Computação quântica pode reinventar
desenvolvimento de fármacos e transformar processos na saúde
A criação do
computador e da internet nas últimas décadas transformou a sociedade. De lá
para cá, a capacidade de processamento não parou de evoluir e, hoje, novas
fronteiras se abrem. Nessa esteira está a computação quântica, que se aproxima
cada vez mais de se estabelecer como uma ferramenta implementável e com
capacidade para transformar sistemas inteiros.
De maneira resumida, a
principal diferença da computação quântica para a tradicional, que conhecemos e
usamos no dia a dia, é a base do sistema utilizado. A computação comum se
utiliza do binarismo (ou bit), isto é, registra informações em sequências de 0’s
e 1’s. Na computação quântica, a lógica é diferente, o que permite que o
processamento ocorra de maneira muito mais ágil em vários problemas de extrema
relevância para a indústria.
“Um computador
quântico, ao invés dos bits, utiliza-se dos qubits. Ou seja, ele não apenas
armazena informações baseadas em sequências de 0’s e 1’s, mas também em
superposições de tais sequências, uma capacidade única do mundo quântico que
permite realizar operações mais complexas”, explica Edson Amaro,
neurorradiologista e head global de tecnologias avançadas para a equidade do
Hospital Israelita Albert Einstein.
Para Marcelo Terra,
doutor em física, pesquisador em ciências da informação quântica e professor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o princípio da superposição, junto
com outros princípios como medições e emaranhamento de qubits, presente na
computação quântica representa um novo leque de possibilidades a serem
exploradas.
“Ao invés de termos
apenas duas possibilidades para cada bit de uma sequência (0 ou 1), temos agora
a possibilidade de todas as chamadas superposições destas duas alternativas
clássicas, o que nos permite usar a noção de interferência para construir algoritmos
mais interessantes. Esse é o chamado bit quântico, base da Computação Quântica.
Essa diferença traz muitas novas possibilidades, que ainda estamos aprendendo a
usar”, completa.
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Computação quântica nas tecnologias que conhecemos
Embora haja uma
tendência de reduzir o computador quântico à ideia de um computador mais veloz,
a tecnologia não se resume a isso, segundo Amaro. “É um computador com
propriedades diferentes. E, na saúde, é importante notar que todos os processos
dos sistemas biológicos que lidamos, no fundo, têm propriedade quântica. A
natureza é quântica”, afirma.
Os princípios
quânticos integram tecnologias de saúde usadas há anos. É o caso da ressonância
magnética, que utiliza uma propriedade quântica, os spins nucleares – ou
núcleos de hidrogênio – como base do sinal para fazer a imagem.
Além da ressonância
magnética, lasers e determinadas tecnologias de comunicação como smartphones
são a primeira geração de tecnologia que se beneficia de propriedades de onda
baseadas na física quântica. A expectativa agora é sobre a segunda geração, que
tem como cerne a criação e o controle de estados quânticos individuais: é o 1 e
o 0 coexistindo e se sobrepondo e o que nasce a partir dessas possibilidades
infinitas.
Terra aponta que,
embora a computação quântica seja a mais famosa das chamadas tecnologias
quânticas de segunda geração, há outras áreas que se demonstram promissoras
para a saúde. Segundo o pesquisador, a simulação quântica, por exemplo, promete
muito no desenvolvimento de novas moléculas e fármacos.
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Segunda geração de computação quântica
Em artigo publicado em
junho deste ano, Bertalan Meskó, doutor em genômica e futurista, abordou como o
uso de tecnologias quânticas de segunda geração pode reinventar a maneira como
novas drogas são desenvolvidas, da descoberta de moléculas à etapa de ensaios
clínicos. Um dos exemplos trazidos por ele é a Atomwise, uma empresa localizada
em São Francisco, nos EUA, que utiliza plataformas baseadas em inteligência
artificial e supercomputadores na busca por moléculas – ela rastreia mais de
100 milhões de compostos todos os dias, diz o artigo.
