Planos de ataque no Brasil e ligação com
PCC: as investigações da PF sobre o Hezbollah no país
A Polícia Federal (PF)
prendeu em novembro de 2023, na cidade do Rio de Janeiro, um terceiro suspeito
de integrar o grupo libanês Hezbollah.
Outros dois suspeitos
já haviam sido presos em São Paulo uma outra operação. Eles são investigados
por supostamente planejarem ataques contra a comunidade judaica no Brasil.
Estes casos lançaram
luz sobre a presença e a atuação da organização islâmica xiita em território
nacional.
As investigações, que
contaram com o apoio de serviços de inteligência dos Estados Unidos e de
Israel, apontam que um grupo de pelo menos quatro pessoas já teria mapeado
possíveis alvos para ataques em diversos pontos do Brasil, inclusive contra a
Embaixada de Israel, em Brasília. Procurada, a Embaixada de Israel não quis
comentar.
A BBC News Brasil
apurou que na operação desta quarta-feira (8/11), além do governo israelense,
também houve colaboração de agências de segurança dos Estados Unidos.
Batizada de Operação
Trapiche, a ação da PF também incluiu dois mandados de prisão contra outros
dois brasileiros que estão fora do Brasil e que seriam descendentes de
libaneses. De acordo com investigadores da PF ouvidos pela BBC News Brasil,
essas duas pessoas já estariam na lista de procurados da Interpol.
Ainda de acordo com as
fontes ouvidas pela BBC News Brasil, os planos para ataques coordenados contra
alvos judaicos no Brasil teriam sido intensificados após o início dos conflitos
entre o grupo palestino Hamas e o governo de Israel na Faixa de Gaza. No último
dia 7 de outubro, o grupo palestino Hamas promoveu ataques brutais que mataram
cerca de 1,4 mil pessoas em Israel e que detonaram a atual guerra.
Mais de 10,5 mil
pessoas foram mortas em Gaza desde então, segundo o Ministério da Saúde
administrado pelo Hamas, incluindo mais de 4,3 mil crianças.
O grupo Hezbollah foi
formado depois que Israel invadiu uma parte do sul do Líbano em 1982, em
resposta a uma série de ataques de palestinos contra Israel.
Além do seu braço
armado, o Hezbollah também tem um braço político. Desde 1992, o grupo participa
das eleições no Líbano e se transformou em uma importante força política do
país.
O Hezbollah conta,
desde sua criação, com forte apoio do Irã, uma das potências regionais do
Oriente Médio rivais de Israel.
No Brasil, a chegada
do Hezbollah teria ocorrido na década de 1980, quando houve uma grande
imigração libanesa para o país de pessoas que fugiam da guerra civil no Líbano.
É o que explica Jorge Lasmar, professor de Relações Internacionais na
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
“O grupo se infiltrou
em atividades religiosas, educacionais e comerciais, principalmente entre os
mulçulmanos xiitas. Alguns deles se tornaram líderes locais principalmente na
região da tríplice fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai)”, afirma o professor,
que cita a estimativa de 460 pessoas ligadas ao Hezbollah no lado brasileiro da
fronteira no início dos anos 2000.
Lasmar diz que o braço
armado do Hezbollah adotou um perfil mais discreto na América do Sul nos
últimos anos, com uma presença focada em atividades criminosas e não
terroristas: o foco estaria em tráfico de drogas, tráfico humano, contrabando e
lavagem de dinheiro.
A América Latina teria
sido uma das saídas encontradas pelo Hezbollah para buscar financiamento para o
seu braço armado após encontrar dificuldades financeiras decorrentes das
sanções impostas pelo Ocidente ao Irã, grande financiador e aliado do grupo libanês.
O professor ressalta,
porém, que nem todos os membros do Hezbollah fazem parte de seu braço armado e
que a comunidade libanesa na região tampouco deve ser confundida com os
integrantes do grupo.
