sábado, 26 de outubro de 2024

Orçamento Sensível ao Gênero: sua prefeitura aplica?

A implementação do Orçamento Sensível a Gênero (OSG) para reduzir desigualdades ainda engatinha no Brasil. Com as primeiras movimentações no início dos anos 2000, o OSG nunca chegou a ser uma política institucionalizada no âmbito federal, acabou perdendo a força com a troca de gestões e é pouco aplicada nas capitais brasileiras.

Todas ações de um Orçamento Sensível a Gênero devem constar no Plano Plurianual (PPA), na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA), documentos que deveriam guiar e descrever os gastos públicos municipais. Mas até mesmo isso tem sido um entrave para quem tenta rastrear o destino dos recursos.

A Gênero e Número investigou a aplicação do OSG ou traços dele nas cidades de Recife (PE) e Belo Horizonte (MG), precursoras em planejar os gastos públicos com perspectiva de gênero, e Curitiba (PR), Goiânia (GO) e Manaus (AM), capitais mais populosas de suas regiões.

A partir da identificação dos passos de implementação do OSG – mapeamento local das desigualdades; destinação de recursos e propostas claras de equidade de gênero; e resultados rastreáveis, como políticas públicas, criação de planos municipais e leis -, a reportagem considerou o Plano Plurianual (PPA) 2022-2025 e a Lei Orçamentária Anual (LOA) 2023 de cada cidade para analisar os recursos.

A reportagem não cita valores, já que a presença de cifras não indica necessariamente a existência de um Orçamento Sensível a Gênero. Em muitos casos, também, os recursos são pouco descritivos e não há transparência para as ações às quais serão destinados.

•        Gênero e raça no orçamento das capitais

Temos que dar um passo atrás e tentar entender como a política hoje afeta gênero e raça”, Clara Brenck, professora adjunta no Cedeplar/UFMG e pesquisadora do Made – Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, sediado na USP.

O olhar mais atento sobre as desigualdades pode ser estendido a outros grupos minoritários, como a população trans. A inclusão é discutida no âmbito de cada planejamento local que aplicará a OSG, lembra a especialista.

“Existem políticas que visam reduzir a desigualdade de gênero, mas isso não necessariamente inclui um orçamento sensível a gênero. Não basta olhar uma parte do orçamento, é preciso olhar como todos os tipos de gastos e tributações vão afetar a desigualdade. Esse é o maior desafio, porque temos falta de dados e há muita dificuldade não só de avaliar o resultado, mas também de entender qual é o problema”.

Brenck é coautora da Nota Técnica Orçamento Sensível a Gênero e os desafios do Brasil para adotá-lo, que assina com Larissa Rosa (Cedeplar/UFMG e Made) e Bernardo Campolina (Cedeplar/UFMG). A Gênero e Número teve acesso exclusivo ao trabalho, que acompanha a implementação do OSG nas capitais de Pernambuco e Minas Gerais e aponta a importância da participação popular, tanto na identificação das demandas, quanto na cobrança pelos resultados.

“Mas também é muito difícil despertar essa participação popular, principalmente das mulheres, visto que elas têm jornadas duplas e triplas”, lembra Rosa.

Pensar um orçamento que seja responsivo às demandas de mulheres cis e pessoas trans não passa, necessariamente, pela criação de uma Secretaria da Mulher e tampouco por um orçamento exclusivo, destaca a doutoranda em Administração Pública e Governo da FGV-SP, Clara Marinho.

Ao entender que as desigualdades permeiam várias camadas de responsabilidade pública, como emprego, renda, educação e saúde, a atenção sobre o orçamento precisa ser transversal, com medidas que atendam diversas áreas.

Para Marinho, o gestor público precisa se desvencilhar de que a despesa obrigatória não se discute e pensar em como ela pode ser bem empregada do ponto de vista de gênero.

“Normalmente, se faz o orçamento olhando para o do ano anterior e colocando um pouco mais de dinheiro, quando existe. As metas fixadas são as que damos conta de fazer, não as metas desafiadoras”, aponta a pesquisadora, que define esse comportamento como “paralisia decisória”.

Temos muito diagnóstico sobre o assunto, mas nossa cesta de soluções, que estão colocadas no espaço público, não têm sido das melhores”

•        Recife, pioneira na OSG

Recife é uma das principais referências na implementação do Orçamento Sensível a Gênero no Brasil. A experiência da capital pernambucana, que iniciou no PPA em 2001-2004, foi apresentada em encontros internacionais do Mercosul e reconhecida pela ONU.

