sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Com mais casos de falta de luz, Enel SP pagou 29% mais compensações em 2023 do que em 2022

O valor pago aos clientes da Enel Distribuição São Paulo em compensações por falta de energia elétrica cresceu 29% entre 2022 e 2023, saltando de R$ 80,9 milhões para R$ 104,8 milhões. Os dados são da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e mostram uma tendência de aumento dos prejuízos à população atendida pela concessionária na região metropolitana de São Paulo.

A compensação é feita automaticamente por meio de um desconto na conta de luz, no máximo dois meses após a identificação do corte pela Enel. O cálculo que define o valor a ser abatido considera a frequência e a duração da falta de energia na unidade consumidora. A empresa tem obrigação de fazer esse ressarcimento, que não inclui as indenizações individuais movidas por clientes que tiveram danos maiores.

Em 2021, a Aneel aprovou uma mudança na regulação sobre as compensações. Com a nova regra, que entrou em vigor em 2022, domicílios que tiveram quedas de energia mais longas e frequentes passaram a receber descontos maiores na fatura. Por outro lado, houve um aumento no limite de tempo sem energia a partir do qual as concessionárias são obrigadas a ressarcir os clientes. Ou seja, as pessoas mais prejudicadas passaram a receber valores mais altos em compensações, embora menos clientes tenham direito ao desconto.

Mesmo com a mudança de regulação, a quantidade de compensações pagas aos clientes atendidos pela Enel SP cresceu: passou de 2,7 milhões em 2022 para 2,9 milhões em 2023, um aumento de quase 10%. Isso significa que houve mais ocorrências de longas faltas de energia que levaram ao pagamento de compensações.

<><> Por que isso importa?

•        Sem investimentos para tornar a rede mais resiliente em casos de tempestades, Enel tem gasto mais nos últimos anos em compensações a clientes que ficam sem energia elétrica. Para especialistas, é um sinal claro de deterioração do sistema e algo que merece atenção especial quando a concessão for renovada, em 2028.

“É um indicador claro de que o sistema está se deteriorando continuamente. Mas, de longe, as compensações não cobrem o prejuízo verdadeiro aos clientes”, avalia Ildo Sauer, vice-diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP). Ele se refere às perdas de alimentos que necessitam de refrigeração, por exemplo, que não são cobertas pela compensação automática e demandam que a pessoa lesada abra um processo contra a empresa.

Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, também enxerga uma piora na qualidade dos serviços prestados pela Enel. “Não dá para lutar contra a realidade, as condições de atendimento da Enel são muito precárias”, diz.

Para Barata, uma possível explicação para esse cenário é que os indicadores de qualidade da prestação do serviço que estão no contrato de 2018, quando houve a transferência da AES Eletropaulo para a Enel Distribuição São Paulo, são os mesmos que já constavam no contrato de 1998, quando foi feita a privatização da estatal Eletropaulo.

“O contrato primário [de 1998] é de uma época em que não tínhamos essa quantidade de eventos extremos que temos agora. É fato que as condições de atendimento se degradaram, mas a questão é que a renovação da concessão [em 2028, quando termina o contrato com a Enel SP] precisa apertar muito os indicadores. É preciso que o contrato estabeleça indicadores mais rígidos para que a empresa possa agir mais intensamente frente aos eventos climáticos extremos”, afirma.

<><> Enel funciona como “eletrobet” e aposta no risco climático para manter lucros, diz especialista

Até o momento, mais de 1,5 milhão de compensações foram pagas em 2024 pela Enel SP, o que corresponde a 53% do total de 2023. O número deve subir até o final do ano, já que ainda não inclui o apagão que atingiu 3,1 milhões de paulistas durante o fim de semana de 12 de outubro, após uma chuva com forte ventania que danificou a rede de distribuição de energia.

Em menos de um ano, a capital passou por três apagões – ocorreram também em novembro de 2023 e em março deste ano. Com exceção desse no começo do ano, que ocorreu por uma falha subterrânea, os outros dois escancararam a falta de resiliência das estruturas da Enel a eventos climáticos extremos.

Na visão de Sauer, a piora no serviço de energia prestado pela empresa tem relação com o modelo da privatização da empresa. “A Enel prefere pagar a compensação do que investir em modernização da rede, porque a estrutura tarifária que eles têm é essa. A tarifa é dada, tudo que eu gasto em manutenção preventiva, se eu puder evitar, vira lucro.”

A falta de investimento em melhorias na rede elétrica para prevenir novos apagões faz Sauer apelidar a Enel de “eletrobet”, em alusão às empresas de apostas que operam no país.

