Leonardo Matos: Parem de culpar o SUS -
contaminação por HIV em transplantes é consequência da privatização
O escândalo de
contaminação do sangue de pacientes do SUS transplantados por HIV no Rio
de Janeiro se enquadra naquilo que, no meio médico, se convencionou chamar
de evento sentinela, espécies de “canários na mina”.
Trata-se de
ocorrências graves, indesejadas e inesperadas em produtos ou serviços de saúde,
que causam ou podem causar danos significativos aos pacientes e à própria
reputação das instituições de saúde. E que poderiam ser evitadas.
Chamamos de sentinelas
porque alertam para falhas de segurança que exigem intervenção imediata,
rigorosa apuração, revisão de procedimentos e responsabilização de envolvidos.
Mais do que isso, podem indicar problemas estruturais ou sistêmicos, cuja resolução
extrapola apenas o nível técnico, da normatização, fiscalização e vigilância
sanitária dos produtos e serviços de saúde.
Ao ser identificada e
publicizada, a criminosa violência sofrida pelas vítimas revelou toda uma
cadeia de erros, fraudes, esquemas, negligências e omissões, que vão desde a
bancada do laboratório PCS LAB em Nova Iguaçu até as bancadas no Congresso
Nacional.
A quantidade de
pacientes afetados e os danos causados ainda são inestimáveis, pois
envolvem dezenas de serviços que
atendem milhares de pessoas expostas a riscos inaceitáveis. São incontáveis as
decisões clínicas tomadas com base em exames fraudulentos, o que coloca sob
suspeita desfechos, intervenções e diagnósticos que se utilizaram das
informações do laboratório.
Alguns detalhes geram revolta,
como o despudor, a irresponsabilidade e a completa falta de ética de técnicos e
profissionais envolvidos. Ou o mau-caratismo de gerentes e proprietários do
laboratório, que deliberadamente agiram para fraudar resultados de exames médicos
extremamente sensíveis.
Outros são velhos
conhecidos, como o envolvimento da cúpula da Secretaria Estadual de Saúde do
Rio de Janeiro, que já foi liderada por Sérgio Côrtes, Edmar Santos e pelo próprio
Dr. Luizinho, cujas relações com o PCS Lab vêm sendo amplamente divulgadas. Porém, o
alerta que o evento sentinela nos traz vai além da corrupção. E a
resposta a ele não deve ser apenas técnica ou criminal.
·
Um caso grave, mas sem precedentes. Não por
um acaso.
A gravidade do
ocorrido não tem precedentes nas últimas três décadas. E isso não é uma
coincidência. Entre 1987 e 1988, Betinho e Henfil, vítimas de contaminação pelo
vírus do HIV em transfusões de sangue para tratamento de hemofilia, lideraram a
campanha ‘Sangue Não é Mercadoria’ para pressionar a sociedade brasileira e a
assembleia constituinte pela vedação à comercialização de sangue e
hemoderivados.
Em 1986, Betinho,
junto de profissionais e ativistas de diversas áreas, já havia criado a
Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, a ABIA, lutando pelo tratamento adequado, respeitoso e público para os
portadores do HIV. Estes movimentos se somavam ao conjunto de reivindicações e
demandas da sociedade por uma reforma profunda no sistema de saúde
brasileiro.
Valeu a pena lutar. Em
1988, a Constituição reconheceu a saúde como direito social universal e dever
do Estado brasileiro. A comercialização de sangue foi proibida. Em 1990, foi
criado o Sistema Único de Saúde e, na esteira de sua criação, diversas políticas,
instituições, sistemas e programas de excelência foram implementados,
como o Sistema Nacional de Transplantes, o Programa de HIV/Aids, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Política Nacional de Sangue e Hemoderivados e a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia,
a Hemobras.
Tijolo por tijolo a
sociedade brasileira construiu democraticamente exemplos a serem exaltados
orgulhosamente. Escândalos envolvendo a contaminação de sangue deixaram de ser
notícia. O Brasil mostrou para o mundo, e para o Sul Global em especial, que é
possível o sonho de um país soberano, autossuficiente, inclusivo, democrático,
capaz de encontrar coletivamente soluções efetivas para as necessidades de
saúde de seus cidadãos.
Mas nem só de sucessos
essa história é feita. A mesma Constituição estabeleceu que a saúde era livre à
iniciativa privada, que deveria atuar em caráter complementar ao SUS.
A necessária ampliação
da oferta de serviços públicos desmercantilizados esbarrou no subfinanciamento
da saúde imposto pelas políticas macroeconômicas, na grande dependência de
prestadores privados – em especial hospitais e laboratórios – e nos limites da
lei de responsabilidade fiscal.
Ao mesmo tempo em que
o modelo tradicional de administração direta de serviços mostrou limites, as
alternativas gerencialistas como as organizações sociais e fundações foram
estimuladas e passaram a ser escolha prioritária para expansão da rede pública
por todo país.
