender porque a opinião pública anti-vacina é tão similar à opinião pública que inclui de caça-fantasmas de gastos públicos até autoridades econômicas que acreditam que a fé cega que a faca amolada do superávit fiscal levará à salvação da Nação (os Faria Limers e seus porta-vozes ainda não foram rezar em porta de quartel, mas chegam lá).

O indicador mais relevante não é o do superávit primário – o que calcula receitas e despesas do governo, excluindo juros. A prova do pudim, o indicador central, é a relação dívida/PIB. O tamanho do superávit primário é definido por sua capacidade de estabilizar – e até reduzir – a relação dívida/PIB.

Vamos a algumas continhas singelas para entender o busílis da questão.

Hoje em dia, a relação dívida/PIB está em 78,3% do PIB. A relação dívida/PIB depende da seguinte fórmula:

(PIB x taxa de crescimento x superávit) – (dívida x taxa real de juros).

Vamos a dados:

  1. Com o PIB crescendo a 3% ao ano, em 10 anos quanto seria necessário de superávit primário para estabilizar a relação dívida/PIB em 78,3%

Segundo nossos cálculos, o superávit necessário seria de 2,3% todo ano. Quem achar isso possível acredita em discos voadores.

     2.  Mas suponhamos que a economia seja impactada pelos juros e só consiga crescer 2,% ao ano.

Nesse caso, para estabilizar a relação dívida/PIB, o superávit deveria ser de 3,05% todo o ano. Eu disse estabilizar.

     3. Mas, por algum milagres do divino, suponhamos um PIB crescendo a 4% ao ano. Nesse caso, as regras atuais das metas inflacionárias espalharão terrorismo sobre a volta da inflação e, suponhamos, conseguem elevar a taxa real para 7% ao ano. Nesse caso, seria necessário um superávit primário de 2,2% todo ano.

4. Finalmente, com fé em Deus, a economia consegue superar todas as armadilhas e crescer a 5% ao ano. Nesse caso, os discos voadores desceriam em plena Faria Lima.

Trata-se de uma hipótese quase impossível, já que cada sopro de crescimento é abortado pelo terrorismo com a “gastança” e com a volta da inflação. Mas se conseguiria estabilizar a dívida com um superávit de 1,5% todo ano.

Agora, vamos a algumas contas com a taxa real da dívida pública em 4%. Nesse caso, com a economia crescendo sistematicamente 3% ao ano, seria necessário um superávit de 0,7%.

Ou seja, todo esse malabarismo, de tentar investir contra salário emprego, contra a vinculação de gastos sociais, corroerá a base de apoio de Lula, sem convencer minimamente a Faria Lima, que apoia um presidente capaz de queimar a Petrobras, como Tarcísio de Freitas fez com a Sabesp.

·        A estratégia da Fazenda e os rumos do governo

Há uma estratégia no Ministério da Fazenda, mas que paira no ar devido à falta de uma estratégia de governo.

O que a Fazenda tem feito é ganhar tempo, melhorar um pouco a disponibilidade de recursos, enquanto o governo, como um todo, define uma estratégia clara de desenvolvimento.

O arcabouço fiscal surgiu devido à pressão de tempo. Se não fosse criada uma nova lei, haveria a renovação automática do teto de gastos, sufocando definitivamente o governo.

Conseguiu-se uma ampliação dos gastos e da base de cálculo do crescimento da despesa para os anos seguintes.

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As despesas podem crescer até 70% da variação real da receita (receita corrigida pela inflação). Existe uma banda de variação de 0,6% a 2,5% para o crescimento anual da despesa primária.

Isso significa que, mesmo com aumento expressivo na arrecadação, o crescimento da despesa não poderá superar 2,5% ao ano. Por outro lado, em momentos de baixa arrecadação, as despesas não poderão crescer menos do que 0,6% ao ano.

Pelos cálculos da Fazenda, o cumprimento dessas condições poderá permitir um gasto adicional de até R$100 bilhões em 2026.

Por outro lado, anda-se no fio da navalha, com o poder que a Faria Lima, aliada à mídia corporativa, ganhou de manipular o dólar e as taxas longas. Na Fazenda, demarca-se o mercado entre sistema bancário convencional e as assets – os fundos de investimento, característicos da Faria Lima.

Os bancões ganham com a economia em ordem. Seu lucro vem do crédito e de outras operações que exigem um mínimo de previsibilidade. Já a Faria Lima ganha em cima da volatilidade e, desde que descobriu seu poder de manipular as taxas, passou a atuar politicamente, contando com um cúmplice poderoso – o atual presidente do BC, Roberto Campos Neto.

O terremoto atual no câmbio e taxas começou com suas declarações no seminário da XP em Nova York, quando inverteu os prognósticos de melhoria dos fundamentos da economia.

Desde que o governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, montou a jogada da década – com a privatização escandalosa da Sabesp – tornou-se o candidato preferido da Faria Lima. Os mesmos agentes que espalhamo terrorismo da gastança calaram-se ante as loucuras de Paulo Guedes e, agora, apostam na alternativa Tarcisio.

Com os níveis atuais e futuros da Selic, essa estratégia poderá ser facilmente engolida por uma Faria Lima politizada.

O grande problema da estratégia da Fazenda é o tempo político e a inação do atual Ministério de Lula. Nas últimas semanas, Lula tem dado alguns sinais de que está despertando para a situação política, reclama planos, criatividade do Ministério, mas até agora não consolidou um programa de governo com prazos e metas.

