Em São Paulo, dois caminhos para o SUS
Em agosto, uma
pesquisa realizada pelo Datafolha revelou que a Saúde é a segunda maior
preocupação dos cidadãos de São Paulo e uma das áreas consideradas prioritárias
para a atuação do próximo prefeito da metrópole. Não por coincidência, os
candidatos que passaram ao 2º turno da eleição municipal na capital paulista, o
atual mandatário Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL), possuem visões
bastante distintas sobre os rumos da saúde pública no município.
Psicóloga do SUS e
reeleita para uma cadeira da Câmara Municipal de São Paulo no início deste mês,
a vereadora Luana Alves avaliou em entrevista a Outra Saúde que, durante a
gestão de Nunes, “a grande marca dos últimos quatro anos foi a aceleração do
processo de privatização da gestão do SUS” no município. De fato, como este
boletim cobriu diversas vezes, as Organizações Sociais da Saúde (OSS) ampliaram
sua presença nos equipamentos de saúde da cidade nesse período – com resultados
como a precarização das condições de trabalho, a degradação do controle social
e uma total falta de fiscalização financeira da Secretaria Municipal de Saúde
sobre os recursos transferidos às OSS, reconhecida pelo Ministério Público.
Do outro lado da
disputa, opina a vereadora, seu colega de partido Guilherme Boulos tem “um
projeto de mudança e retomada da gestão pública e popular do SUS” e conseguiu
agregar em sua campanha figuras que “têm comprometimento com o projeto do SUS
de 1988 e com a garantia do acesso”, como o sanitarista e fundador da Anvisa
Gonzalo Vecina. Questionada pela reportagem a declaração de Boulos em uma
sabatina com donos de hospitais privados rejeitando um rompimento mais enfático
com as OSs, Luana destaca que diverge neste ponto e propõe um programa de
transição que as retire da gestão, mas defende que o essencial em um primeiro
momento é “recuperar a governança, acabando com essa relação em que o SUS está
a serviço das OSs, e não o contrário”.
LEIA A ENTREVISTA:
• Luana, antes de tudo, eu gostaria de
ouvir uma avaliação sua sobre o estado dos serviços municipais de saúde depois
desses últimos anos da gestão do Ricardo Nunes. Que balanço você faria desse
período para o SUS em São Paulo?
Esses últimos quatro
anos foram de aceleração do processo de privatização da gestão do SUS, eu acho
que essa é a grande marca. E o que acontece é que essa gestão cada vez mais
privatizada vai resultar em uma completa falta de governança. É até difícil a gente
fazer uma avaliação da Secretaria Municipal de Saúde porque, de fato, ela não
tem mais governança sobre os equipamentos. Está uma situação muito difícil, é
muito ruim. Mas para além de uma gestão ruim, é uma não-gestão, porque hoje
você tem as gestões locais fragmentadas. Cada OS vai comandando conforme sua
linha. A SPDM faz uma coisa, a Santa Marcelina faz outra, a CEJAM faz outra e
tem pouco diálogo entre elas, até porque é uma disputa de mercado. É difícil
que haja diálogo, porque não tem um objetivo comum. Do ponto de vista
institucional, as OSs não são como o Estado, que deve ter interesse em uma
política pública unificada de saúde. O interesse delas é conseguir mais
contratos, ponto. Não é uma política global. Por isso, de saída, já é difícil que
haja uma gestão minimamente conversada, pelos próprios interesses das OSs. Por
outro lado, a Prefeitura tenta demonstrar ações de governança que só se
expressam como mais pressão sobre os trabalhadores, na forma da entrega de
resultados numéricos que não tem a ver qualidade. Tem o exemplo da Portaria
333, que felizmente foi revogada graças à luta de muitos trabalhadores. Era uma
portaria que colocava metas de atendimento irreais e totalmente quantitativas.
