Povos indígenas têm o direito de dizer
"sim" ou "não" ao crédito de carbono, diz ministra Sonia
Guajajara
Valorizar os serviços
florestais prestados pelos povos indígenas é um assunto no topo da lista de
prioridades da ministra Sonia Guajajara.
À frente do Ministério
dos Povos Indígenas, ela advoga a necessidade urgente em se cortar
intermediários e fazer o financiamento chegar direto às comunidades que mantém
os territórios mais bem preservados do Brasil (as Terras Indígenas perderam 1%
de sua vegetação nativa desde 1985, afirma a rede MapBiomas).
“Hoje um tema global é
o financiamento, como garantir que os povos indígenas acessem diretamente os
fundos dedicados a combater as mudanças climáticas. Historicamente, houve os
intermediários que receberam esses recursos para fazer ações nos territórios.
Hoje, há uma demanda grande das organizações indígenas para que esse dinheiro
venha de forma direta”, afirma a ministra, em entrevista exclusiva a Um Só
Planeta.
O crédito de carbono é
uma alternativa na mesa de Sonia, desde que seja respeitada a governança
indígena. A ministra aguarda uma definição do Congresso Nacional, que discute a
regulamentação desse mercado no país. Enquanto isso, as notícias se alternam entre
projetos bilionários bem-sucedidos e “caubóis do carbono”, charlatões que
ludibriam comunidades e registros em cartório para lucrar com um negócio ainda
sem lei, mas com muito dinheiro envolvido.
Mesmo governos
estaduais decidiram não aguardar uma legislação, pois o apetite dos dólares de
empresas como Amazon e Microsoft vem batendo à porta. O Pará anunciou na
Climate Week de Nova York um contrato de quase R$ 1 bilhão, prontamente
criticado por lideranças indígenas, que afirmaram não terem sido consultados,
embora haja TIs como geradoras deste crédito.
“No Pará, sei que
houve diálogos entre alguns territórios indígenas, mas há essa divergência. Tem
indígenas que falam que não houve consulta, que não concordam, e ao mesmo tempo
tem indígenas que falam que houve um consentimento. Não podemos generalizar,
porque há pontos de vista diferentes”, afirma Sonia. O estado afirma que o
processo de consulta deve se consolidar até 2025, quando será assinado o
contrato.
<><> Na
conversa, a ministra ainda comentou aspectos da mudança climática na vida dos
povos indígenas, a discussão do Marco Temporal no STF (Supremo Tribunal
Federal), os avanços das COPs e mais detalhes da atuação do ministério. Leia a
seguir:
• Como a senhora percebe termos como
mudança climática, justiça climática e adaptação climática, de uma perspectiva
da realidade dos indígenas brasileiros? Levando em consideração, por exemplo, a
exposição à seca e incêndios que vemos em TIs na Amazônia e no Pantanal?
Sonia Guajajara: Às
vezes, a gente trata a mudança climática apenas como uma expressão, mas para
nós, povos indígenas, é uma mudança real que acontece na vida das pessoas. A
alteração no ciclo das chuvas, as secas, as enchentes, eventos extremos que
interferem na soberania alimentar e na cultura dos indígenas. Muitos rituais
dos povos indígenas acontecem na água, e quando riachos secam não é possível
fazer os rituais completos, se usa uma bacia… Muda toda a cultura.
No caso da soberania
alimentar não se tem mais época para plantar, para colher. Temos festas como a
festa do milho, e se esse milho não dá fruto no tempo certo, acaba
interferindo. A festa do mel, principal festa do meu povo, Guajajara, dura seis
meses, desde a coleta do mel até o momento em que programamos para beber o mel.
Hoje, com todas essas mudanças, você não consegue mais encontrar esse mel
natural, produzido pelas abelhas no mato, porque elas foram muito reduzidas,
por conta da seca, das queimadas.
Para nós, a mudança
climática é o que acontece de interferências e alterações no cotidiano dentro
dos Territórios Indígenas. Isso acaba trazendo a necessidade de se discutir a
justiça climática. Tenho falado muito isso, se você pensa hoje os impactos das
mudanças climáticas, como vai trazer não só a proteção ambiental mas a justiça
climática para estes que sempre protegeram a natureza? Nós, sendo os maiores
guardiões, somos os primeiros a ser impactados. A justiça climática é também
reconhecer todo esse conhecimento tradicional, o cuidado que os povos indígenas
têm, trazendo a mitigação destes danos causados pelo impacto da mudança
climática.