A cidade criou uma creche itinerante para que as mães tivessem com quem deixar os filhos durante os encontros do orçamento municipal. Nos anos seguintes, os resultados da OSG já começaram a surgir, como a criação do Centro de Referência Clarice Lispector 24h, para acolhimento de mulheres em situação de violência doméstica e sexual.

Com a adoção da Agenda 2030, elaborada coletivamente e adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 2015, o Plano Plurianual do município 2022-2025 segue desenhando ações e gastos públicos também sob a perspectiva de alcançar a igualdade de gênero, um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda.

O município deve receber, ainda em 2024, um novo espaço de acolhimento para mulheres e meninas, o Centro Bárbara de Alencar de Promoção dos Direitos da Mulher.

•        Belo Horizonte cria comitê para entender desigualdades

A experiência de Recife desenhou o caminho para que outras gestões municipais o seguissem. Em 2017, a prefeitura de Belo Horizonte também assinou o compromisso global de melhorar a desigualdade de gênero até 2030.

A capital mineira criou um Comitê Municipal de Equidade de Gênero (COMEG), com representantes de secretarias e subsecretarias municipais, para uma varredura nas ações e políticas já existentes. O grupo também desenvolveu estudos e pesquisas sobre políticas públicas e de gênero, que gerou o Plano Municipal de Equidade de Gênero, um documento com propostas de melhorias, ampliação e implementação de políticas públicas em diversos eixos.

Algumas das ações foram estruturadas para a participação de todas as secretarias envolvidas, como o Plano Municipal de Equidade de Gênero no Orçamento da Prefeitura, por meio do Orçamento Temático. A proposta, no entanto, não foi concretizada. A cidade conta hoje com três Orçamentos Temáticos ativos: da Criança e do Adolescente, do Idoso, e da Pessoa com Deficiência. Todos eles com ações a partir do recorte de gênero.

Desde então, Belo Horizonte registrou alguns marcos legais: determinou por lei, em 2019, a flexão de gênero na escrita de documentos expedidos por órgãos da administração pública municipal direta e indireta; em 2020, instituiu o Programa de Dignidade Menstrual como lei municipal; e em 2023, criou uma lei que prevê ações socioeducativas e preventivas de enfrentamento aos atos de violência contra a mulher nas escolas municipais, e outra que institui o Auxílio Transporte Mulher, para vítimas de violência doméstica. Todas as despesas estão presentes no PPA 2022-2025 e no LOA 2023.

•        Curitiba tem orçamento ‘neutro’

A sexta maior economia do país, Curitiba não avançou no planejamento de ações sensíveis à equidade de gênero. No Plano Plurianual 2022-2025 há poucas menções a propostas de gênero, e as que têm não trazem detalhes.

O tema, no entanto, não deixa de ser uma cobrança popular. Relatório elaborado pela própria prefeitura e anexado ao PPA registrou reivindicações da comunidade sobre questões de enfrentamento (campanhas) e atendimento (centros) a casos de violência contra a mulher, com 250 votos na regional Matriz, conforme descrito no documento.

A Matriz é uma das 10 áreas de abrangência em que a cidade – que possui 75 bairros ao todo – está dividida administrativamente. Ela inclui 18 bairros e uma população regional estimada de 209.807 habitantes.

O Orçamento Sensível a Gênero começou a ser pautado no Paraná há pouco tempo, em 2023. A equipe do governo estadual realizou um curso capacitatório sobre o tema com a Secretaria da Mulher e Igualdade Racial (SEMI) e se comprometeu a elaborar um Plano Plurianual 2025-2028 mais sensível às questões de gênero e raça.

O trabalho deve contar com cooperação técnica da Fundação Tide Setúbal, organização não-governamental de São Paulo que trabalha com ações voltadas à justiça social e ao desenvolvimento sustentável de periferias urbanas.

•        Goiânia dá os primeiros passos

Em 2023, a prefeitura da capital goiana percebeu a importância de enxergar os dados para responder às questões de desigualdade da cidade. Em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia deu início ao levantamento de dados sobre a situação de meninas e mulheres, a ser subsídio para a criação de um Observatório da Mulher. A proposta é fornecer informações para que as políticas públicas de gênero sejam mais eficazes.

