sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Povos indígenas têm o direito de dizer "sim" ou "não" ao crédito de carbono, diz ministra Sonia Guajajara

Valorizar os serviços florestais prestados pelos povos indígenas é um assunto no topo da lista de prioridades da ministra Sonia Guajajara.

À frente do Ministério dos Povos Indígenas, ela advoga a necessidade urgente em se cortar intermediários e fazer o financiamento chegar direto às comunidades que mantém os territórios mais bem preservados do Brasil (as Terras Indígenas perderam 1% de sua vegetação nativa desde 1985, afirma a rede MapBiomas).

“Hoje um tema global é o financiamento, como garantir que os povos indígenas acessem diretamente os fundos dedicados a combater as mudanças climáticas. Historicamente, houve os intermediários que receberam esses recursos para fazer ações nos territórios. Hoje, há uma demanda grande das organizações indígenas para que esse dinheiro venha de forma direta”, afirma a ministra, em entrevista exclusiva a Um Só Planeta.

O crédito de carbono é uma alternativa na mesa de Sonia, desde que seja respeitada a governança indígena. A ministra aguarda uma definição do Congresso Nacional, que discute a regulamentação desse mercado no país. Enquanto isso, as notícias se alternam entre projetos bilionários bem-sucedidos e “caubóis do carbono”, charlatões que ludibriam comunidades e registros em cartório para lucrar com um negócio ainda sem lei, mas com muito dinheiro envolvido.

Mesmo governos estaduais decidiram não aguardar uma legislação, pois o apetite dos dólares de empresas como Amazon e Microsoft vem batendo à porta. O Pará anunciou na Climate Week de Nova York um contrato de quase R$ 1 bilhão, prontamente criticado por lideranças indígenas, que afirmaram não terem sido consultados, embora haja TIs como geradoras deste crédito.

“No Pará, sei que houve diálogos entre alguns territórios indígenas, mas há essa divergência. Tem indígenas que falam que não houve consulta, que não concordam, e ao mesmo tempo tem indígenas que falam que houve um consentimento. Não podemos generalizar, porque há pontos de vista diferentes”, afirma Sonia. O estado afirma que o processo de consulta deve se consolidar até 2025, quando será assinado o contrato.

<><> Na conversa, a ministra ainda comentou aspectos da mudança climática na vida dos povos indígenas, a discussão do Marco Temporal no STF (Supremo Tribunal Federal), os avanços das COPs e mais detalhes da atuação do ministério. Leia a seguir:

•        Como a senhora percebe termos como mudança climática, justiça climática e adaptação climática, de uma perspectiva da realidade dos indígenas brasileiros? Levando em consideração, por exemplo, a exposição à seca e incêndios que vemos em TIs na Amazônia e no Pantanal?

Sonia Guajajara: Às vezes, a gente trata a mudança climática apenas como uma expressão, mas para nós, povos indígenas, é uma mudança real que acontece na vida das pessoas. A alteração no ciclo das chuvas, as secas, as enchentes, eventos extremos que interferem na soberania alimentar e na cultura dos indígenas. Muitos rituais dos povos indígenas acontecem na água, e quando riachos secam não é possível fazer os rituais completos, se usa uma bacia… Muda toda a cultura.

No caso da soberania alimentar não se tem mais época para plantar, para colher. Temos festas como a festa do milho, e se esse milho não dá fruto no tempo certo, acaba interferindo. A festa do mel, principal festa do meu povo, Guajajara, dura seis meses, desde a coleta do mel até o momento em que programamos para beber o mel. Hoje, com todas essas mudanças, você não consegue mais encontrar esse mel natural, produzido pelas abelhas no mato, porque elas foram muito reduzidas, por conta da seca, das queimadas.