Se exige que as equipes multiprofissionais dos CAPS e UBS atendam tantos
grupos, os procedimentos sejam tantos, as consultas sejam tantas, mas não se
procura ter nenhuma meta de qualidade que possa ser realmente acompanhada.
Outro problema é a
falta de fiscalização financeira. Na prática, a Prefeitura não tem capacidade
de fiscalizar tantos contratos firmados na área da Saúde. Isso é um assunto
sobre o qual o próprio Ministério Público já se manifestou, não é uma coisa que
a vereadora do PSOL está dizendo. Isso é algo que o Ministério Público mesmo
comprovou. Teria que ser feito um concurso muito amplo e mudar os fluxos,
porque a secretaria não tem nem pessoal o suficiente para fazer essa
fiscalização hoje. Além disso, nos últimos anos tem acontecido muita
perseguição política aos trabalhadores. Eu sempre comento com as pessoas que eu
estou constantemente recebendo demitidos políticos das OSs. São pessoas que
questionaram minimamente a gestão, ou que querem trabalhar conforme os
princípios do SUS e que acabam sendo retiradas. Teve demissão em que o
trabalhador ouviu da OS que “não estava alinhado com os princípios da empresa”.
Veja bem, que empresa? Não tem princípio de empresa coisa nenhuma, isso é o
SUS! Para finalizar, eu diria que nesses quatro anos de gestão também houve uma
degradação do controle social. Com toda essa privatização da gestão, o controle
social fica muito para trás. São esses os elementos que eu colocaria em um
balanço geral.
• Nesse sentido, então, a principal
característica da gestão Nunes seria o avanço das OSs sobre a saúde municipal,
certo? Porque me parece que essas demais questões – a sobrecarga e a
perseguição dos trabalhadores, a falta de controle sobre os recursos, o enfraquecimento
do controle social – são decorrentes do crescimento da presença delas.
Sim. Claro que isso
não acontece de uma maneira uniforme. Existem nuances também. Existem OSs
piores do que outras, isso é muito evidente para qualquer um que conhece o
sistema. Existem gestões muito mais incompetentes e outras que tentam fazer um
trabalho ali, mesmo no modelo de gestão privatizado. Existem algumas que são
abertamente pilantras, eu vi coisas inimagináveis nos últimos meses. Com a
eleição se aproximando, teve todo tipo de coisa que você pode imaginar, e nem
todas eu posso falar em público. Tudo isso tem a ver com a escolha da
Prefeitura de fatiar a máquina pública em áreas de influência, inclusive na
Saúde. Se você fragmenta a gestão, se você deixa tudo sob o controle local –
que, principalmente nas quebradas, vai ficar à mercê de quem tem mais poder na
área –, você, na prática, abre mão de fazer gestão e de governar. Abre mão de
colocar em prática as políticas públicas de saúde que consigam, digamos, “dar a
linha” para o atendimento em determinada região. Hoje não tem nada disso, tudo
fica à mercê dos interesses locais e a perseguição política aos trabalhadores é
visível. Além disso, a população está bastante insatisfeita. A Prefeitura faz
muita propaganda sobre o aumento de recursos para a saúde, e de fato houve esse
aumento, mas ele veio na forma de muito mais grana para as OSs. Essa verba não
se transforma em melhoria do atendimento, e o usuário do SUS sente isso e sabe
disso. É uma situação muito grave. Tem muita demanda que não está sendo
atendida, como as de saúde mental das crianças, por exemplo.
• Nesse âmbito da saúde mental, em agosto,
o Sindsaúde, o Sinpsi e a Frente Antimanicomial de SP fizeram uma manifestação
na frente da Prefeitura denunciando um “desmonte da saúde mental em São Paulo”.
Você concorda que há um desmonte? No que ele consiste?
