Luiz Marques: Atualidade da questão de
organização
Falta comunicação
entre o aparato conceitual da esquerda e a cotidianidade das pessoas sensíveis
à problemática social. O circuito político interrompido há quarenta anos
precisa ser restaurado, com urgência e método
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A editora Boitempo
lançou em setembro, do corrente ano, um livro de João Quartim de Moraes —
Lênin: uma introdução. A publicação, às vésperas de uma eleição monopolizada
pelos temas municipais, propõe uma reflexão sobre Vladímir Ilyich Ulianov
(1870-1924), o condutor da primeira revolução socialista no mundo. Na
apresentação, Juliane Furno destaca que a iniciativa visa propiciar “o contato
com a vida e a obra do grande revolucionário bolchevique”, desejando “que suas
ideias e suas práticas deem vida e nova energia aos que ousam subverter a
ordem”. Algo crucial em um momento de neoliberalismo consolidado e de ameaça do
fascismo à democracia.
Variáveis exógenas são
levantadas pelos partidos progressistas para explicar e atenuar os resultados
negativos no pleito eleitoral. É costume abstrair os condicionamentos endógenos
— para salientar: (a) as emendas parlamentares milionárias que, por si, estimulam
o continuísmo político do atraso; (b) o custo exorbitante de campanha, na mesma
proporção em que encurta o tempo de exposição no horário político de rádio e
televisão, com evidente intenção de prejudicar as forças populares.
(c) A dificuldade de
candidatos identificados com os movimentos reivindicatórios (MTST, Direitos
Humanos) em ampliar o leque de interlocução com os eleitores, dados os índices
de rejeição; (d) as contradições de partidos com uma tradição de centro-esquerda,
tipo o PDT/CE, que com o acirramento da luta de classes rasgam o programa e se
bandeiam rápido para a extrema direita.
Tais elementos ajudam
a montar o mosaico político, em cada região. Mas não se pode esquecer os
fatores que envolvem a relação da esquerda contemporânea com as comunidades
periféricas, que se expandem em função da política econômica ainda hegemônica.
Vide a crise nas relações do capital e trabalho, a desindustrialização, o
desemprego premeditado, a terceirização, a precarização. Hoje é impossível
pensar um projeto de transformação sem priorizar políticas que dialoguem,
diretamente, com as demandas dos segmentos sociais subvalorizados, cuja
insegurança alimentar (a fome) é um obstáculo permanente à sua própria
reprodução social. O sistema mói corpos, almas e esperanças.
A guinada do Vaticano
na década de 1980, sob o Papa João Paulo II e o Prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, desencadeou um ataque às
atividades pastorais das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Teologia da
Libertação, a qual desde então sofre perseguições. Os heréticos emuladores da
aproximação da Igreja de Cristo com os pobres, nas favelas e bairros
abandonados pelo progresso, foram atirados na fogueira inquisitorial. O
“silêncio obsequioso” imposto ao frei Leonardo Boff é o símbolo da batalha,
perdida. Com o que se fecham os espaços institucionais e são suspensos os
apoios à inovadora e corajosa vertente do catolicismo.
A presença de agentes
transformadores nos ambientes não-oficiais das metrópoles é bloqueada, e a
entrada dos carismáticos evangélicos e seus templos facilitada pela legislação.
Eis o legado do Papa polonês anticomunista. O bunker de proteção contra o avanço
para o empoderamento das periferias fortalece o propósito de emancipação
individual; indiferente à luta contra a opressão e a exploração da
coletividade. Esta é tratada como esconderijo das “classes perigosas”,
compostas de vagabundos, bandidos e cúmplices, na ótica do Batalhão de
Operações Especiais (BOPE), da Polícia Militar. Salvo exceções, os pastores
compartilham a visão relativa a todos e todas “que não aceitam Deus”.
Sem canais abertos
para sublimar os esforços de conscientização e de engajamento do povo em um
projeto coletivo, o PT é empurrado para a institucionalidade. O vício da
burocratização — o mal histórico da organização política, apontado em estudo
clássico — sabota as instâncias internas e viola os estatutos. Não espanta que
os parlamentares criem os núcleos autônomos de militância em face da vida
partidária. No conjunto da representação política, a crítica do capitalismo
neoliberal tende à conciliação com o politicismo desconectado da economia. O
processo de dessindicalização reduz a influência positiva das lideranças do
trabalho sobre acontecimentos no partido e na sociedade civil.
