sábado, 26 de outubro de 2024

Computação quântica pode reinventar desenvolvimento de fármacos e transformar processos na saúde

A criação do computador e da internet nas últimas décadas transformou a sociedade. De lá para cá, a capacidade de processamento não parou de evoluir e, hoje, novas fronteiras se abrem. Nessa esteira está a computação quântica, que se aproxima cada vez mais de se estabelecer como uma ferramenta implementável e com capacidade para transformar sistemas inteiros.

De maneira resumida, a principal diferença da computação quântica para a tradicional, que conhecemos e usamos no dia a dia, é a base do sistema utilizado. A computação comum se utiliza do binarismo (ou bit), isto é, registra informações em sequências de 0’s e 1’s. Na computação quântica, a lógica é diferente, o que permite que o processamento ocorra de maneira muito mais ágil em vários problemas de extrema relevância para a indústria.

“Um computador quântico, ao invés dos bits, utiliza-se dos qubits. Ou seja, ele não apenas armazena informações baseadas em sequências de 0’s e 1’s, mas também em superposições de tais sequências, uma capacidade única do mundo quântico que permite realizar operações mais complexas”, explica Edson Amaro, neurorradiologista e head global de tecnologias avançadas para a equidade do Hospital Israelita Albert Einstein.

Para Marcelo Terra, doutor em física, pesquisador em ciências da informação quântica e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o princípio da superposição, junto com outros princípios como medições e emaranhamento de qubits, presente na computação quântica representa um novo leque de possibilidades a serem exploradas.

“Ao invés de termos apenas duas possibilidades para cada bit de uma sequência (0 ou 1), temos agora a possibilidade de todas as chamadas superposições destas duas alternativas clássicas, o que nos permite usar a noção de interferência para construir algoritmos mais interessantes. Esse é o chamado bit quântico, base da Computação Quântica. Essa diferença traz muitas novas possibilidades, que ainda estamos aprendendo a usar”, completa.

<><> Computação quântica nas tecnologias que conhecemos

Embora haja uma tendência de reduzir o computador quântico à ideia de um computador mais veloz, a tecnologia não se resume a isso, segundo Amaro. “É um computador com propriedades diferentes. E, na saúde, é importante notar que todos os processos dos sistemas biológicos que lidamos, no fundo, têm propriedade quântica. A natureza é quântica”, afirma.

Os princípios quânticos integram tecnologias de saúde usadas há anos. É o caso da ressonância magnética, que utiliza uma propriedade quântica, os spins nucleares – ou núcleos de hidrogênio – como base do sinal para fazer a imagem.

Além da ressonância magnética, lasers e determinadas tecnologias de comunicação como smartphones são a primeira geração de tecnologia que se beneficia de propriedades de onda baseadas na física quântica. A expectativa agora é sobre a segunda geração, que tem como cerne a criação e o controle de estados quânticos individuais: é o 1 e o 0 coexistindo e se sobrepondo e o que nasce a partir dessas possibilidades infinitas.

Terra aponta que, embora a computação quântica seja a mais famosa das chamadas tecnologias quânticas de segunda geração, há outras áreas que se demonstram promissoras para a saúde. Segundo o pesquisador, a simulação quântica, por exemplo, promete muito no desenvolvimento de novas moléculas e fármacos.

<><> Segunda geração de computação quântica

Em artigo publicado em junho deste ano, Bertalan Meskó, doutor em genômica e futurista, abordou como o uso de tecnologias quânticas de segunda geração pode reinventar a maneira como novas drogas são desenvolvidas, da descoberta de moléculas à etapa de ensaios clínicos. Um dos exemplos trazidos por ele é a Atomwise, uma empresa localizada em São Francisco, nos EUA, que utiliza plataformas baseadas em inteligência artificial e supercomputadores na busca por moléculas – ela rastreia mais de 100 milhões de compostos todos os dias, diz o artigo.