• Quais seriam formas práticas dessa
justiça, na visão da senhora? Seriam indenizações, financiamentos para
regeneração?
Hoje, para além de
pensar em combater o desmatamento, é pensar na restauração de áreas degradadas.
Para os povos indígenas, [essa justiça] é ter um ambiente que garanta o
alimento, os quintais produtivos, restauração de árvores e plantas perdidas. É
o cuidado do meio ambiente pensando no modo de vida nestes territórios, né?
Temos discutido muito
no âmbito das conferências internacionais esse apoio do financiamento direto
para os povos diretos, o investimento nos produtos da sociobiodiversidade que
são produzidos e preservados pelos povos indígenas. Hoje um tema global é o financiamento,
como garantir que os povos indígenas acessem diretamente os fundos dedicados a
combater as mudanças climáticas. Historicamente, houve os intermediários que
receberam esses recursos para fazer ações no territórios. Hoje, há uma demanda
grande das organizações indígenas para que esse dinheiro venha de forma direta.
Nós, como governo
federal, seguimos defendendo que haja apoio às ações governamentais, que são
responsabilidade de órgãos que cuidam da política indigenista, para fortalecer
suas ações dentro dos territórios [indígenas]. Se temos apoio direto ao
ministério para executar ações, é uma forma de reduzir estes danos e valorizar
a bioeconomia e os modos de vida próprios.
• Quando fala em apoio ao ministério, a
senhora está falando de orçamento?
Sim. Hoje nós temos
vários planos de gestão elaborados que o orçamento da União não é suficiente
para atender. É uma política nacional, resgatada no ano passado, apoiamos a
elaboração destes planos, e agora precisamos de custeio para a implementação
destes planos.
Então, para além do
financiamento direto para organizações realizarem suas atividades, é importante
o apoio para a política pública, pois afinal de contas, o que chega direto às
organizações não substitui a responsabilidade do Estado. A cooperação internacional,
as doações por meio dos fundos, complementam os recursos da União para que
estes planos sejam apoiados.
• Uma forma que está muito “quente” no
financiamento direto nesse sentido é o crédito de carbono, algo que toca os
TIs. Como a sra. vem acompanhando esse tema? Acredita nos créditos de carbono
como forma de fortalecer os povos indígenas?
O crédito de carbono
ainda é um tema complexo. Aqui no Brasil não temos regulamentação, um padrão
estabelecido para contratos de crédito de carbono. O Congresso Nacional está
discutindo uma regulamentação, mas não temos exemplos concretos se é positivo ou
negativo, de experiências que deram certo no crédito de carbono.
Eu vejo sim como uma
alternativa, desde que seja respeitada a governança indígena. Que se discuta o
plano territorial trazendo o crédito de carbono como uma das ações dentro de um
plano maior. Hoje, o que nós discutimos como governo federal, que o Ministério
do Meio Ambiente vem discutindo, é que precisa haver uma forma de valorizar
quem sempre protegeu.
O que se discutiu até
aqui é de se pagar quem destruiu para que ele refloreste. Hoje o que nós
defendemos é que haja esse reconhecimento para o trabalho que os povos
indígenas sempre desenvolveram para proteger o meio ambiente. É justo se pensar
formas desse reconhecimento e o crédito de carbono pode ser uma das opções,
desde que tenha essa preocupação com a governança territorial.
• Um exemplo que ilustra o que a sra.
coloca são os eventos recentes de estados anunciando contratos de crédito de
carbono que incluem territórios indígenas, e lideranças indígenas reclamando
que não foram consultadas. Como a sr.a vem observando esse atrito?
Não pode ser uma
imposição do Estado. É preciso respeitar esse processo de consulta, e os povos
que entenderem que é um mecanismo possível, eles têm o direito de dizer sim ou
não.