A BBC News Brasil
entrou em contato com a Embaixada do Líbano no Brasil para um posicionamento,
mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
• Hezbollah e a tríplice fronteira
Ao menos desde os
ataques da Al-Qaeda, em 11 de setembro de 2001, nos EUA, autoridades americanas
passaram a monitorar atividades de grupos radicais islâmicos ao redor do mundo
e a expressar preocupação com a atuação deles. Entre os grupos que mais atraem
a atenção dos EUA está justamente o libanês Hezbollah. Suas atividades na
Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai motivaram uma série de
relatórios de inteligência, do Departamento de Estado e do Congresso dos EUA.
Ainda em 2002, o
Departamento de Estado lançou a iniciativa “3 + 1 Group on Tri-Border Area
Security”, pelo qual os americanos ofereciam treinamento e financiamento para
ações de contraterrorismo na Tríplice Fronteira a Brasil, Argentina e Paraguai.
Informações de inteligência de agências americanas também passaram a ser
compartilhadas com mais frequência com os colegas latino-americanos e o Comando
Militar do Sul dos Estados Unidos intensificou sua presença e atividades
conjuntas com as forças armadas dos três países. De lá pra cá, a região e suas
implicações com o Hezbollah estão constantemente no radar dos EUA.
Em 2011, o assunto foi
tema de uma sabatina no subcomitê de Contraterrorismo e Inteligência da Câmara
dos Deputados americana. Na ocasião, a deputada Jackie Speier, da Califórnia,
resumiu o entendimento das autoridades americanas sobre a situação do grupo
libanês na América Latina:
“O grupo (Hezbollah)
supostamente realiza ampla atividade financeira ilícita na América Latina,
incluindo tráfico de drogas, falsificação e contrabando. O epicentro dessas
atividades é a Área Tríplice Fronteiriça, uma região sub governada entre
Brasil, Argentina e Paraguai, onde as autoridades policiais locais não
conseguiram combater as atividades de numerosas organizações terroristas e
criminosas”.
A preocupação com o
Hezbollah se justificava não só porque, até os eventos do 11 de setembro, o
grupo xiita era o responsável pelos mais mortíferos assaltos a alvos
americanos: em 1983, integrantes do Hezbollah atacaram a embaixada e uma base
da marinha americanas na capital libanesa Beirute e provocaram mais de
trezentas vítimas. Autoridades argentinas também atribuem ao grupo o que são
considerados os maiores atentados em território sul-americano na história: os
ataques à bomba contra a Embaixada de Israel em Buenos Aires, em 1992, e a
Associação Mútua Argentina-Israelense (AMIA), em 1994 - que resultaram em mais
de cem mortos.
Nos dois casos, a
organização dos atos teriam sido realizadas justamente na Tríplice Fronteira,
afirmou a diretora-executiva do Comitê Interamericano de Combate ao terrorismo
da Organização dos Estados Americanos (OEA), Alison August Treppel, em 2019, por
ocasião dos 25 anos do atentado à AMIA.
“A Área Tríplice
Fronteiriça é há muito considerada um centro de atividades criminosas: tráfico
de armas e drogas; contrabando de mercadorias; documentos e moeda falsificados;
lavagem de dinheiro; e a circulação de mercadorias piratas. A proximidade geográfica
dos três principais centros urbanos da área – a cidade brasileira de Foz do
Iguaçu, a cidade paraguaia de Ciudad del Este e a cidade argentina de Puerto
Iguazu – facilita o trabalho de grupos criminosos e terroristas, que se
aproveitam das vulnerabilidades das instituições públicas locais”, disse
Treppel, a respeito da região que também atrai turismo de luxo graças às
belezas das Cataratas de Iguaçu.
Em 2006, o Tesouro
Americano qualificou o libanês Assad Ahmad Barakat como um “terrorista global”
e o incluiu, junto a seus irmãos, em uma lista de financiadores do Hezbollah.
