Leonardo Boff: As mensagens da Terra
A consciência de que a
Terra é viva possui a mais alta ancestralidade. Era chamada de Magna mater, de
Nana, de Pachamama, de Tonanzin e atualmente de Gaia, um superorganismo que de
forma sistêmica articula todos os elementos físico-químicos e energéticos que
permitem e sustentam a vida. No dia 22 de abril de 2009, unanimemente a ONU
oficializou a nomenclatura Mãe Terra, reconhecendo tratar-se de uma entidade
viva, portadora de direitos, à qual devemos tratar com os mesmos predicados com
os quais tratamos nossas mães: com respeito, com cuidado e com veneração.
Depois oficializou-se
a expressão “Casa comum” envolvendo os seres humanos e toda a natureza. Isso
ficou claro na Carta da Terra do ano 2000 na qual se afirmava: “A Terra, nosso
lar, está viva com uma comunidade de vida única” (Preâmbulo). O Papa Francisco
na encíclica Laudato Sì:sobre o cuidado da Casa Comum (2015) ao assumir tal
expressão – Casa comum – contribuiu para a sua universalização.
Por se tratar de uma
realidade viva, a Terra está continuamente em ação e em re-ação. Manda-nos
eventos que são mensagens a serem ouvidas e decifradas. O ser humano ao
sentir-se parte da natureza mais ainda, aquela porção da Terra que alcançou
alto grau de complexidade a ponto de começar a sentir, a pensar, a querer, a
cuidar e a venerar, dispunha de todas as condições para captar as mensagens e a
capacidade para decifrá-las.
Em palavras mais
pedestres: o ser humano entendia os sinais da atmosfera e sabia se ia chover ou
fazer tempo bom; ao olhar árvores, suas folhas e flores sabia que frutos ela
podia produzir. E assim em tantos outros casos. Essa audição da Terra e da
natureza e a decifração de seus sinais é presente ainda hoje nos povos
originários que dominam o código de leitura do mundo circundante e cósmico.
Ocorre que nos tempos
modernos aconteceu uma grande viragem, especialmente, com os pais fundadores de
nosso paradigma vigente, fundado na vontade de poder e de dominação. Eles
trataram a Terra como mera res extensa, uma realidade sem propósito, uma espécie
de baú de recursos naturais à disposição do bel-prazer humano. Escutar as vozes
da Terra, seus gemidos e seus sussurros, “ouvir estrelas”, dizia-se, é coisa de
poetas ou ser tributário do antigo do animismo.
A maneira moderna de
ver a Terra transformou o saber científico numa operação técnica (o “saber é
poder”, segundo Francis Bacon), um processo de dominação de todas as esferas na
natureza e da vida. Mas operou-o sem o devido cuidado como quem escuta, atento,
mensagens. Ao contrário, fez-se surdo, explorando praticamente todas as
virtualidades dos biomas, degradando-os. Os reclamos da Magna mater ficaram
imperceptíveis, pois por que escutá-los? Não comparece ele como seu dono e
senhor (maître et possesseur de René Descartes)? Assim perdeu-se o código de
leitura do mundo.
É esta a situação
predominante de nosso mundo transformado pela tecnociência. Ouvimos mil vozes e
ruídos produzidos por nossa cultura técnico-científica. Não prestamos atenção
às vozes da natureza e da Terra. Estas vozes atuais são gemidos e gritos da uma
vida ferida e crucificada. Às nossas agressões já seculares, arrancando tudo
dela, sem observar os efeitos colaterais, perigosos e até maléficos, ela
revidou com mensagens na forma de tsunamis, terremotos, tufões, tornados,
enchentes devastadoras, nevascas nunca antes vistas, numa palavra, com eventos
extremos.
Como não escutamos as
mensagens contidas em tais eventos, mandou-nos outros sinais potentes que
tocaram diretamente nossas vidas: a imensa gama de bactérias e vírus, desde a
simples gripe, o HIV, o ebola até culminarmos no Coronavírus. Este afetou
apenas os seres humanos e poupou os demais organismos vivos. Todos se
mobilizaram para encontrar um antídoto, as diferentes vacinas. Poucos se
perguntaram de onde vinha o Covid-19. Ele veio da natureza na qual nossa
intervenção utilitarista destruiu o habitat desses micro-organismos. Estes
buscaram outro, vindo a instalar-se em nossas células. Invisível, pôs todos os
poderes militaristas, suas bombas nucleares e químicas, de joelhos e
impotentes.
Por que afirmo isso?
Porque não aprendemos nada da lição que a Terra e a natureza nos quiseram dar
pelo Covid-19. O isolamento social que impunha, serviria de ocasião para
pensarmos sobre o que fizemos até agora com o sistema-vida e sobre que tipo de
mundo queremos habitar. O fato é que passada a grande ameaça coletiva, voltamos
furiosamente ao antigo normal, continuando com a depredação da natureza e assim
com a destruição dos habitats dos micro-organismos. Inauguramos uma nova era, o
Antropoceno.
Os eventos ocorridos
em 2023 e 2024 como as grandes enchentes no mundo inteiro e no sul de nosso
país, os devastadores incêndios em muitos países, as guerras de alta letalidade
(pois, Terra e humanidade formamos um única e complexa entidade, obsevada pelos
astronautas – o Overview Effect), as perversas desigualdades sociais a nível
mundial e o grande alarme, verdadeiro meteoro rasante, o irrefreável
aquecimento global entre outros sinais, representam mensagens que a Terra e a
natureza nos estão enviando. São pouquíssimos os que as escutam e as
interpretam. Predominam o negacionismo, a surdez coletiva e o não-saber
consciente porque atrapalha a acumulação desenfreada à custa de vidas humanas e
da natureza.
Se não pararmos e não
nos pusermos, humildemente, na escuta e na leitura das mensagens enviadas pela
natureza e pela Mãe Terra e coletivamente não trocarmos de rota, se realizará o
que o Papa Francisco na encíclica Fratelli tutti (2020) profeticamnte advertiu:
“estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos, ou ninguém se salva”. Desta vez
não há uma Arca de Noé que preserve representantes do mundo vivo e deixa
perecer os demais. Todos podemos estar, inconsciente e irresponsavelmente, nos
acercando do abismo no qual podemos nos precipitar.
Será o desfecho
sinistro por não termos abertos nossos ouvidos e negligenciado a interpretação
dos sinais que a natureza e a Mãe Terra nos têm gritado, suplicando uma radical
conversão ecológica e a definição de outro caminho civilizatório. O atual nos leva
irrefragavelmente a um fim trágico. E assim nos somaríamos aos milhares
organismos vivos que, não podendo se adaptar às mudanças, acabaram
desaparecendo. A Terra, no entanto, continuaria, mas sem nós.
Como o impensável e o
inesperado pertencem à história, tudo poderá ser diferente. Como dizia um
filósofo pré-socrático: se não esperarmos o inesperado e ele pode acontecer,
então todos nos perderemos. Então estejamos atentos ao inesperado. Em nosso
esperançar, ele pode acontecer.
Fonte: A Terra é
Redonda
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