Para nós, a mudança climática é o que acontece de interferências e alterações no cotidiano dentro dos Territórios Indígenas. Isso acaba trazendo a necessidade de se discutir a justiça climática. Tenho falado muito isso, se você pensa hoje os impactos das mudanças climáticas, como vai trazer não só a proteção ambiental mas a justiça climática para estes que sempre protegeram a natureza? Nós, sendo os maiores guardiões, somos os primeiros a ser impactados. A justiça climática é também reconhecer todo esse conhecimento tradicional, o cuidado que os povos indígenas têm, trazendo a mitigação destes danos causados pelo impacto da mudança climática.

•        Quais seriam formas práticas dessa justiça, na visão da senhora? Seriam indenizações, financiamentos para regeneração?

Hoje, para além de pensar em combater o desmatamento, é pensar na restauração de áreas degradadas. Para os povos indígenas, [essa justiça] é ter um ambiente que garanta o alimento, os quintais produtivos, restauração de árvores e plantas perdidas. É o cuidado do meio ambiente pensando no modo de vida nestes territórios, né?

Temos discutido muito no âmbito das conferências internacionais esse apoio do financiamento direto para os povos diretos, o investimento nos produtos da sociobiodiversidade que são produzidos e preservados pelos povos indígenas. Hoje um tema global é o financiamento, como garantir que os povos indígenas acessem diretamente os fundos dedicados a combater as mudanças climáticas. Historicamente, houve os intermediários que receberam esses recursos para fazer ações no territórios. Hoje, há uma demanda grande das organizações indígenas para que esse dinheiro venha de forma direta.

Nós, como governo federal, seguimos defendendo que haja apoio às ações governamentais, que são responsabilidade de órgãos que cuidam da política indigenista, para fortalecer suas ações dentro dos territórios [indígenas]. Se temos apoio direto ao ministério para executar ações, é uma forma de reduzir estes danos e valorizar a bioeconomia e os modos de vida próprios.

•        Quando fala em apoio ao ministério, a senhora está falando de orçamento?

Sim. Hoje nós temos vários planos de gestão elaborados que o orçamento da União não é suficiente para atender. É uma política nacional, resgatada no ano passado, apoiamos a elaboração destes planos, e agora precisamos de custeio para a implementação destes planos.

Então, para além do financiamento direto para organizações realizarem suas atividades, é importante o apoio para a política pública, pois afinal de contas, o que chega direto às organizações não substitui a responsabilidade do Estado. A cooperação internacional, as doações por meio dos fundos, complementam os recursos da União para que estes planos sejam apoiados.

•        Uma forma que está muito “quente” no financiamento direto nesse sentido é o crédito de carbono, algo que toca os TIs. Como a sra. vem acompanhando esse tema? Acredita nos créditos de carbono como forma de fortalecer os povos indígenas?

O crédito de carbono ainda é um tema complexo. Aqui no Brasil não temos regulamentação, um padrão estabelecido para contratos de crédito de carbono. O Congresso Nacional está discutindo uma regulamentação, mas não temos exemplos concretos se é positivo ou negativo, de experiências que deram certo no crédito de carbono.

Eu vejo sim como uma alternativa, desde que seja respeitada a governança indígena. Que se discuta o plano territorial trazendo o crédito de carbono como uma das ações dentro de um plano maior. Hoje, o que nós discutimos como governo federal, que o Ministério do Meio Ambiente vem discutindo, é que precisa haver uma forma de valorizar quem sempre protegeu.

O que se discutiu até aqui é de se pagar quem destruiu para que ele refloreste. Hoje o que nós defendemos é que haja esse reconhecimento para o trabalho que os povos indígenas sempre desenvolveram para proteger o meio ambiente. É justo se pensar formas desse reconhecimento e o crédito de carbono pode ser uma das opções, desde que tenha essa preocupação com a governança territorial.

•        Um exemplo que ilustra o que a sra. coloca são os eventos recentes de estados anunciando contratos de crédito de carbono que incluem territórios indígenas, e lideranças indígenas reclamando que não foram consultadas. Como a sr.a vem observando esse atrito?

Não pode ser uma imposição do Estado. É preciso respeitar esse processo de consulta, e os povos que entenderem que é um mecanismo possível, eles têm o direito de dizer sim ou não.

