No campo brasileiro, a agricultura da morte
Existem atividades e elementos econômicos e
políticos intensamente imbricados que afetam a vida da população de países, em
especial os subdesenvolvidos como o Brasil. Entre estes, a relação entre fome,
tipo de agricultura predominante, sistema de distribuição alimentar, acesso à
terra e proteção à biodiversidade, que são objeto de muitos estudos.
As crises global e nacional da fome devem ser
enfrentadas sob uma perspectiva geopolítica reconhecendo as causas nas
deficiências do próprio sistema alimentar globalizado. Este sistema integra uma
cadeia mercantil muito complexa, sem transparência, interligada e verticalizada
pelo controle corporativo desde o plantio até a comercialização. Ele não busca
produzir alimentos, nem os concebe como um direito humano elementar, nem visa
segurança, qualidade e diversidade nutricional em seus produtos.
O véu da hipocrisia já foi desvendado. Em nível
mundial, existem resistências de segmentos sociais, povos indígenas e
organizações da sociedade civil que lutam para mudar os sistemas alimentares e
fortalecer o caráter democrático e multilateral da Organização das Nações
Unidas – ONU. Esta também está sendo assediada pelo poder corporativo para
manter os sistemas alimentares industriais (ou sistema ambiental globalizado) e
impedir as mudanças produzidas pela luta pela agroecologia, defesa da
biodiversidade e outras campanhas na direção da soberania alimentar.
Com o título “Para resolver a crise global da fome,
é essencial transformar fundamentalmente nossos sistemas alimentares no
interesse das pessoas e do planeta”, foi editada a “Declaração da Resposta
Autônoma dos Povos à Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares+2”, de 20 de
julho de 2023. Foi motivada pelo fato de a Cúpula das Nações Unidas sobre
Sistemas Alimentares (UNFSS) não conseguir fazer cumprir os direitos humanos e
ter minado conquistas de uma governança alimentar global mais democrática, como
o Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS) da ONU e sua face política – o
Painel de Especialistas de Alto Nível (HLPE). Consta, ao final da declaração,
que: “nesses tempos de crises múltiplas e interligadas, é mais urgente do que
nunca que os governos e as Nações Unidas ouçam as vozes dos grupos mais
afetados e apoiem suas demandas e esforços para uma transformação genuína dos
sistemas alimentares em favor das pessoas e do planeta, com base no respeito a
todos os direitos humanos e no avanço da agroecologia, da soberania alimentar,
da biodiversidade, da justiça e diversidade de gênero, da ação dos jovens, da
justiça climática, da justiça econômica e social, em todas as dimensões dos
sistemas alimentares”.
* * *
A partir de 1986, o Banco Mundial rompeu com o
conceito do direito à alimentação da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948. Nos artigos 3º e 25º, esta afirma: “Toda pessoa tem direito a um
padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, e,
especialmente, a alimentação”. Esta mudança foi feita quando o banco redefiniu
o conceito de segurança alimentar para “capacidade de adquirir alimentos” (“the
ability to purchase food”). Os EUA, por seu departamento de agricultura,
mercantilizou o conceito de segurança alimentar mudando para commodity e
declarou que o fornecimento do alimento funciona melhor quando regulado pelo
mercado mundial. A mudança foi institucionalizada na metade dos anos 1990,
quando 123 países firmaram o “Agreement on Agriculture”, um
protocolo da Organização Mundial do Comércio – OMC que consagrava o “livre
comércio” como imprescindível à obtenção de segurança alimentar.
Assim, a produção de alimentos, também, no Brasil
passou a ser regida pelas regras da importação/exportação de grãos ao sabor do
comércio internacional de commodities. No contexto do capitalismo
monopolista mundializado, segundo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, a agricultura
“está estruturada sobre três pilares: a produção de commodities, as
bolsas de mercadorias e de futuros e os monopólios mundiais. Primeiro, visou
transformar toda produção de agropecuária, silvicultura e extrativista, em
produção de mercadorias para o mercado mundial. Portanto, a produção de
alimentos deixou de ser questão estratégica nacional, e passou a ser mercadoria
a ser adquirida no mercado mundial onde quer que ela seja produzida” (OLIVEIRA,
2012).Segundo a Comissão “The Lancet”, o sistema alimentar globalizado está
adoecendo a humanidade com as variadas formas de má desnutrição, incluindo
obesidade, subnutrição e outros riscos dietéticos”.
Por sua vez, as commodities, segundo
Luiz Marques: “são produto de monoculturas tóxicas cultivadas em grandes
propriedades, voltadas para os mercados globais e controladas por uma complexa
cadeia corporativo-financeira extremamente concentrada”. Esta rede abrange todo
o complexo de atividade econômica, da agroquímica e da bioengenharia (sementes,
agrotóxicos, fertilizantes industriais) ao maquinário, à comercialização, ao
transporte, ao (ultra)processamento industrial e, por fim, ao estabelecimento
do sistema de preços, onde a especulação financeira na “Chicago Mercantile
Exchange” tem um papel crescente (MARQUES, 2023).