“O papel que é reservado para a distribuidora, de acordo com o contrato de concessão e com a legislação, não incentiva a modernização, porque ela não ganha nada com isso. Nem incentiva a manutenção preventiva, porque eles vão correndo o risco até que o sistema se deteriore. É a ‘eletrobet’, que aposta no risco. A Enel prefere arriscar e não fazer o investimento, já que [o valor pago com] a compensação vai ser bem menor do que o lucro que ela vai ter”, afirma.

Barata diz que já existe um consenso na Aneel a respeito da necessidade de “aumentar muito os investimentos em distribuição”, mesmo que isso não signifique uma quebra de paradigmas e se continue com a distribuição aérea da energia. Ele se refere ao debate em torno do enterramento dos fios, apontado como forma de minimizar os danos em casos de extremos climáticos, mas que tem dificuldades logísticas e orçamentárias, já que o custo da distribuição de energia tende a aumentar quando se tem maiores investimentos.

A Enel Distribuição São Paulo teve lucro líquido de R$ 1,3 bilhão em 2023, segundo reportagem do G1. O pagamento em compensações naquele ano correspondeu a 8% disso.

“Será que esse lucro não foi um pouco exagerado? Os consumidores são muito maltratados, é um problema do dia a dia. Os clientes têm aparelho queimado, têm comida estragada e encontram muita dificuldade para conseguirem um ressarcimento além da compensação”, afirma Barata.

<><> Piora do serviço atinge todos os estados atendidos pela Enel

Além de São Paulo, a Enel também está presente no Rio de Janeiro e no Ceará. Em todos esses estados houve aumento no valor pago em compensações, mesmo após a mudança na regulação da Aneel.

No Ceará, onde todos os municípios são atendidos pela empresa, o valor das compensações subiu 35%, passando de R$ 27,1 milhões em 2022 para R$ 39,4 milhões em 2023. Até o momento, as compensações somam R$ 30,3 milhões em 2024, valor superior ao registrado em todo o ano de 2022.

O Rio de Janeiro teve o mesmo aumento percentual no período, de 35%. Em 2022, foram pagos R$ 31,7 milhões em compensações. Já em 2023, foram R$ 40,9 milhões. O ano de 2024 já é o segundo ano com maior montante de compensações no estado, com R$ 34,1 milhões.

<><> Outro lado

Em nota enviada à reportagem após a publicação, a Enel Distribuição São Paulo afirma que “reitera seu compromisso com a sociedade em todas as áreas em que atua e reforça que está fazendo os investimentos necessários para aumentar a qualidade dos serviços, em linha com as expectativas das autoridades e dos consumidores brasileiros”.

Para o período 2024-2026, a empresa disse que planeja investir cerca de R$ 20 bilhões em operações no Brasil. Destes, aproximadamente 80% serão investidos em distribuição de energia, segundo o posicionamento.

“Em suas três áreas de concessão (Rio de Janeiro, Ceará e São Paulo), a companhia está implementando um robusto plano de investimentos, focado no fortalecimento e na modernização das redes, na automação dos sistemas e na ampliação da capacidade dos canais de comunicação com os clientes, além da mobilização antecipada de equipes em campo em caso de contingências. O plano contempla também um aumento significativo do quadro de eletricistas próprios, que já está em andamento”, acrescenta a Enel.

•        No escuro mais uma vez

Passadas mais de 12 horas do temporal que caiu na Grande São Paulo na tarde desta quarta (23), a Região Metropolitana de São Paulo tinha 36 mil endereços sem energia elétrica na manhã desta quinta-feira (24). De acordo com levantamento da concessionária Enel de 06h40 da manhã, a cidade mais atingida foi a capital paulista, que tem 26.418 endereços ainda sem energia, seguida por Itapevi, que tem outros 3 mil imóveis sem luz. Segundo a Enel, os 36 mil clientes da Grande SP sem luz representam apenas 0,44% do total de 8,2 milhões de clientes que a empresa tem na área de atuação. Por causa do temporal, a região chegou a ter mais de 74 mil sem luz às 20h.

 

•        CPI da Enel na Alesp pediu que Arsesp contratasse agentes para fiscalizar empresas de energia, mas nenhum foi contratado

Relatório da CPI da Enel da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) recomendou no ano passado que a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) - autarquia ligada ao governo do estado - contratasse mais agentes para fiscalizar empresas de energia no estado, mas quase um ano depois, nenhum novo empregado foi contratado para a ampliação desses serviços. No relatório final da comissão, publicado no Diário Oficial de dezembro de 2023, os deputados da CPI alertaram que a Arsesp tem apenas 24 funcionários para fiscalizar as sete distribuidoras de energia e 12 pequenas permissionárias que prestam serviço nos 645 municípios do estado.