Eu concordo. Primeiro,
existe um desmonte no sentido de que você parou de abrir novas unidades,
principalmente de CAPS. Há muito tempo, o ritmo de abertura dos CAPS tem sido
muito lento, mais lento que das UBS, inclusive. Ou seja, não tem a ver com uma
decisão geral de gestão: não é que parou de abrir equipamentos, parou de abrir
CAPS especificamente. Tem a ver também
com o fortalecimento de políticas de saúde mental que não são baseadas na
Reforma Psiquiátrica e na luta antimanicomial. São muitas políticas baseadas na
repressão, no moralismo, no proibicionismo – e inclusive na abstinência, no
caso da política de álcool e drogas. Existem alguns CAPS que começaram a
abrigar serviços praticamente clandestinos criados pela Prefeitura, que são os
Serviços de Cuidados Prolongados (SCP). Se você vai no CAPS AD III que fica na
Barra Funda, ele agora abriga um SCP, que funciona ali dentro com gestão
própria, trabalhadores próprios – contratados via OS – e pautado numa proposta
contrária à luta antimanicomial. Não tinha nem placa na frente e nem CNES
[Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde]. Isso não passou por lugar
nenhum, entende? Tem a ver com um desmonte bastante forte.
Penso também que o
fato de não se contratar mais via concursos públicos é algo que compõe o
desmonte na saúde mental. É o caso dos Centros de Convivência e Cooperativa
(CECOs), que são serviços de administração direta do poder público criados como
uma inovação da gestão da Luiza Erundina e ainda se mostram muito importantes.
O que acontece é que os servidores estão se aposentando e os CECOs estão
fechando. Tem vários CECOs que eu visitei durante o mandato que só funcionam
porque os funcionários ainda não se aposentaram, mesmo já podendo, porque tem
uma relação de muito afeto e muita responsabilidade com o serviço.
Existe um desmonte
geral, é muito perceptível.
• Você comentou também sobre as condições
de trabalho, que estariam piorando na rede municipal de saúde nesse último
período. Mais concretamente, como isso acontece?
As más condições de
trabalho têm a ver com sobrecarga, principalmente. Está ocorrendo um aumento
grande da demanda, tanto no sentido de mais pessoas usando o SUS quanto no
sentido de mais queixas, ou seja, as pessoas usando mais o SUS. A gente tá
vivendo uma situação de crise climática. Olha o que foi o último período em São
Paulo, com a fumaça das queimadas e outros problemas. A demanda por atendimento
nas UPAs e UBSs explodiu e não houve um aumento correspondente da oferta. Isso
gera sobrecarga pro profissional, junto com aquelas metas quantitativas que eu
comentei antes, que não permitem fazer um trabalho de qualidade. Vou dar um
exemplo. Você sabe que, na atenção básica aqui de São Paulo, existe a meta de
15 minutos por atendimento para o médico, inclusive para pré-natal. No começo
do meu mandato, nós tentamos abrir um diálogo com a Prefeitura para que o
atendimento da gestante em pré-natal fosse de pelo menos 30 minutos. A resposta
foi não, porque você tem que atender o máximo de pessoas e isso ia gerar estresse.
Sem contar que existem OSs que tiveram problema com o pagamento dos seus
trabalhadores. Não chega a ser o caso da maioria, mas foi uma questão com
algumas das OSs menores. É uma situação que gera um ambiente de trabalho muito
ruim, e muito violento também. Além disso, na medida que você vai desmontando o
controle social e tirando a autonomia que os conselhos gestores costumavam ter,
esse ambiente vai ficando inclusive hostil.
• Nesse último período, os dados do
DataSUS apontam que houve uma diminuição da participação da prefeitura na
realização do aborto legal na cidade, depois que o Hospital Municipal da Vila
Nova Cachoeirinha deixou de oferecer esse serviço. Como que se deu esse embate
em torno dos direitos reprodutivos nos últimos quatro anos?