Outro exemplo dado por
Meskó é o da criação de voluntários artificiais para a realização de ensaios
clínicos, modelos que ficaram conhecidos como “in silico trial”, ou simulação
computacional – a expressão foi inspirada nas já estabelecidas in vitro e in
vivo. Nesse contexto, são desenvolvidos candidatos com as características
necessárias para determinado ensaio clínico num ambiente digital, com a ajuda
de algoritmos e big data. De acordo com Meskó, há exemplos de companhias que
chegaram a anunciar a possibilidade de que o processo de desenvolvimento de uma
nova droga candidata dure menos de 60 dias.
Além da simulação, de
acordo com o pesquisador da Unicamp, outras apostas são o sensoriamento
quântico e a comunicação quântica, particularmente interessante em um momento
em que se discute a integração de dados de saúde e o desafio da segurança de
informações desta natureza. “Quando falamos em comunicação quântica, estamos
pensando em estratégias para usar tecnologias quânticas para garantir a
segurança da comunicação, com a privacidade como ideia central”, aponta Terra.
Ele exemplifica a tese
com o sistema utilizado atualmente em cartões de crédito. Ao invés do número em
si ser transmitido, o que acontece é a criptografia desses dados, o que aumenta
a camada de proteção em tentativas de interceptação não autorizada, como
ataques de hackers e vazamentos.
Amaro salienta que
mais do que uma tecnologia específica, é preciso ter em mente que a computação
quântica é um instrumento. “Na medicina, a primeira aplicação clara e que já
foi demonstrada, que recebe até mesmo um investimento maior, é a encriptação. Isso
vem do fato de que de uma maneira ou de outra, quando usamos essa tecnologia, é
possível ter certeza de que a informação é enviada de um lugar para o outro com
uma chave, e que não será interceptada. Os bancos já entenderam isso e, assim
como dados financeiros, os dados de saúde também são sensíveis.”
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Desafios técnicos e éticos da computação quântica
Ambos os pesquisadores
apontam que, embora os resultados vistos nos supercomputadores em ambientes de
pesquisa sejam interessantes, a jornada para que tecnologias quânticas de
segunda geração tenham um impacto real na sociedade ainda deve demorar. Um dos
desafios para a viabilidade é a própria capacidade técnica e de estrutura para
aumentar o número de qubits que podem ser processados, com precisão adequada e
proteção contra outras interações.
Amaro diz que a aposta
para os próximos anos é no desenvolvimento de computadores híbridos, que devem
contar com alguns princípios quânticos, mas não a estrutura completa devido a
sua complexidade. Além disso, ele também chama a atenção para a limitação do
conhecimento humano sobre o tema.
“Não são muitas
pessoas que entendem de computação quântica, então esse é um baita desafio de
escala, porque obviamente você vai precisar de equipes multidisciplinares, como
tudo o que é desenvolvido hoje”, afirma Amaro. “A programação de um computador
quântico hoje não é linear, diferente do convencional. As linguagens para a
programação quântica já existem, mas falta padronização. Cada um está olhando
isso de um jeito diferente.”
E os desafios não são
apenas técnicos, mas também éticos. Tanto Amaro quanto Terra concordam que,
assim como qualquer tecnologia, a quântica não é por natureza positiva ou
negativa, mas vale-se do uso que é feito. E defendem que, em termos éticos, a
maior preocupação é de que o acesso seja garantido a todos e não se concentre
nas mãos de alguns. “Se o investimento em ciência é coletivo, não faz sentido
os resultados serem apropriados e usados contrariamente a esse desenvolvimento
coletivo”, avalia o pesquisador da Unicamp.
Como estratégia para
garantir um cenário de possibilidades de desenvolvimento que prezam pela
equidade, Terra cita o exemplo do Open Quantum Institute (OPQ), uma iniciativa
que reúne academia, indústria, governos e outros setores sociais para promover
o acesso global e inclusivo à computação quântica e ao desenvolvimento de
aplicações em benefício da humanidade. “Ele é justamente nascido desta
preocupação de como permitir que a computação quântica e outras tecnologias
quânticas sejam acessíveis para a maior parte da população e não fique
concentrada apenas em países mais poderosos.”
A própria finalidade
das ferramentas é outro ponto que merece atenção, na visão de Amaro. O médico
ressalta que é natural que o mercado invista em áreas que sinalizam maior
retorno financeiro, como pesquisas focadas em doenças como o câncer – que são
extremamente importantes, mas não devem monopolizar o direcionamento das
pesquisas médicas. Ele conta que um novo grupo de pesquisa instituído no
Einstein tem se debruçado sobre as tecnologias quânticas e deve dedicar atenção
especial para as doenças que têm maior impacto em populações menos favorecidas.