Enquanto os recursos
das secretarias estaduais e municipais foram drenados para estas
modalidades, a promessa de mais eficiência e qualidade não se
confirmou, os resultados de saúde foram heterogêneos e ampliou-se a
fragmentação do sistema.
Mais do que isso, tais
modelos foram facilmente capturados pelos poderes regionais e locais,
utilizados como mecanismos de reprodução política e eleitoral do poder, com
consequências nefastas para a saúde.
A estes impasses, se
somam os anos recentes de teto de gastos, austeridade, obscurantismo,
enfraquecimento do Ministério da Saúde como autoridade sanitária, e
desestruturação de parte de sua capacidade técnica e operacional.
Atualizou-se a
requentada concepção de que o SUS deveria direcionar os esforços aos mais
pobres, ao mesmo tempo em que o acesso a planos de saúde de cobertura limitada
deveria ser estimulado.
Todavia, a pandemia de
Covid-19 nos trouxe para a realidade, mostrando ao mesmo tempo as consequências
dramáticas destes caminhos e a relevância estratégica do SUS para o
Brasil.
·
A solução do neoliberal para o SUS?
Privatizar mais, claro!
Longe de Nova Iguaçu e
no mesmo dia em que estourou o escândalo do PCS Lab, Armínio Fraga, um renomado
financista e ideólogo, manifestou suas preocupações com
o futuro da saúde no Brasil. Corretamente, apontou que deve se pensar o sistema
de saúde brasileiro como um todo, sem tratar público e privado como partes
isoladas.
Equivocadamente,
defendeu que devemos caminhar para um modelo mais híbrido, já que um ‘retorno’
ao modelo original do SUS não seria mais possível. Ora, há aí grande cinismo ou
negação dos fatos, que o evento sentinela nos ajuda a desvelar.
É justamente o
hibridismo o cerne do problema envolvendo o escândalo de contaminação. Foi o
argumento de que o Hemorio estava “sobrecarregado” que justificou a
terceirização dos exames para o PCS Saleme.
Hoje, mais de 90% dos laboratórios
de diagnóstico no Brasil são privados, e há uma enorme dificuldade em se
ampliar investimentos e oferta pública neste campo, bem como em fiscalizar os
inúmeros estabelecimentos privados tão precários quanto o PCS Lab.
É justamente o
hibridismo a marca do sistema de saúde brasileiro contemporâneo, fruto de
décadas de políticas de saúde com sinais contraditórios. A compatibilização
entre universalização e privatização se deu às custas de um SUS enfraquecido,
parasitado por todo tipo de negócio, aquém de suas possibilidades e das
necessidades dos brasileiros. Nós não precisamos caminhar para esta direção.
Nós já estamos aí.
De fato, não é
possível um retorno ao “modelo original” do SUS proposto pela reforma
sanitária, que pressupunha um sistema realmente único. Simplesmente porque não
é possível voltar a algo nunca implementado integralmente. Nunca ocorreram
movimentos concretos na direção da desprivatização do sistema.
Por outro lado, foram
mais bem-sucedidas justamente as experiências que se aproximaram do “modelo
original”, com forte protagonismo da provisão pública: a atenção primária, os
programas de imunização, transplantes, sangue e hemoderivados, HIV/Aids, entre
outras.
O caso do PCS Saleme
exige respostas muito mais duras e enfáticas das autoridades políticas e
sanitárias do que temos visto até o momento. E exige, sobretudo, uma ampla
resposta social.
Se formos capazes de
captar o alerta, entenderemos que é necessário reconstruir um projeto
estratégico para a saúde no Brasil, com base social e força política para
implementar uma agenda de mudanças estruturais progressivas.
Caso contrário,
corremos o risco de ver a reputação do SUS e da saúde pública, construída a
duras penas, na mesma vala comum dos esquemas mais sujos e pueris. Seria uma
grande derrota para o Brasil e para a democracia.
¨ O esquecido caso de amor entre a Veja e o Doutor Luizinho. Por João
Filho
Em meados do ano
passado, quando Lula planejava uma reforma ministerial, o Centrão passou a
salivar pelo Ministério da Saúde. O motivo da cobiça era claro: abocanhar um
dos maiores orçamentos do governo — cerca de R$ 189 bilhões em 2023.
Assim seria possível
ampliar a capacidade de liberação de emendas para seus redutos eleitorais e
turbinar as campanhas municipais deste ano. A ministra Nísia Trindade passou
então a ser fritada em praça pública com a ajuda da grande imprensa, em
especial da revista Veja, que ajudou a manter o óleo fervendo no
noticiário.
O PP de Arthur Lira
atuou fortemente nos bastidores para recuperar a pasta, que foi do partido
durante o governo Michel Temer. Em junho, uma matéria sensacionalista da
revista Veja apontava uma suposta irregularidade cometida pela ministra. “Disputa política e apuração de
irregularidade elevam temperatura na Saúde”, dizia a manchete.
A revista requentou um
factóide criado pelo bolsonarismo nos tempos em que Nísia era presidente da
Fiocruz. A tal “irregularidade” não passava de mais um ataque dos negacionistas
contra a ciência, como explicou o Intercept à época.
