Uma mineradora no banco dos réus
Soterrados abaixo de
quase 10 anos de espera angustiante, o processo de reparação do maior desastre
socioambiental do país, no que diz respeito à quantidade de rejeitos despejados
e à extensão territorial da devastação, chega a um de seus mais aguardados
capítulos. Nesta segunda-feira, dia 21 de outubro, teve início o julgamento de
mérito na corte inglesa do caso que pode responsabilizar a multinacional Broken Hill Proprietary
Billiton (BHP Billiton) pelos danos socioambientais causados pelo rompimento da
barragem do Fundão, ocorrido em novembro de 2015 em Mariana-MG. Uma vez
condenada, a empresa terá de indenizar as pessoas atingidas pelo seu crime em
até 35 bilhões de libras, equivalente a 260 bilhões de reais. Os mais de 600
mil requerentes são representados pelo escritório de advocacia inglês Pogust
Goodhead, o que corresponde a apenas parte das vítimas afetadas, constituindo a
maior ação coletiva absorvida pela justiça britânica.
Ao nos determos nas
acusações por crimes socioambientais à Samarco, quase tudo é superlativo. A
anglo-australiana BHP é uma das companhias que a gerencia, ao lado da
brasileira Vale. Somadas, as receitas das duas co-proprietárias em 2023 chega a
mais de 90 bilhões de reais e o volume combinado de extração das lavras de
minério de ferro das duas titãs, apenas em 2024, supera o patamar de 370
bilhões de toneladas. Estamos falando de duas das mineradoras líderes globais
mais rentáveis e responsáveis por grande fatia da extração mineral do planeta.
Portanto, não surpreende que os impactos que ambas tiveram o poder de causar no
território brasileiro também sejam imensos: estima-se que o rompimento da
barragem do Fundão tenha lançado 50 milhões de metros cúbicos de resíduos
tóxicos em uma faixa territorial de mais de 600 quilômetros, indo de Bento
Rodrigues, região do rompimento em Minas Gerais, até a foz do Rio Doce, onde
ele desemboca no Oceano Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo. O rastro
destrutivo pode ser visto até hoje, tanto nos territórios apagados do mapa,
quanto na qualidade hídrica pestilenta, no morticínio da fauna e nas diversas
camadas da vida das populações.
Na contramão de
grandezas tão vultuosas, se encontra a capacidade da BHP de encontrar formas de
conduzir uma reparação satisfatória. Embora a Fundação Renova, entidade de
direito privado criada pela Samarco no ano seguinte ao desastre para gerir as
ações de mitigação e compensação, tenha sido veloz em definir que danos e quem
poderia ser considerado nos cálculos de restituição e fornecimento de auxílios
emergenciais, como parte de uma estratégia de compliance, são marca de sua
atuação o paternalismo deliberativo, a falta de assertividade e a morosidade em
adotar medidas ditadas pela justiça brasileira — omissa, segundo a maioria de
seus críticos.
Segundo Edmundo
Antônio Dias Netto Junior, Procurador da República do Ministério Público
Federal, “não há dúvidas que a Fundação Renova tem agido muito mais como um
instrumento para resguardar as empresas de imputações formais do que como um
agente de efetiva reparação humana, social e ambiental”. Baskut Tuncak, relator
da ONU sobre resíduos tóxicos que esteve em missão no Brasil em 2019, considera
que “infelizmente, o verdadeiro propósito da Fundação Renova parece limitar a
responsabilidade da BHP e da Vale, ao invés de fornecer qualquer aparência de
um remédio eficaz”.
Recorrer a uma
instituição escudo para fazer suas responsabilidades flutuarem é um expediente
que reaparece na história da companhia. Na década de 1990 em Nova Guiné, o
rompimento de uma barragem da BHP lançou rejeitos de minério no rio Ok Tedi e a
levou a um longo processo judicial. Para esquivar-se de ônus futuros, a empresa
transferiu participações acionárias para um fundo governamental, eximindo-se de
arcar com ações de restituição. A estratégia de “desresponsabilização” da BHP é
tão séria que chega a ser uma questão contratual. Nos projetos minerários
Cerrejon, na Colômbia e Antamina, no Peru, sua participação é em “regime de
não-operação”. A mesma fórmula vinculante é aplicada com a Samarco, na qual a
anglo-australiana figura como mera investidora, não como responsável
operacional.