“É uma área
literalmente muito carente, não só pelas pessoas que já estão em uma situação
de fragilidade social como também por esse aspecto de olhar apenas para aqueles
que podem pagar pelo seu desenvolvimento. Se isso se perpetuar, vai ser difícil
atingir a equidade. Estamos explorando essas possibilidades e já começamos a
pensar nesse problema de maneira concreta”, finaliza Amaro.
• Realidade Mista: o futuro do metaverso
na saúde
Quando surgem novas
tecnologias, passada a empolgação inicial, é comum que algumas delas caiam em
desuso. Outras, por sua vez, passam por um processo de oscilação. Vão e voltam,
para só depois se consolidar. É a chamada “curva de adoção da inovação”, onde o
metaverso parece estar. O grande impulsionador desta volta tem sido o avanço da
realidade mista por meio de dispositivos mais acessíveis, como o Meta Quest 3,
assim como o espírito empreendedor de profissionais de saúde na busca por
melhores padrões de cuidado e de mais acesso para pacientes em todo o País.
A realidade virtual
(RV), na qual imergimos em um mundo totalmente digital, também tem avançado em
áreas como educação continuada. Recentemente, o Hospital Israelita Albert
Einstein1 incorporou ao seu programa de residência em ortopedia módulos de
treinamento com o uso de realidade virtual. Com a simulação de um centro
cirúrgico, o residente tem a oportunidade valiosa de repetir inúmeras vezes um
procedimento e, assim, fixar os passos cirúrgicos em um ambiente, completamente
seguro.
Avaliando o impacto
disso no “mundo real”, um estudo clínico randomizado, duplo cego, publicado no
Annals of Surgery2, concluiu que as habilidades adquiridas com o treinamento
por meio de realidade virtual podem ser transferidas para o centro cirúrgico. Os
residentes que treinaram com VR tiveram seis vezes menos erros ao realizar uma
colecistectomia, do que aqueles que apenas realizaram o treinamento tradicional
(1,19 vs. 7,38 erros por caso; P <0,008, Mann-Whitney test).
Mas a grande novidade
vem da realidade mista, com relatos promissores de sua aplicação em cirurgias
de alta precisão.
A tecnologia foi
utilizada no Hospital Sírio-Libanês de Brasília3 durante uma cirurgia para remoção de tumor no
pulmão, proporcionando aos cirurgiões uma visualização anatômica mais
detalhada. Em Santa Catarina, o dispositivo Apple Vision Pro permitiu o acesso
a imagens de ressonância magnética durante uma cirurgia de artroscopia de
ombro.4 Finalmente, no Hospital de Amor em Barretos, equipes cirúrgicas de
colorretal têm usado o Quest 3 para incorporar a realidade mista em sua rotina,
buscando melhorar o padrão de cuidado para os pacientes.
O uso de hologramas
para educação continuada também parece
extremamente promissor, e o projeto pioneiro da Dra. Giselle Coelho ilustra
este potencial 5. Em um modelo piloto,
um holograma do Prof. Benjamin Warf,
referência mundial da área, orienta o residente médico a fazer o procedimento
de neuroendoscopia cerebral em um boneco simulador. Além disso, a Dra. Giselle
realizou a primeira holoportação intercontinental (Boston- São Paulo) em
dezembro de 2023, onde recebeu a orientação para uma cirurgia simulada em tempo
real do professor Warf, que estava em Boston. A holoportação deve ganhar
escala nos próximos anos à medida que
haja uma redução de custos para a implantação desta tecnologia.
E o metaverso? Bom,
ainda que discretamente, ele tem progredido na área da saúde. Tecnologias como
realidade virtual, realidade mista e até mesmo holoportação demonstram o
potencial desse “universo”. Em um futuro próximo, acredito, essas ferramentas
estarão cada vez mais integradas à rotina de centros cirúrgicos e programas de
formação médica, impulsionando avanços significativos nesses campos.
Fonte: Futuro da Saúde
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