Outro exemplo dado por Meskó é o da criação de voluntários artificiais para a realização de ensaios clínicos, modelos que ficaram conhecidos como “in silico trial”, ou simulação computacional – a expressão foi inspirada nas já estabelecidas in vitro e in vivo. Nesse contexto, são desenvolvidos candidatos com as características necessárias para determinado ensaio clínico num ambiente digital, com a ajuda de algoritmos e big data. De acordo com Meskó, há exemplos de companhias que chegaram a anunciar a possibilidade de que o processo de desenvolvimento de uma nova droga candidata dure menos de 60 dias.

Além da simulação, de acordo com o pesquisador da Unicamp, outras apostas são o sensoriamento quântico e a comunicação quântica, particularmente interessante em um momento em que se discute a integração de dados de saúde e o desafio da segurança de informações desta natureza. “Quando falamos em comunicação quântica, estamos pensando em estratégias para usar tecnologias quânticas para garantir a segurança da comunicação, com a privacidade como ideia central”, aponta Terra.

Ele exemplifica a tese com o sistema utilizado atualmente em cartões de crédito. Ao invés do número em si ser transmitido, o que acontece é a criptografia desses dados, o que aumenta a camada de proteção em tentativas de interceptação não autorizada, como ataques de hackers e vazamentos.

Amaro salienta que mais do que uma tecnologia específica, é preciso ter em mente que a computação quântica é um instrumento. “Na medicina, a primeira aplicação clara e que já foi demonstrada, que recebe até mesmo um investimento maior, é a encriptação. Isso vem do fato de que de uma maneira ou de outra, quando usamos essa tecnologia, é possível ter certeza de que a informação é enviada de um lugar para o outro com uma chave, e que não será interceptada. Os bancos já entenderam isso e, assim como dados financeiros, os dados de saúde também são sensíveis.”

<><> Desafios técnicos e éticos da computação quântica

Ambos os pesquisadores apontam que, embora os resultados vistos nos supercomputadores em ambientes de pesquisa sejam interessantes, a jornada para que tecnologias quânticas de segunda geração tenham um impacto real na sociedade ainda deve demorar. Um dos desafios para a viabilidade é a própria capacidade técnica e de estrutura para aumentar o número de qubits que podem ser processados, com precisão adequada e proteção contra outras interações.

Amaro diz que a aposta para os próximos anos é no desenvolvimento de computadores híbridos, que devem contar com alguns princípios quânticos, mas não a estrutura completa devido a sua complexidade. Além disso, ele também chama a atenção para a limitação do conhecimento humano sobre o tema.

“Não são muitas pessoas que entendem de computação quântica, então esse é um baita desafio de escala, porque obviamente você vai precisar de equipes multidisciplinares, como tudo o que é desenvolvido hoje”, afirma Amaro. “A programação de um computador quântico hoje não é linear, diferente do convencional. As linguagens para a programação quântica já existem, mas falta padronização. Cada um está olhando isso de um jeito diferente.”

E os desafios não são apenas técnicos, mas também éticos. Tanto Amaro quanto Terra concordam que, assim como qualquer tecnologia, a quântica não é por natureza positiva ou negativa, mas vale-se do uso que é feito. E defendem que, em termos éticos, a maior preocupação é de que o acesso seja garantido a todos e não se concentre nas mãos de alguns. “Se o investimento em ciência é coletivo, não faz sentido os resultados serem apropriados e usados contrariamente a esse desenvolvimento coletivo”, avalia o pesquisador da Unicamp.

Como estratégia para garantir um cenário de possibilidades de desenvolvimento que prezam pela equidade, Terra cita o exemplo do Open Quantum Institute (OPQ), uma iniciativa que reúne academia, indústria, governos e outros setores sociais para promover o acesso global e inclusivo à computação quântica e ao desenvolvimento de aplicações em benefício da humanidade. “Ele é justamente nascido desta preocupação de como permitir que a computação quântica e outras tecnologias quânticas sejam acessíveis para a maior parte da população e não fique concentrada apenas em países mais poderosos.”

