sábado, 26 de outubro de 2024

Por soja, governo do MT ‘ataca’ acordo que baixou desmatamento na Amazônia em 69%

O GOVERNADOR do Mato Grosso, Mauro Mendes (União Brasil), sancionou na quinta-feira (24) um projeto de lei que, na avaliação de ambientalistas, desmonta um dos principais instrumentos de preservação da Amazônia: a Moratória da Soja.

Por meio desse compromisso, as processadoras do grão deixaram de comprar a soja produzida em áreas desmatadas após julho de 2008 no bioma. Até 2022, a moratória contribuiu para uma redução de 69% na derrubada de mata nativa, de acordo com dados da Abiove (Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais).

O acordo é considerado um dos mais bem-sucedidos exemplos de colaboração entre empresas, sociedade civil e governo.

No entanto, a nova legislação retira a concessão de incentivos fiscais a empresas que seguem os critérios da moratória. Entre as 24 signatárias da moratória, estão gigantes do setor, como Amaggi, Bunge, Cargill e Cofco.

De autoria do deputado estadual Gilberto Cattani (PL), a legislação aprovada atende aos anseios dos sojeiros, especialmente do norte do Mato Grosso, região de origem do parlamentar. 

A lei vai prejudicar as empresas que evitam comprar de áreas devastadas e contribuir para o aumento das taxas de desmatamento no Mato Grosso, avalia o diretor-executivo da WWF no Brasil, Maurício Volvodic. “É um baita retrocesso, que vai na contramão de toda a discussão global”, afirma. A organização ambientalista é uma das signatárias da moratória e representa a sociedade civil no acordo.

Foi sob pressão liderada pelas organizações da sociedade civil, alarmadas com o desmatamento da floresta provocado pela expansão das lavouras de soja no início dos anos 2000, que as empresas deram início às negociações que resultaram na moratória.

“Agora estamos em um contexto de emergência climática, e os entes públicos precisam aumentar a ambição das ações em vez de retroceder ”, afirma a coordenadora da área de florestas do Greenpeace, Cristiane Mazzetti. A organização também é signatária da moratória. “As propostas que querem flexibilizar a conservação ambiental deveriam ser vetadas”, complementa.

Procurada diversas vezes ao longo da semana, a Abiove, entidade representante das principais processadoras de soja, não se manifestou. O texto será atualizado, se um posicionamento for enviado.

•        Governador diz que moratória se sobrepõe à legislação nacional

O Mato Grosso lidera com folga a produção de soja entre os estados brasileiros, sendo responsável por 27% do grão, segundo estimativa da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) para a próxima safra.

O argumento do governador Mauro Mendes ao sancionar a lei foi de que as regras da moratória se sobrepõem às da legislação nacional, especificamente ao Código Florestal.

O acordo firmado entre empresas, ONGs e governo federal não permite a compra de soja produzida em áreas desmatadas no bioma amazônico após julho de 2008, mesmo que a derrubada da floresta tenha ocorrido dentro dos limites legais do Código Florestal, promulgado em 2012. A lei brasileira permite que até 20% da área de uma propriedade rural na Amazônia sejam desmatados para atividades econômicas.

“Nosso país é soberano e nenhuma empresa pode descumprir as nossas leis ambientais, que são as mais restritivas do mundo”, disse o governador ao sancionar o projeto de lei.

Caso continuem seguindo os critérios da Moratória da Soja, mais restritivos que os do Código Florestal, as processadoras de grãos não terão acesso a um desconto de ICMS que pode chegar a 50% na venda de farelo e óleo. Além disso, não contarão mais com incentivos estaduais para instalação de fábricas, compras de equipamentos e aquisição de terrenos.  

As exportações de farelo e óleo de soja que contam com benefícios fiscais somaram US$ 2,5 bilhões de janeiro a agosto deste ano, de acordo com dados da Federação das Indústrias do Mato Grosso (Fiemt).

Filiado ao partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, o deputado Cattani também é autor de um projeto de lei que cria o Dia do Patriota, em 8 de janeiro, data da tentativa de golpe de estado ocorrida em 2023.

Outro projeto do parlamentar prevê a redução da distância mínima para aplicação de agrotóxicos em locais próximos a povoados, cidades, vilas, bairros, mananciais de captação de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais e nascentes.

•        A influência da Aprosoja

A decisão de Mendes de sancionar o projeto de Cattani que enfraquece a Moratória da Soja reflete a ligação do governador com parte do agronegócio do Mato Grosso, principalmente a porção bolsonarista, intrinsecamente ligada à principal associação do setor, a Aprosoja.

Em maio, a nova diretoria nacional da Aprosoja foi empossada. Antônio Galvan, indiciado pela CPMI do 8 de janeiro por suspeita de financiar a tentativa de golpe de Estado, deixou o comando e passou o bastão para Mauricio Buffon, produtor com fazendas no Tocantins. 