• A esquerda e as periferias
João Quartim de Moraes
recupera as controvérsias do II Congresso do Partido Operário Social-Democrata
Russo (POSDR), fundado em 1898, sob a repressão czarista. O autor evoca o Que
Fazer (1902) e cita Um passo em frente e dois passos para trás (1904), o duo
leniniano das elaborações teóricas acerca da organização revolucionária dos
trabalhadores — ainda pertinentes para ir adiante.
Conforme registra com
convicção, Lênin: “O proletariado, na sua luta pelo poder, não tem outra arma
senão a organização. Dividido pela concorrência anárquica que reina no mundo
burguês, atirado ao abismo da miséria, do embrutecimento e da degenerescência,
o proletariado só pode tornar-se, e tornar-se-á, uma força invencível quando
sua unidade ideológica baseada em princípios do marxismo for cimentada pela
unidade da organização, que reúne milhões de trabalhadores”.
A linguagem usada para
o conceito de classe operária e a noção de sujeito revolucionário das
transformações antissistêmicas passaram por readequações, no último século.
Agora englobam novos setores sociais — as feministas, os antirracistas, os
ambientalistas. Não altera o essencial. A questão da organização segue atual.
Os partidos postulantes da sociabilidade livre de injustiças no regime
democrático devem assumir a lide organizativa e a empatia com os ofendidos e
humilhados, para construir a liberdade (privada e pública) e a igualdade (de
oportunidades e resultados). Numa enorme medida, os votos são apenas a extensão
do suor despendido na preparação dos embates.
O sociólogo Tiaraju
D’Andreas, coordenador do Centro de Estudos Periféricos, ligado ao campus da
zona leste da Unifesp, contesta o finalismo jogado sobre a utopia de quando em
quando. “O que chamamos esquerda é uma parte que acredita na justiça social. Muita
gente nas periferias é de esquerda, luta para que o mundo seja dessa maneira.
Isso inclui o movimento popular de moradia, o coletivo cultural, o movimento de
saúde, as lutas por educação e os trabalhadores sindicalizados. A superação do
momento que vivemos vai vir da população moradora das periferias, que pensa de
forma progressista, que não quer ver a roda da história virar para trás”. O rio
corre para o mar.
No entanto, falta uma
comunicação entre o aparato conceitual da esquerda e a cotidianidade das
pessoas sensíveis à problemática social. O circuito político interrompido há
quarenta anos precisa ser restaurado, com urgência e método. Não dá para
esperar um presente do Papa Francisco, que age mais pelo exemplo do que por
meio das estruturas eclesiásticas; pesadas como âncoras e com o milenar viés
conservador. Os partidos progressistas e suas federações têm de ativar a
imaginação.
Considerar que a
encruzilhada se resume à escolha entre o caminho do pragmatismo na direção do
centro político (liberal); ou o retorno virtuoso às raízes com independência de
classe sem alianças é simplificar a decisão e o desafio. Primeiro, não está claro
o que há de “pragmático” na associação orgânica às correntes limitadas ao
paradigma do Estado de direito democrático, que não põem em xeque o retrocesso
civilizacional do Consenso de Washington. Segundo, não está claro o que existe
de “virtude” em ignorar a dimensão institucional das lutas diárias por reformas
estruturais; como se a história tivesse aposentado os partidos em nome de um
movimentismo. Devagar com o andor.
Como no Louvor da
dúvida, de Bertolt Brecht: “A mais bela de todas as dúvidas / É quando os
enfraquecidos, desalentados, erguem a cabeça e / Deixam de crer / Na força de
seus opressores!” O balanço das eleições, além da fotografia positivista da
realidade, necessita orientar-se pela dialética dos valores normativos. Nas
urnas e ruas, entre os fatores que inibem mudanças estão duas grandes
fragilidades: da organização partidária e da interação com as resilientes
comunidades periféricas.