Principalmente de dois
anos pra cá, essa gestão visivelmente teve uma guinada para o conservadorismo,
que coloca em risco os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das
pessoas que gestam. O serviço de aborto legal ter fechado no Cachoeirinha foi só
a ponta do iceberg, porque já vinham acontecendo uma série de mudanças de
gestão que estavam colocando em risco esse direito. Os hospitais municipais que
fazem aborto legal começaram a pedir Boletim de Ocorrência, por exemplo, e isso
começou a acontecer antes do fechamento do Cachoeirinha. O nosso mandato chegou
a receber relatos disso acontecendo no Hospital Mário Degni, no Rio Pequeno.
Isso não existe, está na lei que a palavra da mulher basta. Aí teve o fechamento do Cachoeirinha, que foi
violentíssimo. Esse caso envolveu uma articulação podre entre a Secretaria
Municipal de Saúde e o Conselho Regional de Medicina, que começou a perseguir
trabalhadoras que estão há anos na Prefeitura. A gestão do Ricardo Nunes foi
covarde de não só não defender suas funcionárias como inclusive apoiar a
perseguição do CRM, passando dados de pacientes. O que acontece é muito grave.
O Cachoeirinha era o único serviço que fazia o procedimento de assistolia
fetal, quando a gravidez é de mais 20 semanas – algo que, na verdade, nem
deveria acontecer, porque se nós tivéssemos uma rede mais completa de serviço
de aborto legal, em que a mulher não fosse julgada assim que entra no serviço e
não fosse mandada pra lá e pra cá, talvez essa gravidez nem chegasse a 20
semanas. Deixar uma mulher estuprada chegar a 20 semanas de gravidez é
inadmissível.De toda forma, nessas condições, só quem aceitava era o
Cachoeirinha, e na prática se está condenando milhares de mulheres e meninas a
serem mães de forma forçada. É muito cruel. A primeira menina que ficou
desassistida depois do fechamento do Cachoeirinha tinha 12 anos.
• Você chegou a comentar sobre uma
“degradação” da participação social no SUS durante esse período. Como foi a
relação da Prefeitura com os conselhos de saúde nos últimos anos?
A participação social
está muito precarizada e a gente está vendo muita interferência do poder
público. Recentemente, por exemplo, houve uma eleição no Hospital Sorocabana em
que a Prefeitura claramente tentou interferir no resultado do processo eleitoral
porque não queria aceitar a vitória de uma determinada chapa. Isso nunca tinha
acontecido antes, é uma novidade da gestão Ricardo Nunes: interferência nos
resultados eleitorais e ameaça para que as pessoas votem conforme o que mandam
assessores de vereadores da direita. O que eles fazem é uma nova forma da velha
política. Aquilo que sempre aconteceu na disputa eleitoral a cada dois anos
agora também está se repetindo nas disputas de conselhos de saúde, o que é um
problema do ponto de vista democrático. Esses espaços deveriam ser livres para
a população utilizar sem pressões e inclusive para ser uma força crítica, mas
estão sendo cooptados para serem claque para a prefeitura e os vereadores da
direita. Eles cooptam uma base social pelas vias mais podres possíveis,
comprando as pessoas e ameaçando para que elas tenham lealdade a esses caras,
obrigando a votar em quem eles querem. Isso tem acontecido bastante e é uma
ameaça a uma diretriz do SUS desde a sua origem, que é o controle social.
• Há dois meses, uma pesquisa identificou
que a saúde é a segunda maior prioridade dos moradores de São Paulo nessa
eleição. Agora, no segundo turno, a disputa se afunila em dois projetos. Quais
você avalia que são as diferenças entre os projetos do Ricardo Nunes e do
Guilherme Boulos para o SUS em São Paulo?
