Há 35 anos, um desempregado sequestrou um avião — seu plano era atingir
o Palácio do Planalto e matar o presidente
Parece enredo de filme de Hollywood: um tratorista
fica desempregado e, revoltado com o contexto sociopolítico do país, decide
sequestrar um avião com o objetivo de fazê-lo colidir com a sede do governo
federal, matando o presidente.
Parece enredo de filme de Hollywood, mas vai ser um
filme brasileiro — ‘O Sequestro do Voo 375’ tem estreia prevista para dezembro.
Mas vamos falar sobre o filme depois. Primeiro, a
fantástica história que abalou o país em 29 de setembro de 1988. Foi no voo
Vasp 375, que fazia a rota Porto Velho a Rio de Janeiro com quatro escalas:
Cuiabá, Brasília, Goiânia e Belo Horizonte, com um avião Boeing 737-317.
Naquele dia, contudo, houve pânico entre os 110 a
bordo: um tratorista desempregado de 28 anos, o maranhense Raimundo Nonato
Alves da Conceição, armado com um revólver calibre 32, anunciou que estava
sequestrando a aeronave. E seu plano era arremessá-lo contra o Palácio do
Planalto.
Em sua mochila, Conceição portava 90 balas para
recarregar a arma.
Para o tratorista, a culpa pela situação econômica
que havia feito com que ele perdesse seu emprego era do presidente, José
Sarney. De acordo com dados do Dieese-Sead, naquele ano o desemprego no Brasil
oscilou entre 9% e 11%. A inflação era galopante: em média, 17,7% ao mês.
Conceição trabalhava em empreiteiras de construção
civil. Comprou a arma e embarcou no último trecho do voo, que decolou às 10h52
no Aeroporto de Confins, região de Belo Horizonte
• Tiros
e morte
Vinte minutos depois, já no espaço aéreo do Rio,
começou sua ação. Deixando claro que se tratava de um sequestro, ele disse que
queria entrar na cabine de comando e baleou um comissário que tentou impedi-lo.
Conceição disparou vários tiros contra a porta da cabine — um deles atingiu
outro comissário, outro acertou o painel do avião.
Com receio de que a situação se tornasse ainda mais
descontrolada, a tripulação decidiu ceder a ele acesso à cabine. Sem que o
sequestrador notasse, o piloto, Fernando Murilo de Lima e Silva (1944-2020)
conseguiu passar ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego
Aéreo (Cindacta) o código correspondente à “interferência ilícita” ocorrendo a
bordo.
Quando o copiloto, Salvador Evangelista, tentava se
comunicar de volta com o Cindacta pelo rádio, Conceição o baleou na nuca,
matando-o na hora. Com a arma apontando para o piloto Lima e Silva, o
sequestrador então determinou seu plano: que o avião retornasse para Brasília.
O comandante foi hábil e conseguiu dissuadi-lo da
ideia de chocar o Boeing contra o Palácio do Planalto. Argumentou que não havia
condições de visibilidade para isso. Mas Conceição não topou que o avião
pousasse no aeroporto de Brasília — queria que fosse em São Paulo.
Não havia combustível para tanto. Depois de
manobras ousadas — para desequilibrar o sequestrador — e com um dos motores
falhando, Lima e Silva conseguiu pousar no Aeroporto Internacional Santa
Genoveva, em Goiânia, às 13h45.
Foram horas de negociação em terra. Às 19h,
Conceição desceu da aeronave usando o piloto como escudo humano. Foi alvejado
com dois tiros na altura dos rins por agentes de elite da Polícia Federal. Uma
terceira bala também atingiu o piloto, na perna.
Encaminhado a um hospital, o sequestrador passou
por uma cirurgia de emergência e foi anunciado que não corria risco de vida.
Dias depois, contudo, morreu no hospital — o laudo apontou que em decorrência
de anemia falciforme, sem relação com o fato de ele ter sido baleado.
• Protocolos
de segurança
O caso se tornou um marco histórico da aviação
brasileira. “Difícil dizer se houve erros quando há alguém mal-intencionado e
uma circunstância inédita acontece”, comenta à BBC News Brasil a professora
Larissa Ferrer Branco, arquiteta que estuda operações aeroportuárias e coordena
cursos de engenharia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Em todas as indústrias e setores aprendemos sempre
com casos novos, cenários improváveis ou até mesmo impensáveis. A segurança na
aviação é altíssima há muitas décadas e os indicadores só melhoram”, acrescenta
ela, lembrando que “é injusto julgar fatos do passado com o conhecimento que
temos hoje”.