Esses técnicos da agência paulista são responsáveis pela fiscalização das seguintes empresas que operam em SP: Enel, CPFL Paulista, CPFL Piratininga, EDP, Santa Cruz, Elecktro e Energisa. “Evidentemente o Convênio celebrado entre a ANEEL e a ARSESP é inoperante. Apenas 24 fiscais para todo o Estado de São Paulo são absolutamente incapazes de cobrir e garantir uma fiscalização que possa ser considerada dotada da mínima veracidade e fidedignidade”, disse o documento da CPI. “A Arsesp deverá prever a ampliação de seus recursos orçamentários provenientes do Tesouro Estadual para ampliação de seu quadro de profissionais, mediante a realização de concurso público para contratação, e de seus recursos materiais e tecnológicos destinados à fiscalização dos serviços de energia elétrica e de saneamento básico”, afirmou o relatório final.

Passado quase um ano da recomendação, a Arsesp informou ao g1, por meio de nota, que mantém os mesmos 24 funcionários para dar conta do convênio de cooperação fiscalizatório firmado em 2011 entre a agência paulista e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Segundo a Arsesp, a quantidade atual de fiscais cumpre estritamente o que foi firmado no convênio de cooperação com a Aneel, sendo responsáveis pela fiscalização dos sete grandes contratos do estado na área de distribuição de energia. A agência diz ainda que eles só atuam sob demanda, ou seja, a Aneel delibera as fiscalizações. “A fiscalização realizada pela Arsesp ocorre por meio de um convênio de cooperação com a Aneel, que é o poder concedente de energia elétrica e a responsável pelo monitoramento das concessionárias de energia. Os 24 técnicos da Arsesp, dedicados especialmente para a fiscalização de energia elétrica, atuam sob demanda e o modelo metodológico da Aneel, cumprindo estritamente o convênio de cooperação, nos sete contratos vigentes no Estado”, disse Arsesp.

<><> Ajustes e pedidos de mais verba

A agência ligada ao governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) diz que desde o início do ano vem solicitando à Aneel ajustes no plano de cooperação para conseguir mais recursos e ampliar o quadro de empregados. E que um aditivo contratual foi assinado neste mês de outubro para que a agência estadual possa usar recursos próprios para contratar mais funcionários. “As fiscalizações ocorrem com base nas mesmas diretrizes, ajustadas, no entanto, em conformidade com as particularidades técnicas de cada área de concessão e diretrizes da agência federal. Desde o início deste ano, a Arsesp vem oficiando a Aneel para o aprimoramento do processo regulatório. A Arsesp solicitou à Aneel, diante do orçamento reduzido por parte da agência federal, autorização para utilizar recursos próprios e realizar mais fiscalizações. Este aditivo contratual foi assinado pela agência nacional neste mês”, disse à agência de SP.

Em nota, a Aneel disse que repassou esse ano ao governo de São Paulo R$ 4,5 milhões para que os serviços de fiscalização fossem realizados. O valor é 64% menor que os R$ 12,7 milhões que a empresa pagou à Arsesp no ano de 2023. No aditivo contratual firmado entre as duas agências, a Aneel deveria ter repassado ao governo paulista pelo menos R$ 8,5 milhões. Esse corte se deu, segundo a agência nacional, em razão de cortes na agência. “O valor de 2024 foi reduzido em razão dos cortes orçamentários que a ANEEL recebeu”, disse.

>>>> Valores repassados pela Aneel à Arsesp

•        2022 - 10.569.564,55

•        2023 - 12.759.165,65

•        2024 - 4.593.095,26

•        Fiscalização terceirizada

Embora a concessão de distribuição de energia obedeça a leis e regramento federais, o papel de fiscalização é delegado pela Aneel em todo o país para as agências estaduais onde o serviço é prestado. Essa ‘terceirização’ da fiscalização é feita através de convênios assinados entre a agência nacional e as estaduais, inclusive com repasse de verba para que essa fiscalização e o cumprimento das metas da agência federal aconteçam. No caso do convênio entre a Aneel e a Arsesp, o convênio foi assinado em novembro de 2011 entre os diretores gerais das duas agências: Silvia Maria Calou (Arsesp) e Nelson José Hubner Moreira (Aneel). Ele começou a valer em janeiro de 2012. No convênio, a Aneel delega à agência paulista a execução de atividades complementares de fiscalização, controle dos serviços e instalações de energia elétrica no território de todo o estado de São Paulo.