Há uma diferença
total. A primeira coisa é que o projeto do Ricardo Nunes não é nem a
continuidade: é piorar uma gestão que já é ruim. Esse é o ponto mais
importante. Se acontecer um eventual segundo mandato do Ricardo Nunes, ele vai
ser muito pior do que o de agora, porque foram firmados novos acordos
políticos. Eles vão envolver muito mais gente do bolsonarismo nas secretarias,
e a gente sabe que a Saúde é sempre uma das pastas mais cobiçadas. Desde que o
Bolsonaro perdeu a Presidência, já se começou a costurar o apoio do setor
bolsonarista ao nome do Nunes, em especial do PL. A gente que é da área da
saúde já ficou mais atento e eu como vereadora busquei acompanhar. Ficou
visível como eles tiveram que alocar gente do bolsonarismo nos espaços. É o
caso de uma gestora de hospital que foi candidata do PL, por exemplo. A
tendência é que isso piore em um segundo mandato. Ele também deve seguir a
tendência de deixar as OSs fazerem o que elas querem, colocando o SUS não na
posição de um sistema para garantir acesso à saúde para a população, mas de um
sistema que vai seguir sendo uma galinha dos ovos de ouro para meia dúzia. Já o
projeto do Boulos é um projeto de mudança e de retomada da gestão pública e
popular do SUS. O Boulos está junto com gente que de fato entende de saúde
pública e que inclusive é de muitos espectros políticos diferentes. Um bom
exemplo é o do Gonzalo Vecina, que não é um cara exatamente da esquerda, foi do
governo FHC, mas tem comprometimento com o projeto do SUS de 1988 e com a
garantia do acesso e da gestão pública. É muito importante não deixar o sistema
público de saúde de São Paulo ser dilapidado e fatiado como está sendo hoje.
Uma vez eu falei uma
coisa para o atual secretário de saúde [Luiz Carlos Zamarco] em uma audiência e
ele ficou ofendido, mas foi com toda a sinceridade. Se ele sumisse por uma
semana, ninguém ia reparar. Ele pode tirar férias por um mês que não vai mudar
nada no sistema de saúde em São Paulo, porque não é mais o secretário municipal
que está no comando, são as OSs. Recuperar a governança é o mínimo que se pode
fazer. Na verdade, para mim, tem que haver um programa de transição que retire
as OS da saúde, mas existem diferenças dentro da esquerda em relação a isso. Eu
acho que a gestão deve ser pública. De toda forma, num governo Guilherme
Boulos, não vai ter essa relação de hoje em que o SUS está a serviço das OS.
Vai ser o contrário, as OS é que vão estar a serviço do SUS. Eu acho que é
importante a gente entender isso.
• Em uma sabatina com o setor hospitalar
privado no final de agosto, o Boulos chegou a mencionar que não iria romper
imediatamente os contratos com as OS, mas fazer algo como um “pente fino”. Você
acha, então, que as OS ficam mas a relação muda, é isso?
Pessoalmente, eu vou
batalhar para que elas saiam. Não que o trabalhador da OS saia, é claro. Uma
pauta que eu defendo é que haja um novo concurso público para o SUS em São
Paulo – o último foi em 2017 –, mas que esse processo tenha uma pontuação
diferenciada para quem já está na rede. Isso não seria nenhuma novidade, a
Secretaria Municipal de Educação faz isso o tempo todo. Assim, quem já é
contratado tem mais facilidade para entrar como efetivo. Tem algumas coisas
básicas que é preciso fazer numa transição em relação às OSs. É importante que
haja um mínimo de isonomia salarial. Não dá para uma enfermeira na ASF [uma das
OS que atua em São Paulo] ganhar 25% a mais que a da SPDM ganha. Isso gera uma
espécie de “plano de carreira” bizarro, em que o trabalhador da OS vai ficando
estafado, tentar mudar para outra que paga melhor e isso se torna o plano de
carreira dele. A meta é terminar na que paga mais, passando por vários
processos seletivos. Na prática, isso
gera rotatividade, falta de vínculo e fragmentação dos serviços e fluxos. No
mínimo, quem faz o mesmo serviço tem que ganhar o mesmo salário. Já em alguns
serviços, como os hospitais municipais, eu acredito que tem que tirar, não tem
que ter OS mesmo. Mas, claro, é muito importante não fazer o processo de trás
para frente. Não dá para tirar de repente as OSs da atenção básica, que já
funciona nesse modelo há 10 anos. Isso seria irresponsável, é não conhecer a
rede. Se você tira as OS, o sistema desmonta no dia seguinte, porque não tem
quadros na Secretaria Municipal de Saúde para gerir. Eles estão todos nas OSs.