“Mas a rigor, pode-se dizer que os fatores que
contribuíram para o caso dificilmente voltariam a se repetir hoje em dia, com a
invasão da cabine de comando de uma aeronave comercial por um passageiro
armado”, frisa Branco.
“É praticamente impossível pensar que o aparato de
segurança aeroportuária atual seria permeável a ponto de alguém entrar armado a
bordo sem conhecimento do comandante da aeronave, sem seguir rígidos protocolos
de verificação. Além do mais, desde depois dos ataques de 11 de setembro [de
2021, nos Estados Unidos], as portas das cabines permanecem fechadas
praticamente todo o tempo, só são abertas mediante protocolos muito rigorosos e
são blindadas.”
Investigador de acidentes aeronáuticos e gestor de
crises, Mauricio Pontes, CEO da C5i Crisis Consulting, explica à reportagem que
um sequestro como este não aconteceria nos dias de hoje por conta dos
protocolos de segurança implementados de lá para cá.
“A começar pela revista no embarque, equipamentos,
regras para transporte de arma a bordo e treinamentos específicos”, enumera
ele, lembrando que isso tudo “poderia ter feito diferença”. “Mas a cultura da
época não contemplava esses cenários no país”, comenta.
Piloto-aluno na época, Pontes recorda que viu a
cobertura televisiva do acontecimento. Ele acredita que os méritos foram do
piloto para que uma tragédia não ocorresse.
“Acho que toda a atuação do comandante, com frieza,
perícia e raciocínio sob pressão, foram decisivos”, diz. “A crise em si foi um
caos. O presidente [da República] sequer foi retirado de seu gabinete, prédios
não foram evacuados, enfim… Difícil falar em erros e acertos em um episódio com
um enredo tão complexo.”
Segundo ele, pilotos na época recebiam um
treinamento muito básico sobre como se comportar em casos assim.
“Conheciam-se regras sobre como agir em caso de
interceptação e uso do transponder para informar aos órgãos de controle um ato
de interferência ilícita”, cita. “Não era uma preocupação a ponto de tirar um
tripulante por mais horas do cockpit para um treinamento específico.”
Atualmente, a questão é tratada com mais cuidado,
com treinamentos periódicos que preparam pilotos e comissários para eventuais
enfrentamentos, “desde casos de passageiros indisciplinados que põem em risco a
segurança do voo até situações mais específicas e potencialmente fatais, como
sequestros”.
“O comandante [do voo da Vasp no caso] foi um
exemplo de profissional e se tornou um herói. Mesmo com o primeiro oficial [o
copiloto] baleado, ele foi hábil e extremamente equilibrado para conduzir o
sequestrador ao longo da ocorrência, evitando um desfecho que poderia ser
catastrófico”, comenta a professora Branco.
“A aeronave pouso e os passageiros e tripulantes
saíram ilesos, assim como prédios públicos e pessoas em terra, que eram alvo do
sequestrador. Entendo que ele [o piloto Lima e Silva] acertou em tudo: a forma
como conduziu uma situação extremamente incerta e grave, as manobras que fez
para desestabilizar o sequestrador, a perícia e o profissionalismo, e a
capacidade de trazer a aeronave de volta ao solo com segurança”, acrescenta
ela.
Pontes lembra, contudo, que as melhorias de
segurança de voo só foram implementadas de fato após o 11 de setembro, e não
depois desse fato brasileiro.
“O assunto [do voo da Vasp] teve a repercussão
típica dos grandes eventos na mídia por um curto período, mas foi rapidamente
esquecido. Nada significativo de fato ocorreu em termos de procedimentos, ao
que eu me lembro”, comenta. “Tanto que, em julho de 1997, um homem entrou
facilmente [com um explosivo] no voo TAM 283 entre São José dos Campos e São
Paulo sem ter passado pelo raio-X e a explosão a bordo matou um passageiro.”
O especialista acrescenta que tal ocasião
específica deixou “a falta de segurança dos aeroportos brasileiros em xeque e a
necessidade de inspeção por raio-X virou um tema levado mais a sério”.
“Mas só mesmo após o 11 de setembro houve uma
revolução na segurança da aviação brasileira”, acrescenta. “Mais recentemente, após
o evento com o Germanwings 9525, quando o copiloto jogou a aeronave
propositalmente contra o solo [em março de 2015, nos Alpes franceses],
protocolos mais rígidos sobre acesso à cabine de pilotos e outras medidas foram
rapidamente colocados em prática no mundo todo, incluindo o Brasil.”
