No município “mais bolsonarista” da
Amazônia, a esquerda adota bandeiras da direita
Mydjere Mekrangnotire,
42 anos, é personagem raro em Novo Progresso (PA), município considerado o
“mais bolsonarista” da Amazônia. Filiado ao PT e candidato (derrotado) a
vereador, ele defende a preservação da Amazônia e a não exploração das terras
indígenas por mineradoras e pelo agronegócio e acredita que a emergência
climática é uma realidade cientificamente comprovada que ameaça o presente e o
futuro do planeta.
“O pessoal fala que a
queimada foi culpa desse governo atual. Não foi. Quem tá colocando fogo são os
próprios fazendeiros, os próprios grileiros. Nós perdemos a maior parte da
nossa terra [Baú]. Não foi indígena que botou fogo. O fogo começou fora da reserva
e entrou. Então eu digo: se você quiser respirar ar puro, vote no Mydjere”,
disse a liderança Kayapó à Agência Pública três dias antes do pleito
de 6 de outubro. O indígena, que mora em Novo Progresso, mas se lançou vereador
pelo município de Altamira, recebeu apenas 134 votos e não foi eleito.
Mydjere disse que
sabia que sua eleição seria uma tarefa difícil. A exemplo dos outros candidatos
do PT na região, ele recebeu apenas R$ 341,38 do fundo partidário, via direção
estadual do partido, para fazer sua campanha. Mas a falta de recursos foi só um
dos problemas. O clima político em Novo Progresso e região é totalmente
adverso a um discurso ambientalmente responsável. Tanto que Mydjere resolveu,
após conversas com as lideranças Kayapó, se lançar em Altamira.
O PSOL e outras siglas
de esquerda inexistem como atores políticos em Novo Progresso, município de 33
mil habitantes criado às margens da rodovia BR-163, aberta nos anos 1970 pela
ditadura militar. O papel de “esquerda” cabe, em tese, ao diminuto Partido
dos Trabalhadores, que lançou oito candidatos a vereador – nenhum se
elegeu. O mais votado, “Ceará Piranha”, recebeu apenas 96 votos (o
vereador eleito menos votado recebeu 407 sufrágios).
Jovem liderança
engajada no movimento indígena que saiu adolescente de sua aldeia para estudar
e voltou para ajudar seu povo Kayapó, Mydjere parece pregar no deserto quando
fala em defesa das florestas em uma região pressionada pela força do
agronegócio e marcada por constantes invasões de terras protegidas pela União.
Como a vizinha Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, um colosso socioambiental
de 1,3 milhão de hectares que já perdeu 15% de sua cobertura vegetal natural
principalmente para pastagens ilegais.
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Por que isso importa?
- A Agência Pública percorreu a BR-163, entre os estados de
Mato Grosso e Pará, e o município de Novo Progresso é um dos locais dessa
rota onde nossa equipe investigou como o tema das mudanças climáticas e
meio ambiente foi discutido nas eleições municipais. A região é
extremamente marcada por fogo, conflitos e desmatamento, com cidades que
registram grande adesão ao bolsonarismo.
O apoio à ocupação da
Flona Jamanxim e à abertura de mais terras para madeireiras e agronegócio e a
repulsa aos órgãos de repressão aos crimes ambientais, como Ibama e ICMBio,
contagiam vastas parcelas da população. No primeiro turno das eleições de 2022, Novo
Progresso foi o município que
mais concedeu votos a Jair Bolsonaro entre os 772 municípios em toda a Amazônia
Legal e o quarto no país, com 79,6% dos votos válidos destinados ao então
candidato à reeleição. No segundo turno, a cidade computou 82,92% para o candidato do
PL.
Em 2017, em um
episódio classificado pelo governo federal como atentado, nove caminhonetes do Ibama foram queimadas em um trecho da BR-163. Em
resposta, a então presidente do Ibama Suely Araújo determinou o bloqueio de
todas as serrarias em Novo Progresso. Em 2016, o policial militar João Luiz de
Maria Pereira, 44 anos, que acompanhava uma fiscalização do Ibama dentro da
Jamanxim, foi morto a
tiros numa emboscada. Há registro de outra emboscada,
em 2012. No rio Tapajós, uma equipe do Ibama foi atacada a
tiros em 2023.
Em novembro de 2022,
após a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro para Lula, seguidores do candidato
do PL atacaram a
tiros e pedradas as equipes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que tentaram
desbloquear um trecho da rodovia.
Nesse cenário, a
esquerda tornou-se tão inexpressiva em Novo Progresso que o prefeito candidato
à reeleição Gelson Dill é do MDB, mas não aceitou fazer uma coligação com o PT.
Em outras cidades do Pará ao longo da BR-163, como Santarém (PA), o PT de
lideranças regionais como os deputados federais Zé Geraldo e Airton Faleiro e o
MDB do governador Helder Barbalho integraram uma mesma frente eleitoral. Mas
não em Novo Progresso.
