sábado, 26 de outubro de 2024

Luiz Marques: Atualidade da questão de organização

Falta comunicação entre o aparato conceitual da esquerda e a cotidianidade das pessoas sensíveis à problemática social. O circuito político interrompido há quarenta anos precisa ser restaurado, com urgência e método

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A editora Boitempo lançou em setembro, do corrente ano, um livro de João Quartim de Moraes — Lênin: uma introdução. A publicação, às vésperas de uma eleição monopolizada pelos temas municipais, propõe uma reflexão sobre Vladímir Ilyich Ulianov (1870-1924), o condutor da primeira revolução socialista no mundo. Na apresentação, Juliane Furno destaca que a iniciativa visa propiciar “o contato com a vida e a obra do grande revolucionário bolchevique”, desejando “que suas ideias e suas práticas deem vida e nova energia aos que ousam subverter a ordem”. Algo crucial em um momento de neoliberalismo consolidado e de ameaça do fascismo à democracia.

Variáveis exógenas são levantadas pelos partidos progressistas para explicar e atenuar os resultados negativos no pleito eleitoral. É costume abstrair os condicionamentos endógenos — para salientar: (a) as emendas parlamentares milionárias que, por si, estimulam o continuísmo político do atraso; (b) o custo exorbitante de campanha, na mesma proporção em que encurta o tempo de exposição no horário político de rádio e televisão, com evidente intenção de prejudicar as forças populares.

(c) A dificuldade de candidatos identificados com os movimentos reivindicatórios (MTST, Direitos Humanos) em ampliar o leque de interlocução com os eleitores, dados os índices de rejeição; (d) as contradições de partidos com uma tradição de centro-esquerda, tipo o PDT/CE, que com o acirramento da luta de classes rasgam o programa e se bandeiam rápido para a extrema direita.

Tais elementos ajudam a montar o mosaico político, em cada região. Mas não se pode esquecer os fatores que envolvem a relação da esquerda contemporânea com as comunidades periféricas, que se expandem em função da política econômica ainda hegemônica. Vide a crise nas relações do capital e trabalho, a desindustrialização, o desemprego premeditado, a terceirização, a precarização. Hoje é impossível pensar um projeto de transformação sem priorizar políticas que dialoguem, diretamente, com as demandas dos segmentos sociais subvalorizados, cuja insegurança alimentar (a fome) é um obstáculo permanente à sua própria reprodução social. O sistema mói corpos, almas e esperanças.

A guinada do Vaticano na década de 1980, sob o Papa João Paulo II e o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Aloisius Ratzinger, desencadeou um ataque às atividades pastorais das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Teologia da Libertação, a qual desde então sofre perseguições. Os heréticos emuladores da aproximação da Igreja de Cristo com os pobres, nas favelas e bairros abandonados pelo progresso, foram atirados na fogueira inquisitorial. O “silêncio obsequioso” imposto ao frei Leonardo Boff é o símbolo da batalha, perdida. Com o que se fecham os espaços institucionais e são suspensos os apoios à inovadora e corajosa vertente do catolicismo.

A presença de agentes transformadores nos ambientes não-oficiais das metrópoles é bloqueada, e a entrada dos carismáticos evangélicos e seus templos facilitada pela legislação. Eis o legado do Papa polonês anticomunista. O bunker de proteção contra o avanço para o empoderamento das periferias fortalece o propósito de emancipação individual; indiferente à luta contra a opressão e a exploração da coletividade. Esta é tratada como esconderijo das “classes perigosas”, compostas de vagabundos, bandidos e cúmplices, na ótica do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), da Polícia Militar. Salvo exceções, os pastores compartilham a visão relativa a todos e todas “que não aceitam Deus”.

Sem canais abertos para sublimar os esforços de conscientização e de engajamento do povo em um projeto coletivo, o PT é empurrado para a institucionalidade. O vício da burocratização — o mal histórico da organização política, apontado em estudo clássico — sabota as instâncias internas e viola os estatutos. Não espanta que os parlamentares criem os núcleos autônomos de militância em face da vida partidária. No conjunto da representação política, a crítica do capitalismo neoliberal tende à conciliação com o politicismo desconectado da economia. O processo de dessindicalização reduz a influência positiva das lideranças do trabalho sobre acontecimentos no partido e na sociedade civil.