Branco concorda. “De 1988 para cá a aviação
comercial mundial, e não só a brasileira, mudou bastante em termos de prevenção
a sequestros”, ressalta ela. “Instalações de um enorme aparato de segurança
para embarque dos passageiros nos aeroportos, proibição de acesso de
passageiros nas cabines de comando durante os voos, inúmeros procedimentos
operacionais antes, durante e depois dos voos para impedir o acesso de pessoas
estranhas às operações nas áreas onde as aeronaves estacionam quando chegam e
antes de partirem são só algumas dessas mudanças.”
“Mas nenhuma delas tem correlação direta com o caso
do Vasp 375. Essas mudanças ocorreram mais tarde, após 11 de setembro de 2001.
De 2001 para cá podemos dizer que as áreas de segurança mudaram completamente
em relação ao que ocorria antes”, destaca a especialista.
• Um
filme brasileiro de ação
A ideia do filme, que se chamará ‘O Sequestro do
Voo 375’ veio em consequência a um outro “quase acidente”. No caso, envolvendo
o jornalista Constâncio Viana Coutinho, que em 2011, atuando como
correspondente da TV Record na África, esteve em um voo que precisou fazer uma
manobra arriscada em Moçambique.
“Foi uma situação bem séria, com o avião apontando
o bico para baixo. Achei que aquele momento seria o fim de minha vida. Foi tão
traumático que eu desenvolvi síndrome do pânico e desde então tenho muita
dificuldade para entrar em avião”, conta ele, à reportagem.
O fato fez de Coutinho um obsessivo pesquisador de
acidentes aéreos. E então, recuperando o caso da Vasp, ele passou a esboçar um
roteiro para um documentário.
“Mas não foi possível fazê-lo, não consegui apoio,
financiamento”, relata.
Mais tarde, contudo, seu roteiro acabou caindo nas
graças do roteirista de cinema Lusa Silvestre. “E resolvemos que seria um
filme”, diz Coutinho. “Ele [Silvestre] foi o primeiro cara que entrou no
negócio, disse que estava dentro. Então eu passei a buscar outras pessoas para
contar as lembranças do acontecimento.”
Coutinho ressalta que o filme “é uma homenagem
direta ao piloto”, que teve “papel heróico” reconhecido por “todos os
passageiros”. “Ele pousou praticamente sem combustível e fazendo manobras
impensadas. Morreu [em 2020] com uma grande mágoa porque mesmo depois de tudo
oque ele fez, de ter salvado tantas vidas, o Sarney nunca reconheceu isso,
nunca agradeceu.”
Com o filme prestes a ser lançado, o jornalista
pretende também publicar um livro a respeito. O título provisório é ‘Nas Mãos
Certas’.
Em conversa com a BBC News Brasil, o roteirista
Silvestre enfatiza que o que será visto nas telas “é uma história real”. “A
gente não mudou a história. O que fizemos foi lançar um pouco mais de luz sobre
algum personagem aqui e ali, contar um pouco mais, imaginar os subterrâneos do
governo federal enquanto estava-se lidando com o sequestro”, comenta. “Mas a
história é real, inclusive as acrobacias feitas pelo avião.”
“E incrivelmente teve um cara mesmo que sequestrou
um avião para jogar no Palácio do Planalto”, resume.
CEO do Estúdio Escarlate, a produtora Joana Henning
conta à reportagem que o maior desafio empreendido pela equipe foi fazer “um
tipo de filme que nunca tinha sido feito no Brasil” — no caso, uma história de
ação envolvendo um avião. “As referências de desenho de produção eram todas
internacionais. Tivemos de criar soluções alternativas com menos recursos,
conseguindo dar qualidade para a cena de ação que o filme merecia”, destaca,
revelando que para isso foram empregadas técnicas circenses e recursos das
indústrias do carnaval e da publicidade.
O diretor do filme, Marcus Baldini lembra que “esse
é o 11 de setembro brasileiro, o quase 11 de setembro brasileiro”.
“E é muito surpreendente que ninguém conheça essa
história”, diz ele, à BBC News Brasil. “O filme é um jeito de contar para as
pessoas uma história muito importante que estava esquecida, sobre um herói
brasileiro que salvou a vida de 110 pessoas com suas habilidades e capacidade
de manter o controle. E isso foi importante para que essa história tivesse um
final minimamente feliz.”
O especialista Pontes reconhece que se trata de uma
história por muito tempo relegada ao esquecimento. “O sequestro do Vasp 375 foi
sumariamente apagado da memória nacional. Não teve a repercussão internacional
que merecia, tampouco”, diz.
Fonte: BBC News Brasil
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