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Presidente municipal do PT defende redução de Floresta Nacional
O PT é presidido no
município por um empresário dono de posto de gasolina que se filiou ao partido
há apenas cinco meses, embora diga que foi “um dos fundadores” da sigla no
município. Aldecir Nardino é um personagem capaz de dar um nó na cabeça do
analista que pretenda compreender o cenário político na região à luz de uma
divisão entre esquerda e direita. Ele tem exatamente o mesmo discurso do
prefeito Dill, da direita e do agronegócio.
O sonho de Nardino é
que o governo Lula “regularize” as ocupações na Flona do Jamanxim ou, ainda
melhor, que vá além e reduza os limites da floresta. É a mesma tentativa
prevista em um decreto encaminhado em 2017 ao Congresso Nacional pelo então
presidente Michel Temer (nº 8.107/2017). A direita na região também sonha com a aprovação desse
projeto.
O próprio Nardino
disse que já teve “um lote de 2,5 mil hectares” dentro da Flona, mas que teve
que deixá-lo para vir trabalhar na cidade. Quando foi criada em 2006, durante o
primeiro governo Lula a partir de gestões da então ministra do Meio Ambiente Marina
Silva, a Flona aceitava a presença de famílias que já estivessem nela. Com o
tempo, contudo, essa ocupação se ampliou para níveis alarmantes. O governo hoje
estima que 180 mil cabeças de
gado estejam sendo criadas dentro da floresta.
Nardino afirma que
estava entre as primeiras famílias antes da Flona e que, por isso, quer
“regularizar” seu lote. É a mesma expectativa de muitas outras famílias, disse
o presidente municipal do PT.
“[Estamos] aguardando
o governo que nos dê alguma coisa em troca, outra propriedade, ou que a Flona
seja, vamos dizer assim, dividida com quem de 2008 para cá, que esteja morando
lá até 2008. […] Estamos aguardando o que o governo vai fazer, a ministra do
Meio Ambiente juntamente com as autoridades, os deputados que estão muito
trabalhando para tentar resolver, que é o Airton Faleiro, o Zé Geraldo,
vice-presidente do PT nacional, e os deputados também do MDB e de outros
partidos também estão lutando para que seja uma realidade. Que um dia a
negociação da Flona diminua a área, e aí quem está lá de 2008 para cá, que é a
lei que permite, ver o que vai acontecer, se vamos legalizar ou vamos ajudar
com outra área para nós nos retirarmos.”
Nardino disse que “há
mais de 40 anos” tem um lote de “12 mil hectares” em outra área protegida no
Pará, esta pelo governo estadual, a Floresta Estadual (Flota) Iriri, com cerca
de 440 mil hectares na vizinha Altamira. Nardino disse que ocupa uma vaga no
conselho gestor da unidade de conservação e que trabalhou internamente para que
a entidade já aprovasse uma “desafetação”, isto é, a alteração de uma
classificação legal, de “uma faixa de 30 km”.
“Fui conversando com
eles. Entrei no meio das ONGs. Comecei a trabalhar. […] Fiquei com eles, dias e
dias na amizade. Conversando. E conseguimos resolver. Deram 30 quilômetros. Vai
ser publicado agora […]. Tem conselho, vota tudo certinho e vai pro governo.
[…] E é por isso que os caras tão respeitando eu aqui. Agora eu sou
Deus pra eles. Não é mentira, não. Eu sou honrado por eles porque eu consegui
resolver aquele negócio lá.”
A partir da
“desafetação”, disse Nardino, madeira com uso comercial será retirada da
floresta e revendida por Novo Progresso, gerando divisas para o município. E
que também “vai ter área garimpeira”.
Talvez seja por
defender essas bandeiras que Nardino diz não sofrer nenhuma retaliação ou
ameaça no município de Novo Progresso. Por outro lado,
a Pública não encontrou adesivos ou sinais do PT no carro que
utiliza, uma caminhonete.
“Quem [me] ofende é os
dois ou três, mas os grandes líderes, os [empresários] do comércio, eu sou bem
recebido. A minha pessoa – apesar que o Bolsonaro fez 86% de votos aqui –, eu
sou um rapaz muito benquisto. Eu posto todas as coisas do grupo [de WhatsApp],
posso mostrar para vocês, e ninguém me critica. Porque eu tenho um nome a
zelar, e o pessoal gosta muito de mim, porque eu não sou radical, eu sou uma
pessoa que trabalha pelo direito. Eu defendo o meu partido, mas dentro do
direito, e ajudo também os outros partidos aqui.”
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Candidato pelo PT
disse que passou “uma adrenalina muito difícil”
Mas a realidade não é
exatamente a mesma para outros militantes do PT no município. O ex-candidato a
vereador Ceará Piranha, ou Antonio Sousa, 53 anos, mostrou
à Pública como seu carro foi amassado na lateral, segundo ele por um
soco, e rabiscado. Ele disse que passou a campanha toda exibindo uma estrela
vermelha do PT no automóvel. Não chegou a ser diretamente ameaçado, mas
eleitores de outros partidos vinham tirar satisfações ou fazer comentários
negativos sobre ele ter escolhido o PT.