A própria finalidade das ferramentas é outro ponto que merece atenção, na visão de Amaro. O médico ressalta que é natural que o mercado invista em áreas que sinalizam maior retorno financeiro, como pesquisas focadas em doenças como o câncer – que são extremamente importantes, mas não devem monopolizar o direcionamento das pesquisas médicas. Ele conta que um novo grupo de pesquisa instituído no Einstein tem se debruçado sobre as tecnologias quânticas e deve dedicar atenção especial para as doenças que têm maior impacto em populações menos favorecidas.

“É uma área literalmente muito carente, não só pelas pessoas que já estão em uma situação de fragilidade social como também por esse aspecto de olhar apenas para aqueles que podem pagar pelo seu desenvolvimento. Se isso se perpetuar, vai ser difícil atingir a equidade. Estamos explorando essas possibilidades e já começamos a pensar nesse problema de maneira concreta”, finaliza Amaro.

 

•        Realidade Mista: o futuro do metaverso na saúde

Quando surgem novas tecnologias, passada a empolgação inicial, é comum que algumas delas caiam em desuso. Outras, por sua vez, passam por um processo de oscilação. Vão e voltam, para só depois se consolidar. É a chamada “curva de adoção da inovação”, onde o metaverso parece estar. O grande impulsionador desta volta tem sido o avanço da realidade mista por meio de dispositivos mais acessíveis, como o Meta Quest 3, assim como o espírito empreendedor de profissionais de saúde na busca por melhores padrões de cuidado e de mais acesso para pacientes em todo o País.

A realidade virtual (RV), na qual imergimos em um mundo totalmente digital, também tem avançado em áreas como educação continuada. Recentemente, o Hospital Israelita Albert Einstein1 incorporou ao seu programa de residência em ortopedia módulos de treinamento com o uso de realidade virtual. Com a simulação de um centro cirúrgico, o residente tem a oportunidade valiosa de repetir inúmeras vezes um procedimento e, assim, fixar os passos cirúrgicos em um ambiente, completamente seguro.

Avaliando o impacto disso no “mundo real”, um estudo clínico randomizado, duplo cego, publicado no Annals of Surgery2, concluiu que as habilidades adquiridas com o treinamento por meio de realidade virtual podem ser transferidas para o centro cirúrgico. Os residentes que treinaram com VR tiveram seis vezes menos erros ao realizar uma colecistectomia, do que aqueles que apenas realizaram o treinamento tradicional (1,19 vs. 7,38 erros por caso; P <0,008, Mann-Whitney test).

Mas a grande novidade vem da realidade mista, com relatos promissores de sua aplicação em cirurgias de alta precisão.

A tecnologia foi utilizada no Hospital Sírio-Libanês de Brasília3  durante uma cirurgia para remoção de tumor no pulmão, proporcionando aos cirurgiões uma visualização anatômica mais detalhada. Em Santa Catarina, o dispositivo Apple Vision Pro permitiu o acesso a imagens de ressonância magnética durante uma cirurgia de artroscopia de ombro.4 Finalmente, no Hospital de Amor em Barretos, equipes cirúrgicas de colorretal têm usado o Quest 3 para incorporar a realidade mista em sua rotina, buscando melhorar o padrão de cuidado para os pacientes.

O uso de hologramas para educação continuada também  parece extremamente promissor, e o projeto pioneiro da Dra. Giselle Coelho ilustra este potencial 5.   Em um modelo piloto, um  holograma do Prof. Benjamin Warf, referência mundial da área, orienta o residente médico a fazer o procedimento de neuroendoscopia cerebral em um boneco simulador. Além disso, a Dra. Giselle realizou a primeira holoportação intercontinental (Boston- São Paulo) em dezembro de 2023, onde recebeu a orientação para uma cirurgia simulada em tempo real do professor Warf, que estava em Boston. A holoportação deve ganhar escala  nos próximos anos à medida que haja uma redução de custos para a implantação desta tecnologia.

E o metaverso? Bom, ainda que discretamente, ele tem progredido na área da saúde. Tecnologias como realidade virtual, realidade mista e até mesmo holoportação demonstram o potencial desse “universo”. Em um futuro próximo, acredito, essas ferramentas estarão cada vez mais integradas à rotina de centros cirúrgicos e programas de formação médica, impulsionando avanços significativos nesses campos.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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