Se a urgência
dispensada pela Fundação Renova ao seu objetivo-fim causa constrangimentos,
pior é a situação dos acordos judiciais em torno da reparação. Só recentemente,
a Vale e a BHP parecem dispostas a aceitar um acordo de reparação que, se for
firmado, pode chegar a 170 bilhões de reais. Em 2020, quando ainda se discutia
se a corte londrina teria de fato jurisdição sobre o caso, representantes das
populações atingidas já denunciavam estratégias para postergar ações
compensatórias. Mais questionável ainda é o escopo e a legitimidade destas,
visto que a participação dos sujeitos atingidos pelos danos do rompimento
raramente chega às mesas de decisões. Em julho deste ano, a BHP foi coagida por
entidades de justiça a não participar nem financiar ações movidas pelo
Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) no Supremo Tribunal Federal (STF), em
uma tentativa do instituto de limitar o escopo das demandas por justiça na
Inglaterra. Isso demonstra sua seletividade e senso de prioridade quando o
assunto é defender os impactos a seus acionistas.
Se soa inábil ao
efetivar suas atribuições junto às coletividades atingidas, Samarco, Vale, BHP
e Renova mostram-se bastante engajadas na construção de fantasiosas campanhas
de marketing que propagaram
desinformação, ignorância e confusão pública, “noticiando o
restabelecimento de uma normalidade inexistente, em temas fundamentais para a
população, como a qualidade da água e do ambiente aquático, recuperação de
nascentes e bioengenharia, recuperação econômica, indenização, reassentamento e
concentração de rejeitos”, como declara a ação civil pública que embasou a
condenação do conglomerado em 56 milhões de reais por danos materiais e morais
decorrentes destes desvios de função.
Os danos de longa
duração são convenientemente excluídos das narrativas de “normalidade”
alcançada graças às ações da Renova. Assim como os danos biogeofísicos, também
devem ser considerados no rol de afetações as feridas infligidas às camadas
sociais ligadas aos vínculos, relações, trabalho, renda, projetos de futuro,
práticas culturais, religiosas e a vastos elementos identitários coletivos. A
ruptura da barragem também significa uma ruptura subjetiva, biográfica. Ela não
é a mesma para todas as pessoas atingidas: é específica para os ribeirinhos,
para os quilombolas, para os moradores de Paracatu, de Governador Valadares.
Mais singular ainda é o caso dos povos indígenas que viam no Rio Doce um
parente, uma entidade e uma divindade, como é o caso dos membros da etnia
Krenak. Para Ailton Krenak, imortal da Academia Brasileira de Letras, a morte
do Watu (nome do Rio Doce em sua língua nativa que significa “avô”) representa
não apenas um profundo dano espiritual, mas uma “catástrofe no sentido
cultural-ecológico”.
Se parece difícil
imaginar uma vida sem minérios de ferro, matéria-prima que sustenta os pilares
da modernidade, de sua infra-estrutura material a seus arroubos bélicos, nossa
inteligência e sensibilidade não deveriam se intimidar frente ao requisito de estabelecer
limites éticos associados a exploração das empresas, à instrumentalização,
descarte e destruição de territórios, bem como ao colossal sofrimento que
arremessa comunidades inteiras. Temos muito a nos educar com os grupos de
comunidades atingidas organizadas, pessoas que não perderam a agência mesmo
tentando seguir a vida em um mundo radicalmente danificado pela mineração.
Foram elas que pressionaram pela aprovação da Política Nacional de Direitos das
Populações Atingidas por Barragens (PNAB) instituída ano passado. Antes disso,
provocaram inovações jurídicas extremamente relevantes ao reclamarem por
assessorias técnicas independentes que as auxiliassem no enfrentamento
assimétrico com as mineradoras. No que
diz respeito ao julgamento inglês, a London Mining Network, entidade que se
articula com as atingidas e atingidos brasileiros pela Samarco, o considera um
“momento crítico” e um “marco” especial para quem luta há tanto tempo por
respostas sólidas.