No ato da posse, a principal bandeira de Buffon foi justamente acabar com a moratória na Amazônia e impedir que o acordo seja estendido para o Cerrado, região onde atua. No Mato Grosso, Buffon chegou a ser multado em R$ 3 milhões por causa de uma propriedade sem licença ambiental.

“O governador Mauro Mendes prometeu combater a Moratória da Soja e ele cumpriu a palavra, ele cumpriu a promessa. Houve um grande diálogo com a associação e todos ganham com isso”, declarou o presidente da regional da Aprosoja no Mato Grosso, Luiz Pedro Bier, para a assessoria de comunicação do governo mato-grossense.

Apesar de ser reconhecida como importante ferramenta de preservação ambiental, a moratória não é infalível. Investigações da Repórter Brasil revelaram que produtores utilizavam fazendas regularizadas para comercializar soja produzida em áreas “embargadas” (de uso proibido), mascarando a verdadeira origem.

A prática, conhecida como “lavagem de soja” ou “soja pirata”, se beneficiava de falhas na devida diligência das grandes empresas que integram a moratória.

•        Enclave antiambiental

Há um discurso único em Mato Grosso favorável ao agronegócio, avalia o cientista político mato-grossense João Edsom, que destaca a prevalência de dois grupos políticos ligados ao agro no estado.

O grupo de Mauro Mendes, em seu segundo mandato de governador, após ter sido prefeito de Cuiabá, alia-se à ala bolsonarista, incluindo os produtores ligados à Aprosoja.

O outro grupo, também ligado ao agronegócio, tem como expoente o atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, e conta com a participação do megaempresário, sojeiro e ex-ministro do governo Lula Blairo Maggi (PP), além de outros políticos, como o ex-deputado federal e ex-ministro Neri Geller (PP). “São governistas, mas não são petistas”, destaca o cientista político.

No primeiro turno, nenhum candidato petista foi eleito para as 141 prefeituras do Mato Grosso. O grande vencedor foi o partido do governador, o União Brasil, com 60 eleitos. O PL ficou em segundo, com 22 prefeitos eleitos.

A única chance do PT está justamente na capital Cuiabá, onde Abilio Brunini (PL) e Lúdio (PT) disputam a prefeitura. Em sua campanha, o petista tem adotado um tom de  pragmatismo, afastando-se de bandeiras históricas do PT e de críticas ao agronegócio.

“Os políticos ficam reféns disso (do agronegócio) e não conseguem contrariar. Há uma pressão para um único tipo de discurso. Um patrulhamento. Qualquer político que defenda questões ambientais vai ser execrado”, analisa Edsom.

A disputa na capital opõe os dois grupos dominantes, mas quando o assunto é a Moratória da Soja, o entendimento é o mesmo. “O projeto (moratória) foi mais legal que a lei, e isso gera uma insatisfação legítima dos produtores, que têm o seu direito de usar o Código Florestal a seu favor”, disse o ministro Fávaro, em um evento do agro realizado em São Paulo nesta semana.

Fávaro acredita que a aprovação da lei no Mato Grosso provocará o diálogo entre os entes que formaram a Moratória da Soja para “chegar a bom termo para não punir produtores que fizeram tudo dentro da legalidade”.

•        Onda nacional contra a moratória

O Mato Grosso não é o único estado onde a moratória está sob desmonte. No último dia 14, o deputado federal Delegado Caveira (PL-PA) apresentou um projeto semelhante na Câmara dos Deputados, com abrangência nacional. 

Em Rondônia, uma lei que ataca a moratória foi aprovada em julho por unanimidade entre os deputados estaduais e sancionada pelo governador Marcos Rocha (União Brasil). 

“Eles (sojeiros) estão atuando de maneira orquestrada, determinados a acabar com qualquer obstáculo ao modelo de agricultura predatório que defendem. Foram ganhando muita força no governo Bolsonaro, que foi derrotado, mas o movimento conservador antiambientalista segue muito forte”, avalia Mazzetti, do Greenpeace.

Volvodic, da WWF, entende que os legislativos estaduais e municipais na Amazônia são muito sensíveis aos pleitos dos produtores rurais e que esse movimento de ataque à moratória começou a ganhar corpo nas cidades produtoras de soja antes de chegar à assembleia.

“É um movimento mais amplo do que o ataque à moratória. É um movimento de uma parcela de produtores rurais que querem continuar desmatando e seguirem na contramão do caminho do Brasil e do mundo que se preocupam com a emergência climática, a seca, as queimadas e as enchentes”, analisa.

Com respaldo político, o governador do Mato Grosso vem encampando uma agenda bastante criticada por ambientalistas nos últimos anos. Mauro Mendes tenta liberar a mineração em áreas de reserva e já aprovou uma lei que proíbe a pesca profissional, beneficiando a pesca esportiva em detrimento da pesca artesanal.

A lei é objeto de uma ação de inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal) e é criticada por prejudicar milhares de famílias que dependem da pesca para subsistência. Questionado, o governo do Mato Grosso não respondeu aos questionamentos.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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