No site da Prefeitura não há nenhuma menção à implementação de fato do Observatório Mulher. Procurada, o governo municipal não retornou o contato até o fechamento desta reportagem.

O Orçamento Anual de 2023, no entanto, prevê recursos destinados ao Observatório da Mulher Goiânia. Se concretizado, a criação da base de dados pode significar um primeiro passo para a aplicação de um Orçamento Sensível a Gênero.

Também em andamento, e prevista na LOA, está a criação da Casa da Mulher Brasileira, espaço que irá acolher mulheres em situação de violência. Os dois investimentos constam no orçamento dos gastos públicos sob o guarda-chuva de uma agenda de “Políticas Públicas e Novas Perspectivas para as Mulheres”.

•        Manaus sem traços de OSG

A prefeitura da capital do Amazonas não conta atualmente com um planejamento de gastos públicos que seja responsivo às questões de gênero. O PPA 2022-2025 propõe ações mais direcionadas a campanhas de conscientização pelos Direitos Humanos, incluindo os de gênero.

O orçamento de 2023 previu quatro repasses para ações envolvendo mulheres, entre combate à violência e geração de emprego, mas apenas uma delas é de política pública municipal. As demais são voltadas a organizações não-governamentais.

•        Candidaturas comprometidas com Orçamento Sensível a Gênero

A busca por um orçamento que seja responsivo às questões de gênero é pauta central da Rede Orçamento Mulher – um conjunto de organizações, com representantes dos ministérios federais, parlamentares comprometidos com o tema, acadêmicos e organizações da sociedade civil. A Rede é sediada na Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados, em Brasília.

Em setembro de 2024, a Rede Orçamento Mulher lançou uma carta-compromisso para sensibilizar candidaturas a prefeituras e Câmaras Municipais em defesa de orçamentos que pautem gênero e raça.

O documento online elenca oito itens. Entre eles está a inclusão da perspectiva de gênero e raça em todas as etapas do processo orçamentário, desde o planejamento até a avaliação de impacto das políticas implementadas; incentivo à participação ativa da sociedade civil, sobretudo mulheres e grupos minorizados; e transparência e colaboração na divulgação de informações sobre a execução do orçamento.

“Fizemos uma carta ampla para trazer não só candidaturas de esquerda, mas também de centro e até de direita que eventualmente queiram pautar”, explica Beatriz Sanchez, integrante da Rede Orçamento Mulher e professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Na primeira semana, o documento já tinha adesão de mais de uma centena de assinaturas, entre homens e mulheres de diferentes estados brasileiros e variado espectro político. A maior parte delas são de candidatas a vereadoras.

Segundo Beatriz, a ideia vai além de ampliar o debate sobre o Orçamento Sensível a Gênero, mas também auxiliar na aplicação e fiscalização dos resultados. “Montar uma rede de prefeitos comprometidos com a causa e ver como podemos implementar.”

A Rede Orçamento Mulher já ajudou a planejar o orçamento público em uma série de cidades e estados. Essas experiências serão compartilhadas pelos próprios gestores em um encontro presencial em novembro de 2024, em Brasília. “A ideia é entender o que deu certo e o que não deu, e depois fazer uma cartilha de como implementar um OSG”, conta.

•        Fale de OSG com seu candidato

A oportunidade de pensar e avançar no Orçamento Sensível a Gênero nos municípios de Recife, Belo Horizonte, Goiânia e Manaus estará sob a gestão de homens nos próximos quatro anos. Já Curitiba tem a chance de eleger em 2º turno uma prefeita nas eleições de 2024.

“Avalie o quanto esse candidato(a) está conectado com o discurso da comunidade onde ele está inserido. Ele precisa ter noção das questões das mulheres e de outras minorias; noção de desigualdade”, lembra a pesquisadora do Made Larissa Rosa.

E não só. Ele precisa entender que os problemas afetam as pessoas de maneira desigual, e o Estado tem papel fundamental nisso.

“Não adianta reconhecer os problemas e achar que o mercado privado vai solucionar. O candidato precisa entender que todas as instâncias [Prefeitura, Câmara] têm um papel e que é responsabilidade do Estado participar, construir política e resolver”, aponta Clara Brenck.

 

Fonte: Por Brenda Fernández, na Gênero e Número

 

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