É da organização das
comunidades atingidas que partem consideráveis provas da efetividade da ação
política coletiva, ímpeto que deveria nos inspirar a exigir tanto que novos
colapsos não se repitam, quanto a concretização de um outro desenho de
reparação e de responsabilização, fora da curva da aparente impunidade.
Recentemente, a campanha Revida Mariana tem realizado o árduo trabalho de
trazer para o presente aquilo que arrefeceu na empatia e na opinião pública,
tão pastoradas pelo regime de atenção midiático sensacionalista, passado tantos
anos do desastre e seguidos tantas outras tragédias nacionais e mundiais. Como
tornar mais uma vez próximo um sofrimento distante, tanto cronológica quanto
geograficamente? Como reabilitar a energia de indignação e as demandas por
reconhecimento e justiça, impulsionando um renovado fôlego por reparação
integral? Temos a oportunidade de aprender com essas iniciativas como gestar
forças de resistência necessárias para lidar com o tempo vagaroso dos ritos
jurídicos e o vigoroso investimento que as companhias realizam na atomização e
desmobilização das vítimas de seus erros, bem como de identificar estratégias e
armadilhas do gerenciamento do desastre que elas empregam.
No arcabouço legal
brasileiro, apenas pessoas físicas podem ser acusadas de homicídio qualificado.
No caso da Samarco, 21 pessoas foram acusadas desse crime, mas, em 2019, foram
eximidas de responder penalmente. No Brasil, palavras de ordem como “Vale assassina!”
possuem um alto valor moral e político, mas pouca relevância no sentido
estritamente legal de responsabilização da pessoa jurídica. No paradigma da
justiça inglesa, contudo, há, desde 2007, um dispositivo regido pelo Corporate
Manslaughter Act, que inaugura o delito de homicídio corporativo. De acordo o
advogado e professor de direito penal
Samuel Ebel Braga Ramos, em parceria com outros autores:
O crime é cometido
quando uma organização qualificada (ente empresarial) causa a morte de um ou
mais indivíduos aos quais tem um dever de cuidado, através de uma violação
grave desse dever, sendo que uma parte substancial desta violação decorre da
maneira pela qual suas atividades empresariais são executadas ou organizadas
pelos gerentes sêniores. […] O dever e o poder de agir da pessoa jurídica para
a evitação do resultado danoso é o centro medular para a responsabilização
criminal das pessoas jurídicas na legislação do Reino Unido. A relevante
violação de um dever de cuidado (relevant duty of care) emerge quando
demonstrado que a pessoa jurídica se comporta muito abaixo do que é
razoavelmente esperado da organização no caso concreto.
Quanto a isso, o
julgamento do caso na corte inglesa também pode ser um importante momento para
que novos dados sejam descortinados quanto a apontada negligência da
mineradora, mas principalmente qualificar a forma como nossos legisladores
compreendem o papel das empresas em desastres de proporções assombrosas como o
da Samarco.
Quatro anos após o
rompimento da barragem do Fundão em Mariana, o macabro experimento comercial
neoextrativista repetiu-se em Brumadinho. Os dois eventos, longe de serem os
únicos, mudaram a percepção de diferentes gerações sobre a mineração e as
narrativas produzidas sobre a atividade. Adicionalmente, dão indícios um padrão
sistêmico de impunidade. Elas são amostras sinistras de como Brasil, assim como
muitos outros países latino americanos, segue sendo abundante fornecedor de
zonas de sacrifício. Para se ter uma
noção, nenhum alvo das acusações de crime no caso da Samarco (22 pessoas e 4
empresas) foi punido e o destino tem sido a prescrição. Longe de representar
uma afronta à soberania jurídica brasileira, o julgamento nos tribunais
ingleses relembra e reforça a capacidade das nações e da sociedade civil de
impor constrangimentos significativos aos apetites e negligências de agentes
predatórios — que seguem insaciáveis em se apropriar e exaurir recursos,
territórios e existências.