• A sra. teve oportunidade de conversar
com os governadores do Acre e do Pará (estados com tratativas em andamento)
sobre esse assunto?
Diretamente, não. Sei
que há uma discussão nos estados, no Acre há mais tempo. Eles vêm trabalhando o
pagamento de serviço ambiental, com agentes remunerados para fazer o trabalho
de proteção. No Pará, sei que houve diálogos entre alguns territórios indígenas,
mas há essa divergência. Tem indígenas que falam que não houve consulta, que
não concordam, e ao mesmo tempo tem indígenas que falam que houve um
consentimento. Não podemos generalizar, porque há pontos de vista diferentes.
• No mercado livre de crédito de carbono
temos valores muito altos e grandes empresas, como Apple, Microsoft e Amazon,
entrando no Brasil. A sra. crê que esse possa ser um modelo de negócio possível
de parceria público-privada, um financiamento direto que possa incrementar
questões de segurança, saúde, tão prejudicadas pelas invasões do garimpo?
Tudo depende do
processo de consulta. O diálogo que vai encaminhar se é algo possível ou não.
Não posso responder aqui se estou de acordo ou não sem ter esse diálogo com os
povos indígenas. Aqui [no ministério] uma das nossas premissas para implantação
de qualquer iniciativa nos territórios é obedecer esse processo de diálogo. Já
pensamos muito pela falta dele e aprendemos com a história que tudo precisa ser
respeitado esse direito de consulta.
• Falando sobre a discussão do Marco
Temporal, quais as primeiras impressões do processo de conciliação no STF?
Agora se começa a
desenhar o caminho de discussão na Câmara. Até então o que houve foram debates,
escutas dos dois lados, para discutir a Lei 14.701. Essa lei está aprovada pelo
Congresso Nacional, houve vários pedidos para que o Supremo Tribunal Federal
apenas reafirmasse a sua posição de inconstitucionalidade da lei, e do Marco
Temporal, só que a lei trouxe vários outros pontos, projetos apensados a esse
projeto de lei. Então, a suspensão da lei não ocorre porque a lei não trata
somente deste tema, mas de vários outros.
O Ministério dos Povos
Indígenas, cumprindo seu papel institucional, vai seguir presente, promovendo
diálogo e defendendo os direitos dos povos indígenas. Enquanto governo,
precisamos cumprir esse papel, o que é diferente nesse momento do próprio
movimento [indígena].
O movimento tem o
direito de participar ou não, e nós, enquanto governo, temos outro papel. O que
quer dizer que nós temos essas duas formas de se manifestar, estar dentro
dialogando, enquanto governo, e o movimento indígena dizer não, que não
concorda, e estar no seu direito de não participar. Da nossa parte, o que fica
é que vamos estar ali fazendo a defesa incondicional dos direitos dos povos
indígenas.
O fato de hoje
estarmos [os indígenas] no governo não quer dizer que mudamos de posição. é
algo que precisa ficar claro: nossa posição [do ministério] sobre o Marco
Temporal segue sendo contrária.
• O ministério foi criado neste governo e
está chegando a dois anos de trabalho. Como a sra. vem trabalhando para manter
este projeto independentemente de mudanças nos próximos governos? Assim como
foi criado, o ministério poderia ser extinto…
É lógico que nós
trabalhamos para consolidar o ministério, construindo políticas que possam
garantir essa continuidade. Temos o espaço de participação social, como o CNPI
(Conselho Nacional de Política Indigenista), composto por 30 representações
indígenas e 30 órgãos do governo federal, entre ministérios e autarquias como
Funai, Ibama, Incra. Temos o comitê gestor da PNGATI (Política Nacional de
Gestão Territorial e Ambiental Indígena), composto pelo movimento indígena e
órgãos do governo, fazendo uma alternância de coordenação entre um e outro.
Então, vamos criando esses mecanismos que vão consolidando a política
indigenista com essa pauta transversal, com outros ministérios.
Tem sempre um risco,
saímos de um governo que acabou com vários ministérios, ou transformou em
secretarias, né? Cada um vai governar de acordo com seus interesses, mas
acreditamos que o Ministério dos Povos Indígenas veio para ficar, e vamos
continuar construindo nossa política, de forma que esteja garantida no Plano
Plurianual, para ter orçamento que garanta seu funcionamento, e também frente a
essa emergência que o mundo vive, em que os povos indígenas trazem várias
alternativas para conter a crise climática.