•        A sra. teve oportunidade de conversar com os governadores do Acre e do Pará (estados com tratativas em andamento) sobre esse assunto?

Diretamente, não. Sei que há uma discussão nos estados, no Acre há mais tempo. Eles vêm trabalhando o pagamento de serviço ambiental, com agentes remunerados para fazer o trabalho de proteção. No Pará, sei que houve diálogos entre alguns territórios indígenas, mas há essa divergência. Tem indígenas que falam que não houve consulta, que não concordam, e ao mesmo tempo tem indígenas que falam que houve um consentimento. Não podemos generalizar, porque há pontos de vista diferentes.

•        No mercado livre de crédito de carbono temos valores muito altos e grandes empresas, como Apple, Microsoft e Amazon, entrando no Brasil. A sra. crê que esse possa ser um modelo de negócio possível de parceria público-privada, um financiamento direto que possa incrementar questões de segurança, saúde, tão prejudicadas pelas invasões do garimpo?

Tudo depende do processo de consulta. O diálogo que vai encaminhar se é algo possível ou não. Não posso responder aqui se estou de acordo ou não sem ter esse diálogo com os povos indígenas. Aqui [no ministério] uma das nossas premissas para implantação de qualquer iniciativa nos territórios é obedecer esse processo de diálogo. Já pensamos muito pela falta dele e aprendemos com a história que tudo precisa ser respeitado esse direito de consulta.

•        Falando sobre a discussão do Marco Temporal, quais as primeiras impressões do processo de conciliação no STF?

Agora se começa a desenhar o caminho de discussão na Câmara. Até então o que houve foram debates, escutas dos dois lados, para discutir a Lei 14.701. Essa lei está aprovada pelo Congresso Nacional, houve vários pedidos para que o Supremo Tribunal Federal apenas reafirmasse a sua posição de inconstitucionalidade da lei, e do Marco Temporal, só que a lei trouxe vários outros pontos, projetos apensados a esse projeto de lei. Então, a suspensão da lei não ocorre porque a lei não trata somente deste tema, mas de vários outros.

O Ministério dos Povos Indígenas, cumprindo seu papel institucional, vai seguir presente, promovendo diálogo e defendendo os direitos dos povos indígenas. Enquanto governo, precisamos cumprir esse papel, o que é diferente nesse momento do próprio movimento [indígena].

O movimento tem o direito de participar ou não, e nós, enquanto governo, temos outro papel. O que quer dizer que nós temos essas duas formas de se manifestar, estar dentro dialogando, enquanto governo, e o movimento indígena dizer não, que não concorda, e estar no seu direito de não participar. Da nossa parte, o que fica é que vamos estar ali fazendo a defesa incondicional dos direitos dos povos indígenas.

O fato de hoje estarmos [os indígenas] no governo não quer dizer que mudamos de posição. é algo que precisa ficar claro: nossa posição [do ministério] sobre o Marco Temporal segue sendo contrária.

•        O ministério foi criado neste governo e está chegando a dois anos de trabalho. Como a sra. vem trabalhando para manter este projeto independentemente de mudanças nos próximos governos? Assim como foi criado, o ministério poderia ser extinto…

É lógico que nós trabalhamos para consolidar o ministério, construindo políticas que possam garantir essa continuidade. Temos o espaço de participação social, como o CNPI (Conselho Nacional de Política Indigenista), composto por 30 representações indígenas e 30 órgãos do governo federal, entre ministérios e autarquias como Funai, Ibama, Incra. Temos o comitê gestor da PNGATI (Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Indígena), composto pelo movimento indígena e órgãos do governo, fazendo uma alternância de coordenação entre um e outro. Então, vamos criando esses mecanismos que vão consolidando a política indigenista com essa pauta transversal, com outros ministérios.

Tem sempre um risco, saímos de um governo que acabou com vários ministérios, ou transformou em secretarias, né? Cada um vai governar de acordo com seus interesses, mas acreditamos que o Ministério dos Povos Indígenas veio para ficar, e vamos continuar construindo nossa política, de forma que esteja garantida no Plano Plurianual, para ter orçamento que garanta seu funcionamento, e também frente a essa emergência que o mundo vive, em que os povos indígenas trazem várias alternativas para conter a crise climática.