•        A esquerda e as periferias

João Quartim de Moraes recupera as controvérsias do II Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), fundado em 1898, sob a repressão czarista. O autor evoca o Que Fazer (1902) e cita Um passo em frente e dois passos para trás (1904), o duo leniniano das elaborações teóricas acerca da organização revolucionária dos trabalhadores — ainda pertinentes para ir adiante.

Conforme registra com convicção, Lênin: “O proletariado, na sua luta pelo poder, não tem outra arma senão a organização. Dividido pela concorrência anárquica que reina no mundo burguês, atirado ao abismo da miséria, do embrutecimento e da degenerescência, o proletariado só pode tornar-se, e tornar-se-á, uma força invencível quando sua unidade ideológica baseada em princípios do marxismo for cimentada pela unidade da organização, que reúne milhões de trabalhadores”.

A linguagem usada para o conceito de classe operária e a noção de sujeito revolucionário das transformações antissistêmicas passaram por readequações, no último século. Agora englobam novos setores sociais — as feministas, os antirracistas, os ambientalistas. Não altera o essencial. A questão da organização segue atual. Os partidos postulantes da sociabilidade livre de injustiças no regime democrático devem assumir a lide organizativa e a empatia com os ofendidos e humilhados, para construir a liberdade (privada e pública) e a igualdade (de oportunidades e resultados). Numa enorme medida, os votos são apenas a extensão do suor despendido na preparação dos embates.

O sociólogo Tiaraju D’Andreas, coordenador do Centro de Estudos Periféricos, ligado ao campus da zona leste da Unifesp, contesta o finalismo jogado sobre a utopia de quando em quando. “O que chamamos esquerda é uma parte que acredita na justiça social. Muita gente nas periferias é de esquerda, luta para que o mundo seja dessa maneira. Isso inclui o movimento popular de moradia, o coletivo cultural, o movimento de saúde, as lutas por educação e os trabalhadores sindicalizados. A superação do momento que vivemos vai vir da população moradora das periferias, que pensa de forma progressista, que não quer ver a roda da história virar para trás”. O rio corre para o mar.

No entanto, falta uma comunicação entre o aparato conceitual da esquerda e a cotidianidade das pessoas sensíveis à problemática social. O circuito político interrompido há quarenta anos precisa ser restaurado, com urgência e método. Não dá para esperar um presente do Papa Francisco, que age mais pelo exemplo do que por meio das estruturas eclesiásticas; pesadas como âncoras e com o milenar viés conservador. Os partidos progressistas e suas federações têm de ativar a imaginação.

Considerar que a encruzilhada se resume à escolha entre o caminho do pragmatismo na direção do centro político (liberal); ou o retorno virtuoso às raízes com independência de classe sem alianças é simplificar a decisão e o desafio. Primeiro, não está claro o que há de “pragmático” na associação orgânica às correntes limitadas ao paradigma do Estado de direito democrático, que não põem em xeque o retrocesso civilizacional do Consenso de Washington. Segundo, não está claro o que existe de “virtude” em ignorar a dimensão institucional das lutas diárias por reformas estruturais; como se a história tivesse aposentado os partidos em nome de um movimentismo. Devagar com o andor.

Como no Louvor da dúvida, de Bertolt Brecht: “A mais bela de todas as dúvidas / É quando os enfraquecidos, desalentados, erguem a cabeça e / Deixam de crer / Na força de seus opressores!” O balanço das eleições, além da fotografia positivista da realidade, necessita orientar-se pela dialética dos valores normativos. Nas urnas e ruas, entre os fatores que inibem mudanças estão duas grandes fragilidades: da organização partidária e da interação com as resilientes comunidades periféricas.