A reportagem revelou
também que o deputado Doutor Luizinho, então secretário de Saúde do Rio de
Janeiro, já era o nome mais cotado para substituir a ministra. No mesmo dia, a
revista Veja publicou uma nova matéria
sobre o assunto, dessa vez cravando o nome do novo ministro na manchete: “Dr
Luizinho, o ‘futuro ministro da Saúde’ escolhido pelo Centrão”.
Mas a coisa não parou
aí. A Veja parecia estar bastante empenhada em emplacar Doutor Luizinho no
Ministério da Saúde. No dia seguinte, uma nova reportagem chegou
para aumentar a fritura da ministra. “Nísia Trindade é alvo de críticas da
oposição e de aliados”, dizia a manchete. Em nenhuma dessas reportagens o
jornalismo entrou em campo para contextualizar a fritura da ministra.
De um lado, tínhamos
uma ministra conhecida por ser rigorosa com o orçamento. Do outro, um partido
que quer de volta a chave do cofre de um ministério bilionário para fortalecer
aliados políticos através de emendas. Mesmo com toda essa pressão, Nísia resistiu
bravamente e foi mantida no cargo por Lula.
Quase um ano e meio
depois, Doutor Luizinho voltou para as manchetes. Estourou nesta semana o
escândalo dos transplantes com HIV, um crime hediondo que infectou seis
pacientes transplantados.
O laboratório que está
sendo investigado como o responsável pelo crime tem como um dos sócios Matheus
Sales Teixeira Bandoli Vieira, que é nada mais nada menos que primo do Doutor Luizinho, que hoje
atua como líder do PP na Câmara dos Deputados. Outro sócio do laboratório é
Walter Vieira que, vejam só, é tio de Luizinho.
Os dois já fizeram
campanha para ele em eleições passadas. Além do tio, outros três funcionários
do laboratório foram presos e vão responder
por crimes contra as relações de consumo, associação criminosa, falsidade
ideológica, falsificação de documento particular e infração sanitária.
À época em que o
governo assinou contrato com o laboratório, Doutor Luizinho havia deixado a
Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro há apenas três meses. Mas não saiu sem
deixar tudo preparado: o contrato do laboratório foi firmado com a Fundação
Saúde — uma empresa pública do estado em que trabalha Débora Lúcia Teixeira,
irmã de Luizinho.
Não importa de que
ângulo você olhe para esse escândalo, lá estará um parente do Doutor Luizinho.
Esse é o homem que recebeu um lobby agressivo para ser o ministro da Saúde do
Centrão. Ao contrário do que aconteceu à época em que Nísia era fritada no noticiário,
desta vez o nome de Luizinho evaporou das manchetes.
Entre as sete reportagens publicadas pela revista Veja sobre o caso, o nome do líder do PP não recebeu destaque
em nenhuma manchete.
A mesma imprensa que
participou da fritura de Nísia no ano passado, agora, salvo raríssimas
exceções, omite o nome de Luizinho das manchetes sobre o caso. Pior que isso:
há publicações que estão tentando de alguma maneira envolver o nome da ministra da Saúde no caso.
Não tiveram o mínimo
pudor de colocar Nísia nas manchetes como alguém que sabia das infecções antes
da polícia e nada fez — o que não é bem uma verdade. A ministra acionou a
Polícia Federal logo que as suspeitas do foram confirmadas.
Como se já não
bastasse o empenho da grande imprensa, a máquina de fake news do bolsonarismo
trabalhou a todo vapor para queimar a ministra. Uma postagem difundida nas
redes dizia que duas portarias publicadas pelo Ministério da Saúde durante o
governo Jair Bolsonaro, mas revogadas por Lula, teriam impedido a transmissão
do HIV a pacientes transplantados no Rio de Janeiro.
A informação é falsa, claro,
mas foi replicada no X por Jair Bolsonaro (PL). O ex-presidente reproduziu trecho de um vídeo em
que o apresentador repete a fake news que atribui ao Ministério da Saúde a
responsabilidade pelos crimes. Outra publicação mentirosa afirma que o governo
Lula repassou R$ 11 milhões para o laboratório da família do Doutor Luizinho
sem licitação.
Tudo isso serviu para
embaralhar os fatos e turvar os acontecimentos do ano passado, quando a
imprensa e o Centrão estavam juntos fritando Nísia e amaciando o terreno para a
entrada do Doutor Luizinho.
As digitais do homem
que o Centrão quis transformar em ministro da Saúde estão todas presentes nesse
escândalo, mas, curiosamente, seu nome não aparece mais com destaque no
noticiário. Pelo contrário, parte da imprensa segue tentando colar Nísia de
alguma maneira no caso.
Aos incautos, fica a
sensação de que o crime está na conta do governo federal, quando, na verdade, é
o bolsonarismo e o Centrão que estão envolvidos até os ossos. Seria de bom tom
uma autocrítica da imprensa, mas esperemos sentados.
Fonte: The Intercept
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