O mundo inteiro reconhece o papel dos territórios indígenas. Qualquer atuação hoje contra o ministério é um negacionismo contra as próprias emergências que o mundo enfrenta. Então, temos trazido para o debate internacional toda essa contribuição que os povos indígenas dão não só para o Brasil, mas para o mundo.

•        Sobre o petróleo na foz do Amazonas, queria aproveitar o conhecimento da sra. como interlocutora de vários povos indígenas brasileiros e perguntar o que a sra. escuta das lideranças sobre esse tema.

É um tema complexo, espinhoso, com posições diferentes dentro do governo e também entre as lideranças indígenas. Sempre há quem defenda e quem conteste. O que vai responder isso é o próprio processo de consultas, o diálogo é sempre o melhor caminho. Quem tem que apontar são os órgãos responsáveis pelos estudos e licenciamentos para dizer se é viável ou não.

•        Do ponto de vista de mercado, se avalia de uma forma o custo e o benefício de uma empreitada dessas. Mas para quem depende desses ecossistemas, a visão pode ser outra. Quais os argumentos pró e contra entre as lideranças indígenas?

O dano ambiental, na alteração do modo de vida sempre tem, não tem jeito. Altera totalmente. Mas o Brasil está pensando em uma transição energética, e o que o governo tem dito é que não é possível cortar [a produção de combustíveis fósseis] de forma abrupta. O país está assumindo compromissos, e um plano está sendo construído, liderado pela próprio Ministério do Meio Ambiente.

Essa mudança [de matriz energética] é necessária, pelo que vivemos hoje com tudo que vem acontecendo em termos de fenômenos extremos, é preciso haver uma mudança no Brasil e no mundo nos modelos de exploração e produção de energia. Acho que o Brasil está construindo esse caminho para construir uma transição que seja justa e dialogada com todas as pessoas.

•        As COPs são espaços para diálogos como este. Temos uma cúpula da biodiversidade em andamento na Colômbia e uma a acontecer em breve, para tratar de financiamento. Como a sra. vê o estado das discussões?

Eu participo das COPs do clima desde 2009 e pude perceber o avanço na participação indígena. Quando eu comecei tínhamos quatro, cinco representantes indígenas do Brasil, e no ano passado tivemos mais de 100 representações indígenas só do Brasil. Juntando os indígenas presentes, foram mais de 300, a maior delegação de todos os tempos.

Mesmo com esse aumento da representação, a gente percebe a necessidade de não só uma quantidade maior, mas a qualidade dessa representação. No ano passado foi a primeira vez que participamos de negociações paralelas e também a incidência direta, falando com negociadores e participando de debates sobre os textos oficiais, que ficam ao final dos acordos. Percebendo isso, criamos no ministério um programa de formação para lideranças indígenas na política global. A ideia é aumentar a nossa incidência de forma direta, e que indígenas possam estar acompanhando diretamente as decisões tomadas no espaço oficial.

Acho que temos conseguido avanços de participação e estamos discutindo como ter um credenciamento específicos para indígenas, pois hoje nessas cúpulas ou você é de governo ou de ONG. Estamos discutindo para que haja um reconhecimento dessa presença indígena como um participante especial, algo importante no processo.

Estamos trabalhando para que a COP30, ano que vem aqui no Brasil, seja a COP dos povos indígenas. Há uma expectativa dessa participação, para que possamos chegar com a maior e melhor COP da história, mas construindo legados. Como vamos trabalhar após a COP30, implementando ações nacionais, com políticas públicas de reconhecimento, valorização e apoio direto aos povos indígenas. O financiamento é o tema do momento e nós estamos brigando muito para que essa valorização esteja não só nos tratados, como reconhecimento, mas na forma de apoio para financiamento direto, para que os indígenas continuem a preservação da natureza e a produção de bioprodutos.

 

Fonte: Um só Planeta

 

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