“Eu sou um cara que as
pessoas me perseguem muito por estar nesse partido, né? […] Você sabe que o
governo do PT mandou nesse Brasil por 16 anos e ninguém falava que esse governo
era ruim. Nunca vi ninguém. Mas, de um certo tempo pra cá, depois que entrou
esse outro governo [de Bolsonaro], criou uma discórdia no coração das pessoas
muito grande, meu irmão. Pra sair candidato nesse partido, pela minha cidade,
eu tenho passado uma adrenalina aí muito difícil, viu?”
Nascido em Camocim
(CE), Ceará chegou ao Pará por volta de 1986. Primeiro foi trabalhar nos
garimpos de Serra Pelada, onde viu acidentes terríveis, que disse que jamais
esquecerá. Eram os soterramentos causados pelo desprendimento das bordas de
terra dos barrancos.
“Vi morrer 30, 40
companheiros de uma vez não só num dia, mas num minuto mesmo. Havia lá
barreiras a 250 metros de altura de onde a gente trabalhava. Quando aquilo
caía, meu irmão, ali embaixo não tinha perdão. Era uma tragédia imensa.”
Por presenciar tantas
mortes, Ceará foi “desgostando” da vida no garimpo e, depois de passar por
outras cidades, fixou-se em Novo Progresso no início da década de 1990. Virou
comerciante – daí vem o apelido “Piranha”, que era o peixe que ele pescava e revendia
na cidade. Hoje toca uma mercearia no município.
Ceará disse que
procurou falar, durante toda a campanha eleitoral, sobre os problemas
ambientais do município. Disso ele não abre mão, assegurou.
“Eu bato muito em cima
disso aí, porque, se você ver o que a gente tá passando, e que pode passar mais
no futuro, entendeu? Com essas questões do aquecimento global, desmatação. […]
A pior seca que eu já tenho visto nos últimos tempos foi a desse ano de 2024. A
pior de todas. Eu combato muito essa questão dessas coisas ilegais, derrubadas.
Os caras entram na mata derrubando tudo, queimando tudo. Eu sou contra isso aí.
E aí, quando chega a temporada de fogo, não tem como você não saber que
aconteceu com tudo isso. Aqui a gente paga muito caro. Idosos, crianças
pequenas. Nós passamos mais de 20 dias com essa situação.”
Mydjere Mekrangnotire,
o Kayapó que se lançou a vereador, já foi vice-presidente do Instituto Kabu, a
principal organização indígena da região, e foi coordenador de educação
indígena na Secretaria de Educação do governo do Pará.
Em 2020, Mydjere
esteve à frente de um protesto que
bloqueou a BR-163 a fim de denunciar o descumprimento de uma série de promessas
feitas pelo governo aos indígenas como medidas de compensação pelo
asfaltamento, nos anos 2000, da rodovia BR-163. Na ocasião, em carta à Funai,
os Kayapó denunciaram: “Estamos aqui defendendo a proteção da Amazônia, a
proteção do nosso território. O governo quer abrir as terras indígenas para
projetos que são ilegais, como garimpo, extração de madeira e arrendamento de
pasto em nossas terras. Isso nós não aceitamos”.
Mydjere é de uma
geração de lideranças indígenas que tentam alertar os moradores de Novo
Progresso para a necessidade da preservação ambiental e os riscos da emergência
climática.
“Eu decidi me lançar
como vereador porque muitos vereadores não indígenas que ocupam a Câmara com
voto nosso vêm emitindo para o meu povo promessas falsas, promessas de criar
lei falsas, promessas de educação escolar indígena, de melhoria. Tudo isso foi falso,
enganou os nossos caciques. E eles compram voto também. […] Não criaram uma lei
municipal para proteger a nossa reserva. Eles criam lei para liberar. Eles
criam lei para liberar garimpo ilegal dentro da nossa terra indígena. Foi aí
que eu vi, foi negativo”, disse Mydjere.
Ele afirma que
pretendia ser diferente na Câmara dos Vereadores. “Eu quero ser o oposto desses
vereadores não indígenas que estão ali. Eu quero colocar um projeto de lei para
proteger a nossa reserva. Eu quero proteger a minha aldeia. Eu quero proteger a
reserva, o pouquinho que a gente tem. Muitos garimpeiros, muitos madeireiros,
muitos grileiros falam que tem muita terra para pouco indígena. Mas não, a
gente tinha muito. A gente era dono do Brasil. Depois da invasão, hoje esses
invasores criaram leis, colocaram a gente numa ilha. E a luta nossa é brigar
para aquela ilha pequenininha ficar do jeito que está. Não diminuir. O marco
temporal que está vindo aí, aprovaram para diminuir a reserva.”
Fonte: Por Rubens
Valente, da Agencia Pública
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