No caso de Barakat, que teve parte dos negócios congelados, esse financiamento
acontecia na região de Iguaçu.
"A rede de Assad
Ahmad Barakat na Área da Tríplice Fronteira é uma importante artéria financeira
para o Hezbollah no Líbano", disse, à época, o então diretor do gabinete
de Controle de Ativos estrangeiros do Tesouro Americano, Adam Szubin.
Batizado de
“tesoureiro do Hezbollah”, Barakat foi preso em 2018 pela Polícia Federal em
Foz do Iguaçu. Antes disso, porém, ele teria lavado cerca de US$ 10 milhões
para o Hezbollah em cassinos na região de fronteira, segundo a polícia
argentina. Em 2020, Barakat foi extraditado para o Paraguai, onde seria julgado
por falsidade ideológica.
O libanês sempre negou
as acusações. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em 2002, ele disse que
havia um "complô econômico" para prendê-lo, e que acusações contra
ele tinham sido forjadas por um rival comercial que queria vingança.
"Esse absurdo
(envolvimento com terrorismo) só veio se somar ao monte de mentiras que
forjaram contra minha pessoa", disse ele à Folha na época.
Ele disse ser
simpatizante do Hezbollah, mas afirmou que "isso não é crime".
Ainda em 2006, o
Tesouro americano impôs sanções a Farouk Omairi, um libanês naturalizado
brasileiro, a quem o departamento identificou como "um coordenador dos
integrantes do Hezbollah na região,...(e) uma figura-chave na aquisição de
documentação falsa brasileira e paraguaia na tríplice fronteira."
Dezessete anos depois,
em junho último, o juiz federal argentino Daniel Rafecas pediu que a Interpol
buscasse Omairi, junto com outros três alvos de origem libanesa, para que
fossem detidos e explicassem sua atuação no ataque à AMIA. “Sobre esses indivíduos,
há suspeitas bem fundamentadas de que eles são colaboradores ou agentes
operacionais do braço armado do Hezbollah”, escreveu Rafecas na decisão,
segundo a agência de notícias Associated Press. Ali Hussein Abdallah, também
naturalizado brasileiro e possivelmente residente na tríplice fronteira, é
outro dos alvos no caso.
A BBC News Brasil
questionou o Departamento de Estado e a Embaixada dos EUA no Brasil sobre o
assunto. Os dois órgãos “parabenizaram” a Polícia Federal pelo sucesso da
operação e se recusaram a dar detalhes sobre sua atuação nas prisões desta
quarta-feira, embora a BBC News Brasil tenha apurado que agentes do FBI
trabalharam com a PF na investigação. O Departamento de Estado também não quis
comentar sobre sua histórica preocupação com o Hezbollah na Tríplice Fronteira.
Segundo Lasmar, estimativas americanas dão conta de que o grupo libanês
arrecade até US$1bilhão na área anualmente, mas a cifra é desconhecida, a
despeito das extensas investigações.
Ainda em 2011, a
deputada Speier expressou as dúvidas que persistem sobre a tríplice fronteira e
o Hezbollah para os americanos: “Embora saibamos que o Hezbollah arrecada
dinheiro na América Latina, não sabemos a verdadeira extensão das suas
operações. Quanto financiamento o Hezbollah realmente recebe de suas
atividades, tanto legais quanto ilegais, na América Latina?”
• Compartilhamento de informações entre as
polícias
A troca de informações
entre serviços policiais e de inteligência sobre a atuação do Hezbollah no
Brasil foi, segundo o Mossad (um dos principais serviços de inteligência de
Israel), responsável pela prisão dos brasileiros suspeitos de integrarem o
grupo libanês.
A BBC News Brasil
apurou que houve colaboração de agências de segurança dos EUA durante a
investigação que resultou na prisão dos brasileiros.
Esse tipo de
colaboração, dizem duas fontes policiais ouvidas pela BBC News Brasil, é uma
prática comum e frequente e envolve, na maior parte dos casos, a alta cúpula da
Polícia Federal, mais precisamente, a Diretoria de Inteligência do órgão,
responsável por investigar crimes como terrorismo e ações de inteligência e
contra-inteligência.