Na minha opinião, tem que haver essa transição, mas independentemente disso, eu
penso que só com Guilherme Boulos é que não vamos ter mais essa relação bizarra
de entrega total da Saúde às OSs que existe hoje.
• Para além desse embate eleitoral
imediato, pensando na agenda de lutas do próximo período de forma mais ampla,
que medidas você considera essenciais para fortalecer o SUS em São Paulo?
É muito importante
retomar a nossa força para impulsionar o controle social e fortalecer os
conselhos gestores. Fazer mais atividades, mais formações para os conselheiros
e retomar isso fazendo de baixo pra cima. Também considero fundamental criar e
fortalecer as formas de organização para os trabalhadores que são de OS. Hoje, a gente vê uma grande parte dos
sindicatos mais antigos virando as costas pro trabalhador de OS, quase tratando
como se fosse culpa dele. Fazendo pouco esforço para ser um sindicato que faça
sentido na vida desse trabalhador, entende? Eu acho que esse esforço tem que
ser feito. Tanto que a gente vê aí coletivos e fóruns aparecendo e defendendo
os trabalhadores por fora da forma mais tradicional do sindicalismo, já que uma
parte dos sindicatos não conversa com esse trabalhador, que se sente um pouco
entre a cruz e a caldeirinha. Muitas vezes, ele não sabe quem procurar e, se
ele abre a boca, a gestão demite. É preciso pensar formas seguras de organizar
esses trabalhadores, preservando os empregos deles. Essa deve ser uma nova
proposta que a gente tem que formular.
Dentro da esquerda, às
vezes eu tenho fama de ser anti-OS, mas tenho muito orgulho de uma parte grande
da minha base de votos ser de trabalhadores das OSs, porque o diálogo é
constante. A minha companheira é trabalhadora de OS, os meus amigos próximos são
todos trabalhadores de OS. Na minha geração de profissionais de saúde,
pouquíssimos conseguem ter outro vínculo.
Em um sentido mais geral, a gente tem que dialogar e ter paciência para
conversar com as pessoas. Por exemplo: muitas vezes, o nosso modelo de atenção
básica, que não leva o usuário do SUS diretamente ao especialista, é percebido
como desmonte. Recentemente, eu estive em uma situação muito difícil mas
bastante ilustrativa. No final do ano passado, um grupo de conselheiros de
saúde da Zona Leste, todos bem antigos e de esquerda, chegaram pra mim falando
que agora queriam que acabasse a Estratégia de Saúde da Família. Pedi que eles
me explicassem. Eles falaram que eram contra o médico de família, contra o
agente comunitário de saúde e queriam a volta dos especialistas, porque a
população dos bairros periféricos não estava conseguindo ter acesso a eles. Eu
acho que, com o desmonte do SUS, esse tipo de sentimento vai acontecer cada vez
mais. Claro que a solução não é acabar
com a Estratégia de Saúde da Família, mas ela precisa ser mais qualificada. Não
dá pra jogar no bairro um monte de recém-formado sem orientação e sem recurso,
que tem dificuldade de dialogar com o povo, muitas vezes é até racista, e dizer
que eles vão ser a solução. Desse jeito, as pessoas vão querer de volta o
especialista de mil anos atrás. É uma insegurança que a gente tem que acolher e
dialogar com muita tranquilidade. A proposta do Poupatempo da Saúde que o
Boulos apresentou, por exemplo, dialoga nesse sentido.
Fonte: Por Guilherme
Arruda, em Outra Saúde
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