Ao mesmo tempo, os partidos políticos de esquerda e centro só agora começam a se articular, e de forma muito tímida. Não se trata apenas de um problema de comunicação pública, mas de projeto de país. Hoje em dia a grande disputa não é entre esquerda e direita, mas entre civilização e barbárie.

A grande arma da direita é o exercício continuado do preconceito e do individualismo exacerbado. A arma da civilização precisa ser a solidariedade, o trabalho colaborativo. Mas não bastam as boas intenções. Há que se ter um conjunto articulado de ideias e de ações, mobilizando estruturas de governo, associações empresariais e de trabalhadores, cooperativas e movimentos sociais, universidades, institutos de pesquisa, a classe artística, em suma, os setores que não sucumbiram à selvageria.

Hoje em dia há um enorme desânimo e descrença em relação às possibilidades da civilização virar o jogo. Esse desânimo é sinal da enorme demanda não atendida por otimismo. E, por ser enorme, pode-se mobilizar uma enorme parcela da opinião pública através de planos e ideias claras sobre os rumos a seguir.

¨      O terrorismo do Tesouro com as estatais

A Secretaria do Tesouro Nacional usou um truque engenhoso para apontar prejuízos das estatais. Retirou da conta todas as estatais que vendem serviços ao público. E deixou apenas aqueles que fornecem serviços ao Estado. Tirou os bancos, por serem instituições financeiras, e a Petrobras, por ter governança.

Teria sido mais honesto dizer que tirou todas as que dão lucros e deixou apenas as que prestam serviços. A única exceção foram os Correios, que registraram prejuízo de R$1,3 bilhão no semestre. Como é uma empresa pública essencial, inclusive para dar um mínimo de viabilidade ao comércio independente, espera-se que encontre o rumo em breve.

Se incluir todas as estatais, o governo recebeu R$ 51,5 bilhões em dividendos no acumulado de 12 meses até agosto de 2024.

Houve valores maiores em agosto do ano passado (pegando um pedaço de 2022) e em agosto de 2022, mas devido à política de canibalização das estatais, da venda de patrimônio em operações nebulosas, visando aumentar a distribuição de dividendos – já que essas estatais têm participação privada.

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Por exemplo, a Petrobras vendeu a Refinaria Landulpho Alves (RLAM) em 2021 por US$ 1,8 bilhão.  Houve a venda da BR Distribuidora, com R$ 11,3 bilhões. E diversos campos de petróleo e gás.

No total, a queima de patrimônio da Petrobras chegou a quase R$ 34 bilhões apenas no governo Bolsonaro até agosto de 2022.

O mesmo aconteceu com o BNDES, que vendeu R$ 22,4 bilhões em ações da Petrobras, resultando em uma perda de R$ 22,4 bilhões dos dividendos que a empresa distribuiu no período.

O mesmo ocorreu com a Caixa Econômica Federal que vendeu a Caixa Seguridade e a Caixa Cartões. 

<><> E quais as estatais que, afinal, deram prejuízo?

Estatais

Resultado (R$ bilhões)

Correios (logística)

-R$1,5

Emgepron (construção naval)

-R$ 0,7

Dataprev (tecnologia da informação)

-R$ 0,4

Serpro (tecnologia da informação)

-R$ 0,4

Hemobrás (farmacêutica)

-R$ 0,2

Infraero (aviação) 

-R$ 0,2

ENBPar (energia) 

R$ 0,4

<><> Vamos entender o papel de cada uma delas:

# A Emgepron (Empresa Gerencial de Projetos Navais) é uma estatal vinculada ao Ministério da Defesa e atua principalmente no apoio ao desenvolvimento e à gestão de projetos estratégicos da Marinha do Brasil. Sua função principal é fornecer suporte em áreas como construção naval, modernização de embarcações e gerenciamento de projetos navais, além de contribuir para a indústria de defesa nacional. Além de atender às demandas da Marinha, a Emgepron também oferece serviços e produtos para o mercado civil e internacional, o que contribui para a geração de receita. Ela representa um custo, não um prejuízo.

# A Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social) é uma estatal vinculada ao Ministério da Previdência Social que fornece soluções tecnológicas para a administração pública. A empresa tem um papel essencial na gestão de dados previdenciários e sociais e no suporte à implementação de políticas públicas voltadas para o cidadão. A Dataprev teve papel central na implementação do Auxílio Emergencial durante a pandemia da Covid-19, processando milhões de pedidos e integrando dados de diferentes bases governamentais para evitar fraudes.

# O Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) é uma estatal brasileira vinculada ao Ministério da Fazenda, e sua principal função é fornecer soluções de tecnologia da informação e serviços de processamento de dados para órgãos e entidades da administração pública. 

# A Hemobras (Hemobras – Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) é uma estatal brasileira vinculada ao Ministério da Saúde. Sua principal função é a produção e distribuição de hemoderivados, que são medicamentos derivados do sangue, essenciais para o tratamento de diversas condições de saúde.

# A ENBPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional) é uma estatal brasileira criada em 2021 com a função de administrar e coordenar ativos estratégicos do setor energético, com foco em energia nuclear e projetos binacionais, especialmente a Itaipu Binacional. Sua criação ocorreu como parte da reestruturação do setor energético, com o desmembramento de algumas atividades que eram geridas pela Eletrobras, após a privatização parcial desta empresa.

Se fossem menos cabeças de planilha, os técnicos que elaboraram esse estudo ao menos estimariam o preço dos serviços prestados por essas estatais aos respectivos ministérios. Aí, ao menos serviria de subsídio para uma melhoria gerencial. Do modo como o trabalho foi elaborado, serviu apenas para alimentar manchetes terroristas.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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