Um exemplo de como
essa colaboração é frequente consta de um relatório de inteligência, produzido
em 2012, e obtido pela BBC News Brasil.
No dia 28 de maio
daquele ano, a Superintendência da Polícia Federal no Rio Grande do Norte
informou ter recebido informações sobre a possibilidade de um atentado a bomba
a ser realizado no Brasil, Colômbia ou Bolívia.
De acordo com o
relatório, a organização por trás dos ataques seria o Hezbollah e as
informações sobre o suposto ataque teriam sido repassadas por agências de
segurança de países da América do Sul.
"Informações
repassadas por órgãos de inteligência na América do Sul sinalizam que unidade
especial do Hezbollah, em conjunto com a unidade especial do Irã (Força Qods)
estariam atuando no planejamento de atentados na América Latina,
particularmente no Brasil, na Colômbia e na Bolívia", diz um trecho do
documento.
O documento cita os
nomes de duas pessoas que teriam sido apontadas como suspeitas de integrar o
grupo. Seus nomes, no entanto, aparecem tarjados no documento. Elas foram,
segundo o relatório, incluídas no antigo Sistema Nacional de Procurados e
Impedidos (Sinpi).
A BBC News Brasil não
conseguiu verificar se as pessoas citadas no documento chegaram a ser presas.
• Hezbollah e o tráfico de drogas
Um dos pontos que mais
preocupa as autoridades brasileiras e estrangeiras em relação à atuação do
Hezbollah no Brasil e na região da Tríplice Fronteira é a possibilidade de o
grupo estar ligado a facções criminosas que exploram o tráfico internacional de
drogas.
Relatórios do governo
norte-americano também mencionam essa possibilidade.
No Brasil, essa
ligação foi levantada durante as investigações em torno de um brasileiro
apontado como traficante internacional de drogas ligado ao Primeiro Comando da
Capital (PCC). Segundo as investigações da Polícia Federal, ele seria um dos
principais nomes da facção na fronteira do Brasil com o Paraguai. Seu nome é
Elton Leonel Ruminich da Silva, conhecido como "Galã".
Segundo informações
repassadas à Justiça Federal do Rio de Janeiro pela Secretaria de Administração
Penitenciária fluminense, foram encontrados indícios de que "Galã"
mantinha ligação com integrantes do Hezbollah e que ele e seus supostos comparsas
teriam montado um plano de fuga. Até 2019, ele estava preso na penitenciária
Laércio da Costa Pellegrino, conhecida como Bangu 1, no Rio de Janeiro.
Após o repasse das
informações, a Justiça Federal autorizou a transferência de "Galã"
para um presídio federal de segurança máxima.
Procurado pela BBC
News Brasil, o advogado de Elton Leonel Ruminich da Silva, Eugenio Malavasi,
negou as supostas ligações do seu cliente com o Hezbollah.
"Essas conexões
nunca foram provadas. Não existem. Não há nenhum elemento factual que corrobore
essa vinculação", disse Malavasi.
O professor Jorge
Lasmar diz que investigações da Polícia Federal também identificaram ligações
entre o Hezbollah e o PCC. Isso ocorreria principalmente por conta das
atividades ilegais executadas pelo Hezbollah envolvendo contrabando e tráfico
de drogas.
“As evidências em
relação a isso estão cada vez maiores. Um documento de 2014 da Polícia Federal
aponta essa parceria com o PCC e os Estados Unidos sempre apontam essa
ligação”, afirma.
Lasmar explica que
essa relação ocorre porque o Hezbollah usa diversas rotas brasileiras
comandadas pelo PCC para traficar drogas, como a tríplice fronteira e o
aeroporto de Guarulhos. E, para isso, precisa negociar com a facção paulista.
Fonte: BBC News Brasil
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