Aborto, uma questão de direitos, cidadania e saúde
Enquanto a América Latina avança na
descriminalização do abortamento, previsto na Argentina, Colômbia, Cuba,
México, Uruguai e, no contexto internacional, este direito é reconhecido pela
maioria absoluta dos países, o Brasil se destaca por ter uma das legislações
mais restritivas com relação aos permissivos legais para a interrupção
voluntária da gravidez, só permitida em função de gravidez por estupro, feto
anencefálico ou risco de vida da gestante e, mesmo nestes casos, a gestante
enfrenta inúmeros obstáculos para o seu atendimento pelo sistema de saúde.
Consequência direta dessa restrição, o aborto inseguro é a quarta causa da
mortalidade materna, que alcança níveis inaceitáveis em nosso país e afeta
principalmente as mulheres negras e pobres. Se não vão a óbito ocupam
porcentagem significativa dos leitos ginecológicos dos hospitais.
Cerca de dois milhões de mulheres foram internadas
em consequência de abortos inseguros segundo a Pesquisa Nacional do Aborto, de
2021. É evidente que esta situação é um problema de saúde publica e acarreta
significativos custos sociais e econômicos para o país . Quantas mães vítimas
do abortamento clandestino perdem suas vidas deixando filhos pequenos
desamparados? Quantas meninas não chegam a vida adulta ? E quantas sofrem
consequências emocionais e severos agravos a saúde ?
O aborto não deve ser visto como como se fosse um
ponto fora do ciclo reprodutivo. Esta mesma pesquisa indica que uma em cada
sete mulheres brasileiras até 40 anos afirmou ja ter feito um aborto, sendo que
81% delas disse ter uma religião. De fato, a possibilidade de engravidar
acompanha as meninas e as mulheres desde sua primeira menstruação.
A vida sexual e reprodutiva requer o acesso à
informação e a métodos modernos de contracepção, bem como a atenção à gestação,
ao parto e puerpério, a infertilidade, às infecções sexualmente transmissíveis,
à menopausa e ao direito a interromper a gestação de forma segura, como
recomenda a Organização Mundial da Saúde. Estas são demandas históricas
inscritas já em 1986, na Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes.
É fundamental que as mulheres brasileiras sejam
atendidas pelo sistema de saúde publica ,para o qual contribuem, como cidadãs
plenas de direito e não relegadas ao espaço sombrio e perigoso do mundo do
crime, da clandestinidade do aborto inseguro, desprovidas de sua dignidade
humana, vitimas de julgamento moral, violadas em seu direito constitucional a
saúde e a integridade física e esmagadas pelo silencio cumplice de parcela
significativa da sociedade, que prefere não se manifestar mesmo se,
intimamente, apoia o direito de interromper a gestação em determinadas
circunstancias.
Decidir livre de coerção se, quando e quantos
filhos ter é um direito inalienável reconhecido pela Constituição Federal do
Estado Brasileiro, e afirmado em compromissos internacionais, e que deve ser
garantido através de leis e políticas públicas. Entretanto o exercício deste direito
enfrenta obstáculos poderosos em uma disputa cruel na qual mulheres e meninas
tem sido perdedoras. Os princípios de autonomia e justiça reprodutiva, tem sido
escamoteados em nome de argumentos morais que não admitem o pluralismo
democrático .
A ministra Rosa Weber em seu recente voto histórico
a favor da descriminalização do aborto até as 12 primeiras semanas conclama a
que , frente a um quadro patriarcal e discriminatório com as mulheres, que
perdura mais de oito décadas , “impõe-se a colocação desse quadro
discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais ,com
consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito”.
Entretanto, o debate nacional sobre esta realidade
crucial da vida reprodutiva das mulheres , meninas e pessoas com capacidade de
gestar ignora a dimensão de saúde publica e de opção reprodutiva. E além de
ignorar esta realidade e este direito, está contaminado por um viés autoritário
e patriarcal, apoiado em valores morais e religiosos que pretendem excluir o
direito a saúde, garantido na Constituição e tutelar as mulheres como se não
fossem cidadãs plenamente capacitadas a tomar decisões responsáveis sobre suas
vidas reprodutivas.
Neste debate, a dimensão do respeito a dogmas e
religiões está contemplado pois, é importante lembrar que nenhuma mulher pode
ser obrigada a fazer um aborto. Portanto todas as pessoas que se opõem a
interrupção da gestação por motivos religiosos, por costumes ou quaisquer outra
razão tem sua opção respeitada. Mas e o restante da população que considera
que, em determinada circunstância, interromper uma gestação é a única
possibilidade frente a enorme responsabilidade da maternidade?
Ao analisar a ADPF442 o STF estará ,de fato,
reconhecendo ou negando o caráter laico ,plural e democrático do Estado
brasileiro posto que, sendo inegável a dimensão de saúde publica do abortamento
inseguro, resta discutir se, em nome de determinadas crenças religiosas, cabe a
este Estado laico que rege uma sociedade plural e democrática, negar o direito
de opção e violar o direito a saúde, a vida e a cidadania plena de todas as
mulheres.
Fonte:
Por Jacqueline Pintaguy, socióloga, coordenadora executiva da Cidadania,
Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), membro do Conselho Editorial da
revista Health and Human Rights da Escola de Saúde Pública de Harvard e Integra
o Comité de Mortalidade Materna do Município do Rio de Janeiro, para Cprreio
Braziliense
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