O mundo inteiro
reconhece o papel dos territórios indígenas. Qualquer atuação hoje contra o
ministério é um negacionismo contra as próprias emergências que o mundo
enfrenta. Então, temos trazido para o debate internacional toda essa
contribuição que os povos indígenas dão não só para o Brasil, mas para o mundo.
• Sobre o petróleo na foz do Amazonas,
queria aproveitar o conhecimento da sra. como interlocutora de vários povos
indígenas brasileiros e perguntar o que a sra. escuta das lideranças sobre esse
tema.
É um tema complexo,
espinhoso, com posições diferentes dentro do governo e também entre as
lideranças indígenas. Sempre há quem defenda e quem conteste. O que vai
responder isso é o próprio processo de consultas, o diálogo é sempre o melhor
caminho. Quem tem que apontar são os órgãos responsáveis pelos estudos e
licenciamentos para dizer se é viável ou não.
• Do ponto de vista de mercado, se avalia
de uma forma o custo e o benefício de uma empreitada dessas. Mas para quem
depende desses ecossistemas, a visão pode ser outra. Quais os argumentos pró e
contra entre as lideranças indígenas?
O dano ambiental, na
alteração do modo de vida sempre tem, não tem jeito. Altera totalmente. Mas o
Brasil está pensando em uma transição energética, e o que o governo tem dito é
que não é possível cortar [a produção de combustíveis fósseis] de forma abrupta.
O país está assumindo compromissos, e um plano está sendo construído, liderado
pela próprio Ministério do Meio Ambiente.
Essa mudança [de
matriz energética] é necessária, pelo que vivemos hoje com tudo que vem
acontecendo em termos de fenômenos extremos, é preciso haver uma mudança no
Brasil e no mundo nos modelos de exploração e produção de energia. Acho que o
Brasil está construindo esse caminho para construir uma transição que seja
justa e dialogada com todas as pessoas.
• As COPs são espaços para diálogos como
este. Temos uma cúpula da biodiversidade em andamento na Colômbia e uma a
acontecer em breve, para tratar de financiamento. Como a sra. vê o estado das
discussões?
Eu participo das COPs
do clima desde 2009 e pude perceber o avanço na participação indígena. Quando
eu comecei tínhamos quatro, cinco representantes indígenas do Brasil, e no ano
passado tivemos mais de 100 representações indígenas só do Brasil. Juntando os
indígenas presentes, foram mais de 300, a maior delegação de todos os tempos.
Mesmo com esse aumento
da representação, a gente percebe a necessidade de não só uma quantidade maior,
mas a qualidade dessa representação. No ano passado foi a primeira vez que
participamos de negociações paralelas e também a incidência direta, falando com
negociadores e participando de debates sobre os textos oficiais, que ficam ao
final dos acordos. Percebendo isso, criamos no ministério um programa de
formação para lideranças indígenas na política global. A ideia é aumentar a
nossa incidência de forma direta, e que indígenas possam estar acompanhando
diretamente as decisões tomadas no espaço oficial.
Acho que temos
conseguido avanços de participação e estamos discutindo como ter um
credenciamento específicos para indígenas, pois hoje nessas cúpulas ou você é
de governo ou de ONG. Estamos discutindo para que haja um reconhecimento dessa
presença indígena como um participante especial, algo importante no processo.
Estamos trabalhando
para que a COP30, ano que vem aqui no Brasil, seja a COP dos povos indígenas.
Há uma expectativa dessa participação, para que possamos chegar com a maior e
melhor COP da história, mas construindo legados. Como vamos trabalhar após a COP30,
implementando ações nacionais, com políticas públicas de reconhecimento,
valorização e apoio direto aos povos indígenas. O financiamento é o tema do
momento e nós estamos brigando muito para que essa valorização esteja não só
nos tratados, como reconhecimento, mas na forma de apoio para financiamento
direto, para que os indígenas continuem a preservação da natureza e a produção
de bioprodutos.
Fonte: Um só Planeta
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