As corporações que dominam a agricultura
subordinada ao sistema alimentar globalizado visam cada vez mais lucro e não
priorizam as diretrizes internas de duas decisões brasileiras: a Política
Nacional de Mudança do Clima e a Política Nacional do Meio Ambiente, que o
Brasil deveria fazer cumprir, por conta de seus biomas protegidos e a
biodiversidade mais rica do planeta. Os princípios elencados na Lei 12.187/2009,
da precaução, da prevenção, da participação cidadã, do desenvolvimento
sustentável e o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas,
não têm real significado para muitos representantes do modelo agroindustrial.
Na execução, as ações e as medidas adotadas deveriam levar em conta o
cumprimento de objetivos, onde o desenvolvimento sustentável é condição
essencial para o enfrentamento das alterações climáticas e deve conciliar o
atendimento às necessidades das populações e comunidades (individuais e comuns)
no território nacional. Em acréscimo, as ações de âmbito nacional deveriam
estar integradas com as ações no âmbito estadual e municipal por entidades
públicas e privadas.
O enfrentamento da fome no Brasil está distante
desses objetivos e fica difícil justificar política e moralmente a fome em
parcela significativa da população no país que exporta quantidade enorme de
grãos e cujo lucro beneficia poucos grupos.
Responsável pela criação da Organização das Nações
Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO em 1945, Josué de Castro
empenhou-se em analisar o fenômeno da fome numa perspectiva ecológica –
biológica, social, cultural e política – e também como um problema nacional e
mundial. Estamos nas mesmas condições que Castro denunciava: a questão
geopolítica contribuindo para a fome e a degradação do meio ambiente.
(PORTO-GONÇALVES, 2004).
A tendência do fenômeno da fome é apresentada por
Luiz Marques com base no Mapa da Fome no Brasil. Entre 2001 e 2014, existiam
políticas públicas que reduziram sua incidência com a diminuição da pobreza em
75%, como o Programa da Bolsa Família, crescimento real do salário mínimo
(71,5%) e a merenda escolar para 43 milhões de crianças e adolescentes. A crise
econômica de 2014 e a mudança nas políticas públicas no governo Bolsonaro
alteraram a tendência e a fome foi se espalhando pelo país, em parte agravada
pela pandemia e pelo aumento de produção de milho e de soja para exportação e
para ração animal (representando 80% de todos os grãos produzidos no país),
segundo Paulo Petersen, da Articulação Nacional de Agroecologia e da AP-TA.
Conforme a Rede Penssam, em dezembro de 2020, 116,8 milhões de pessoas sofriam
algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave); em 2021: 125,2
milhões de residentes em domicílios com “insegurança alimentar” e 33 milhões de
pessoas em situação de fome (insegurança alimentar grave). Houve maior
desigualdade de acesso aos alimentos nos domicílios rurais, 18,6% dos quais
enfrentam fome diária (MARQUES, 2023, p. 146). É válido criar uma articulação
nacional com o plano mundial, mas o problema da fome e dos alimentos terá
efetiva solução no plano nacional (PORTO GONÇALVES, 2004).
O agronegócio é fortemente subsidiado pelo governo,
tem incentivos nas linhas de crédito, nas pesquisas, sendo que os agrotóxicos,
que são a base do agronegócio, têm desoneração em tributos, impactando os
cofres públicos. Algumas das externalidades negativas do modelo do agronegócio
integrado ao sistema alimentar globalizado são: a) círculo viciosos entre o
impacto nas mudanças climáticas e do efeito das mudanças climáticas sobre a
agricultura; b) responsável pelo aumento da emissão de gases de efeito estufa;
c) privatização de extensas áreas do território nacional por grupos e
corporações, nacionais ou internacionais; d) perda da biodiversidade com a
monocultura, o uso intensivo de agrotóxicos e avanço da fronteira agrícola; e)
contaminação, pelos agrotóxicos, de pessoas em graus diversos, dos recursos
hídricos superficiais e subterrâneos e do solo, impactos maiores pela deriva
com a pulverização aérea, por avião ou por drone; f) desmatamentos e avanço
sobre terras de povos originários e sobre terras devolutas, cuja destinação
seria a reforma agrária; g) exclusão da terra dos trabalhadores do campo; h)
redução da variedade de produtos produzidos para alimentos, eliminando culturas
anteriores; i) desterritorialização dos produtos, distanciando as necessidades
da população onde são produzidos dos interesses dos intermediários e
investidores nas bolsas de valores; j) insegurança alimentar, por não suprir a
fome.
No aspecto ambiental, há registros de que o
processo moderno de colonização agrário/agrícola rompe o equilíbrio hídrico, em
especial nos biomas do Cerrado e da Amazônia, que são vizinhas e ecologicamente
complementares (PORTO-GONÇALVES, 2004). Quanto ao estoque de recursos
hídricos e a contribuição da água para as atividades econômicas e as famílias,
em 2020, para cada R$ 1,00 gerado pela economia foram consumidos 6,2 litros de
água, sendo que a agricultura representa mais da metade das retiradas de água
para uso consuntivo, segundo dados em “Contas econômicas ambientais da água:
Brasil: 2018-2020” (IBGE, Coordenação de Contas Nacionais).