¨ "Espero que as mineradoras tenham aprendido uma
lição", diz Lula no evento de assinatura do novo acordo de Mariana
O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) participou na manhã desta sexta-feira (25) de uma
cerimônia para a assinatura de um acordo entre as partes envolvidas na tragédia
de Mariana (MG), em 2015. Foi a primeira aparição pública de Lula desde o
acidente doméstico que sofreu no último final de semana. No evento, ele
discursou e destacou a importância do acordo assinado que prevê o pagamento de
R$132 bilhões pelas empresas envolvidas ao poder público.
Em sua fala, o
presidente relembrou sua trajetória no movimento sindical, que envolvia a
realização de acordos entre empresas e trabalhadores. “Ao movimento social, que
tanto briga aqueles que representam, os pescadores, as pessoas atingidas por
barragens, as mulheres, os indígenas, os quilombolas, aos prefeitos da região,
eu fui durante muito tempo dirigente sindical, e parte da minha vida foi
definida por conclusões de acordos. E mesmo muitas vezes o acordo que eu
assinava e levava para a minha categoria aprovar, eu mesmo não estava 100% de
acordo. O que me fazia fazer o acordo era a certeza da importância do momento
político e a certeza de que aquele acordo era melhor do que se a gente entrasse
em uma guerra e não tivesse o acordo. Sei que para muita gente, embora este
acordo tenha a cifra de R$ 170 bilhões, certamente pelo montante seja o maior
acordo já feito na história moderna do capitalismo, é importante a gente
lembrar que a gente ainda não sabe o que foi feito com o gasto fundação
[Renova] criada para cuidar disso. Esse é o dado concreto. Nem o Ministério
Público sabe, nem a Defensoria sabe, nem os governos dos estados sabem e nem o
governo federal sabe”, disse.
Lula afirmou que
espera que as empresas tenham aprendido uma lição, já que um investimento muito
menor poderia ter evitado a tragédia. “Agora é que começa a preocupação maior.
Por quê? Primeiro porque eu espero que as empresas mineradoras tenham aprendido
uma lição. Ficaria muito mais barato ter evitado o que aconteceu. Infinitamente
mais barato. Certamente não custaria R$ 20 bilhões evitar a desgraça que
aconteceu”, lamentou.
O presidente criticou
a privatização da Vale, que tornou as negociações mais difíceis na visão dele.
“Eu já tive a oportunidade de negociar com a Vale quando ela tinha dono. Quando
o dono dela era o governo. Depois, tive o prazer de negociar com a Vale quando
ela já era uma mescla de fundos mas que tinha presidentes. E quero dizer para
vocês que é muito difícil negociar com a ‘corporation’, que a gente não sabe
quem é o dono, que tem muita gente dando palpite e que muitas vezes o dinheiro
que poderia ter evitado a desgraça que aconteceu é utilizado para pagar
dividendos”, afirmou.
Lula reforçou a
necessidade de uma mudança de cultura na sociedade brasileira para que novas
tragédias como essa não voltem a ocorrer. “Neste país, é importante a gente
mudar a cultura. Tem uma cultura impregnada na sociedade brasileira que tem ser
mudado. Certamente se um presidente da Vale resolvesse dizer para a diretoria
que ele iria evitar que acontecesse o que aconteceu em Mariana, ele ia ter
tachado de irresponsável porque estava gastando dinheiro que não era
necessário. Neste país a gente nunca se perguntou quanto custou a gente não ter
alfabetizado este país há 60 anos, quanto custou a gente não ter feito reforma
agrária na década de 50. A gente nunca pergunta quanto custa ter tantas
crianças analfabetas neste país. Tudo que a gente quer fazer na área social é
tido como gasto. E é importante que a gente tenha clareza de que melhorar a
saúde, a educação, são investimentos que têm retorno: melhorar a vida dos
humanos, que somos e representamos. Esta lição que as mineradoras estão tendo,
de que ficaria muito mais barato ter evitado a desgraça, eu espero que sirva de
lição para outras centenas de lixo que as empresas jogam em represas nem sempre
tão bem preparadas ou tão modernas para evitar uma outra desgraça dessa. É
importante que esta lição fique deste acordo”, defendeu.
Fonte: Por Natanael
Alencar, em Jacobin Brasil/Brasil 247
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