• Escolhas. Livres? Por Aray P. S Balbani
Às vésperas do segundo
turno das eleições municipais em muitas localidades, a polêmica sobre o
comportamento do eleitorado prossegue. Intelectuais e jornalistas esmiúçam as
causas do crescimento da direita e da extrema direita nas prefeituras e câmaras
municipais. Analistas políticos projetam consequências dos resultados
eleitorais nos municípios mais populosos em 2024 para a disputa presidencial de
2026.
Influenciadores
digitais opinam sobre o fenômeno estrondoso dos votos brancos e nulos e das
abstenções em mais um pleito no País, onde o voto ainda é obrigatório, mas, na
prática, a teoria é facultativa.
Militantes organizados
e outros cidadãos se perguntam como governantes escancaradamente incompetentes
ou políticos enroscados em casos de corrupção cabeludos ainda conseguem ser os
preferidos dos eleitores. Especialmente dos eleitores e eleitoras mais pobres e
prejudicados pela gestão pública ineficiente.
Louise Michel,
educadora francesa, encarcerada nos anos 1880 como militante anarquista, disse
ao amigo Paul Lafargue quando ele a visitou na prisão de Saint-Lazare: “Não se
queixe, eu sou mais livre que muitos que passeiam por aí a céu aberto; eles são
prisioneiros pelo pensamento; eles estão acorrentados às suas propriedades, aos
seus interesses por dinheiro, suas tristes necessidades de vida, eles estão
tomados ao ponto de não viverem, nem serem humanos, seres pensantes”.1
Vários fatos concretos
permitem aplicar a frase de Louise Michel ao Brasil de hoje. A começar do
aumento exponencial da violência política; não apenas com ofensas e dossiês
forjados contra adversários, mas também com atentados a tiros mirando
candidatos e candidatas à luz do dia, e cadeiradas ao vivo na TV.
Eleitores são coagidos
a silenciar e votar em candidatos ligados a milícias e outras organizações
criminosas. Políticos têm de pedir autorização para líderes do tráfico de
entorpecentes e de armas para realizar eventos de campanha em áreas dominadas
pelo crime. Nem aldeias indígenas escapam da vigilância opressora de drones do
crime estruturado.
O medo é indisfarçável
nos rostos dos miseráveis, cujos casebres na periferia e nas favelas estampam
cartazes vistosos de propaganda política de candidatos milionários que sempre
moraram em condomínios fechados com segurança privada. A política, cada vez
mais, tem se transformado em caso de psicologia e de polícia.
Até o “bico”
temporário de cabo eleitoral agitador de bandeira está em extinção. Windbanners
manufaturados em série substituem o trabalho humano para tremular fotos
retocadas e slogans dos candidatos nas esquinas e praças.
O recorde de denúncias
de assédio eleitoral nas empresas mostra que o discurso e a prática
colonialistas escravocratas estão mais vivos do que nunca no Brasil. Não faltam
serviçais pobres que se prestem ao papel de capatazes dos patrões contra seus
colegas de trabalho, tão explorados e desprezados quanto eles.
Dentre a classe média,
a consulta ao sistema público de prestação de contas das campanhas à Justiça
Eleitoral seria divertida se não fosse preocupante. Candidatos a vereadores por
um partido de oposição ao prefeito efetuam doações ao candidato… da situação.
Como assim?
Nas classes sociais
média alta e alta, a circulação a céu aberto, mesmo que em carros de luxo
blindados, não garante a liberdade de escolha no momento do voto secreto. Quem
depende de licenças e alvarás de funcionamento, incentivos fiscais municipais
ou fornecimento de bens ou serviços para o poder público sabe que há centenas
de olhos e orelhas indiscretas de coronéis políticos à espreita, prontos para
mexerem a língua e deflagrar represálias que afetem os lucros financeiros
privados. A aposta política do coronel pode ser vizinho(a) do(a)
eleitor(a)-empreendedor(a) no condomínio.
Ao fim e ao cabo, a
militância que tem consciência política resiste, enquanto, em muitos
municípios, a massa despolitizada, prisioneira de si mesma ou acorrentada a
interesses inconfessáveis, tende a perpetuar no poder quem rouba, mas nem
sempre faz alguma coisa que preste.
Parece que tudo é
mesmo uma questão de rabo: se está preso ou se é ele que balança o cachorro.
Fonte: A Terra é
Redonda
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