Em 2024, Aneel e Arsesp assinaram um aditivo contratual reafirmando a transferência de poder e assumindo a fiscalização do contrato de metas que a agência nacional firmou com todas as concessionárias que atual no estado, inclusive a Enel.

No documento, a agência do governo paulista se compromete a “comunicar oficialmente à ANEEL quaisquer falhas ou irregularidades observadas no cumprimento deste Contrato de Metas”. O contrato também prevê que a Aneel repasse R$ 8,5 milhões à Arsesp para a execução dessa fiscalização no âmbito estadual.

<><> Quem privatizou a Eletropaulo?

A antiga Eletropaulo Metropolitana foi criada em 1981 pelo então governador Paulo Maluf (PP), em substituição à Light. A companhia continuou como estatal única a prestar serviços de distribuição de energia em todo o estado de São Paulo. Em 1998, o então governador Mario Covas (PSDB) desmembrou a empresa em quatro, fatiando os serviços da antiga estatal e abrindo o caminho para a privatização que se deu naquele mesmo ano. Na ocasião, um dos coordenadores do programa de desestatização do governo tucano era o vice-governador Geraldo Alckmin (PSB), atual vice-presidente da República.

As áreas da capital paulista e a Região Metropolitana continuaram sob a responsabilidade da Eletropaulo Metropolitana, que foi vendida naquele ano para o consórcio Lightgás, que era formado pelas empresas norte-americanas AES Corporation e Houston Industries Energy, a francesa Électricité de France (EDF) e a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), do Brasil. O consórcio recebeu do governo federal a concessão dos serviços na região pelo prazo de 30 anos. Esse prazo vence em 2028.

50% dessa venda para o setor privado foi financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que através da BNDESPar. O banco estatal cedeu à holding o total de US$ 888 milhões para que o negócio fosse fechado pelo valor mínimo de US$ 1,78 bilhão no leilão da época. Em contrapartida, o consórcio apresentou parte das ações da empresa como garantia de pagamento do empréstimo que não foi saudado.

Nesse acordo, a BNDESPar ficava com 50% das ações, enquanto a AES Corporation teria 11,46%, a Houston Industries Energy 11,46%, a Électricité de France (EDF) 11,46% e CSN 7,32%, até que o empréstimo fosse pago. Porém, após a negociação para o pagamento da dívida se arrastar até 2003, a BNDESPar executou a dívida que já estava em U$ 1,2 bilhão e passou a ter metade da AES Eletropaulo, junto com a empresa AES Corporation dos EUA, que comprou a parte das outras sócias em 2001.

As duas empresas formaram o Cia. Brasiliana de Energia e o controle integral da Eletropaulo passou à AES Brasil. A companhia passou então a se chamar AES Eletropaulo, negociando suas ações na BM&F Bovespa a partir de 2010.

A empresa de capital aberto tinha 49,58% das ações na mão de pequenos investidores e era negociada em bolsa, enquanto o BNDESPar tinha 18,73%, o grupo AES 16,84% e a União Federal outros 7,97% da empresa. Em 2018, a AES Brasil vendeu o controle acionário da empresa à estatal italiana Enel Brasil, que venceu o leilão por cerca de R$ 5,5 bilhões por 73,38% das ações da companhia. O negócio incluiu ainda uma oferta pública de compra de ações do mercado que totalizou cerca de R$ 2,1 bilhões. Com isso, a Enel passou a deter 93,3% de todo o capital da AES Eletropaulo, num negócio estimado em mais de R$ 7,6 bilhões.

<><> Lucro bilionário

Assim, a partir de 03 de dezembro de 2018 passa a empresa passou a se chamar Enel Distribuição São Paulo, sob controle da empresa italiana Enel, com sede em Roma. Na Itália, a companhia foi fundada em 1962 como uma estatal, mas nos anos 1990 foi aberta ao capital privado. O governo italiano ainda detém 23,6% das ações da companhia. Em 2023, a holding global reportou ao mercado europeu lucro líquido de 3,44 bilhões de euros, após o lucro de 1,68 bilhão de euros em 2022. Em base ajustada, o lucro líquido aumentou quase 21%, para 6,51 bilhões de euros em 12 meses. No Brasil, a receita operacional líquida da Enel Brasil totalizou R$ 41,4 bilhões em 2023 e o lucro líquido chegou a R$ 2,6 bilhões. A empresa afirma que fez investimos de R$ 9,9 bilhões em suas áreas de concessão de distribuição e em geração renovável, montante que - segundo a empresa - "figura entre os mais altos da série histórica da companhia".

 

Fonte: Por Gabriel Gama, da Agência Pública/g1

 

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