 

•        Escolhas. Livres? Por Aray P. S Balbani

Às vésperas do segundo turno das eleições municipais em muitas localidades, a polêmica sobre o comportamento do eleitorado prossegue. Intelectuais e jornalistas esmiúçam as causas do crescimento da direita e da extrema direita nas prefeituras e câmaras municipais. Analistas políticos projetam consequências dos resultados eleitorais nos municípios mais populosos em 2024 para a disputa presidencial de 2026.

Influenciadores digitais opinam sobre o fenômeno estrondoso dos votos brancos e nulos e das abstenções em mais um pleito no País, onde o voto ainda é obrigatório, mas, na prática, a teoria é facultativa.

Militantes organizados e outros cidadãos se perguntam como governantes escancaradamente incompetentes ou políticos enroscados em casos de corrupção cabeludos ainda conseguem ser os preferidos dos eleitores. Especialmente dos eleitores e eleitoras mais pobres e prejudicados pela gestão pública ineficiente.

Louise Michel, educadora francesa, encarcerada nos anos 1880 como militante anarquista, disse ao amigo Paul Lafargue quando ele a visitou na prisão de Saint-Lazare: “Não se queixe, eu sou mais livre que muitos que passeiam por aí a céu aberto; eles são prisioneiros pelo pensamento; eles estão acorrentados às suas propriedades, aos seus interesses por dinheiro, suas tristes necessidades de vida, eles estão tomados ao ponto de não viverem, nem serem humanos, seres pensantes”.1

Vários fatos concretos permitem aplicar a frase de Louise Michel ao Brasil de hoje. A começar do aumento exponencial da violência política; não apenas com ofensas e dossiês forjados contra adversários, mas também com atentados a tiros mirando candidatos e candidatas à luz do dia, e cadeiradas ao vivo na TV.

Eleitores são coagidos a silenciar e votar em candidatos ligados a milícias e outras organizações criminosas. Políticos têm de pedir autorização para líderes do tráfico de entorpecentes e de armas para realizar eventos de campanha em áreas dominadas pelo crime. Nem aldeias indígenas escapam da vigilância opressora de drones do crime estruturado.

O medo é indisfarçável nos rostos dos miseráveis, cujos casebres na periferia e nas favelas estampam cartazes vistosos de propaganda política de candidatos milionários que sempre moraram em condomínios fechados com segurança privada. A política, cada vez mais, tem se transformado em caso de psicologia e de polícia.

Até o “bico” temporário de cabo eleitoral agitador de bandeira está em extinção. Windbanners manufaturados em série substituem o trabalho humano para tremular fotos retocadas e slogans dos candidatos nas esquinas e praças.

O recorde de denúncias de assédio eleitoral nas empresas mostra que o discurso e a prática colonialistas escravocratas estão mais vivos do que nunca no Brasil. Não faltam serviçais pobres que se prestem ao papel de capatazes dos patrões contra seus colegas de trabalho, tão explorados e desprezados quanto eles.

Dentre a classe média, a consulta ao sistema público de prestação de contas das campanhas à Justiça Eleitoral seria divertida se não fosse preocupante. Candidatos a vereadores por um partido de oposição ao prefeito efetuam doações ao candidato… da situação. Como assim?

Nas classes sociais média alta e alta, a circulação a céu aberto, mesmo que em carros de luxo blindados, não garante a liberdade de escolha no momento do voto secreto. Quem depende de licenças e alvarás de funcionamento, incentivos fiscais municipais ou fornecimento de bens ou serviços para o poder público sabe que há centenas de olhos e orelhas indiscretas de coronéis políticos à espreita, prontos para mexerem a língua e deflagrar represálias que afetem os lucros financeiros privados. A aposta política do coronel pode ser vizinho(a) do(a) eleitor(a)-empreendedor(a) no condomínio.

Ao fim e ao cabo, a militância que tem consciência política resiste, enquanto, em muitos municípios, a massa despolitizada, prisioneira de si mesma ou acorrentada a interesses inconfessáveis, tende a perpetuar no poder quem rouba, mas nem sempre faz alguma coisa que preste.

Parece que tudo é mesmo uma questão de rabo: se está preso ou se é ele que balança o cachorro.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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