Por outro lado, o uso intensivo de agrotóxicos
representa uma espécie de “infraestrutura” do agronegócio, por sua dependência
estrutural e econômica. Larissa Lies Bombardi fez um extenso levantamento de
dados sobre o uso dos agrotóxicos no Brasil e elaborou seu registro em
mapas. Eles destacam as substâncias químicas autorizadas para uso no
Brasil, enquanto sua aplicação é proibida na União Europeia por seu risco para
a saúde – o que não impede as exportações para o Sul Global… Também indicam a
extensão dos monocultivos ocupando áreas por determinada espécie no Brasil em
comparação com a área de vários países pequenos da União Europeia. Os dados
apresentados revelam a falta de proteção à saúde no Brasil diante das
exigências reduzidas para autorizações de uso de agrotóxicos no país com
diferenças percentuais excessivas no limite máximo de resíduo permitido no país
para determinada substância em comparação com as exigências locais pela
legislação da União Europeia (BOMBARDI, 2019).
Um estudo revela: a) para cada US$ 1,00 gasto com a
compra de agrotóxicos no Paraná, estimam-se gastos de U$$ 1,28 no tratamento de
intoxicações agudas, que ocorrem imediatamente após a aplicação da substância;
b) aqui não se incluem os gastos com saúde pública, decorrentes da exposição
constante aos venenos agrícolas; com o tratamento do câncer, por exemplo, ou da
poluição ambiental; com a seguridade social, em decorrência do afastamento por
doenças e morte de trabalhadores e populações contaminadas (SOARES &
PORTO).
Embora causando graves impactos à saúde das pessoas
e ao meio ambiente, o mercado de agrotóxicos tem benefícios fiscais, como
redução de 60% da base de cálculo do ICMS e isenção total do IPI para
determinados tipos, com redução da arrecadação tributária, o que gera fortes
críticas por setores da sociedade. O financiamento bancário incentiva o uso de
agrotóxico ao integrar essas substâncias ao requisito do pacote tecnológico
para a concessão de crédito rural (LORENZI). É o conceito errado de
produtividade para crédito rural, o “valor básico do custeio” – VBC, critério
bastante criticado por Ana Primavesi (PRIMAVESI, 1997).
Entre algumas características do agronegócio,
agricultura científica globalizada ou agroindústria, merecem destaque:
exacerbação da especialização das regiões na produção de commodities agrícolas;
liberalização dos mercados e imperativo da exportação (superávits comerciais) e
da circulação (mundialização do comércio); continuidade da expansão da
fronteira agrícola moderna e da concentração fundiária; volatilidade dos preços
das commodities decorrente das especulações financeiras
(Herreros, 2010) e a função especializada das cidades locais e intermediárias
para atender principalmente ao nexo produtivo do campo (Santos, 1994; Elias,
2007) (FREDERICO, 2013).
As regiões ocupadas pela agricultura de
“modernização globalizadora” funcionam, segundo Milton Santos, sob um regime
obedientea lógicas externas em relação à área de produção, criando lógicas
internas aos setores e às empresas locais interligadas e “de um ponto de vista
nacional, redefine-se uma diversidade regional que agora não é controlada nem
controlável, seja pela sociedade local, seja pela sociedade nacional,
subordinada ao impulso externo da competitividade globalizadora” (SANTOS, 2000,
pp. 93-94).
O Atlas do Agronegócio (2018) apresenta a posição
de 5º lugar do Brasil no ranking de países com desigualdade ao acesso à terra,
com 45% de sua área produtiva concentrada em propriedades com área superior a
mil hectares, num total de apenas 0.91% de imóveis rurais. Com base no Mapa do
Atlas da Agropecuária Brasileira/ImaFlora/GeoLab, a maior concentração de
grandes propriedades (mais de 15 módulos fiscais) no total de terras privadas
de cada Estado são em ordem decrescente: Mato Grosso do Sul, Goiás, Espírito
Santo, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais (ATLAS do agronegócio, 2018).
Os 66 mil imóveis declarados como “grande
propriedade improdutiva”, em 2010, totalizavam 175,9 milhões de hectares (=
1,75 milhões de km²), representando 1/5 do território do país (ATLAS DO
AGRONEGÓCIO, 2018), dados esses parecidos ao cálculo feito com base no Censo
Agropecuário 2017 sobre a existência aproximada de 160 milhões de hectares de
solo agrícola subutilizado ou sem uso e a necessidade de definir melhor o
critério de produtividade, diante do debate sobre o limite entre terra produtiva/improdutiva
e a pressão pela reforma agrária (DOWBOR, 2022).
A questão da subutilização de terras ganha reforço
com a notícia de 24 de agosto de 2023 sobre a captação de investimentos nos
primeiros anos de possível parceria entre o Banco do Brasil e Banco Mundial
para o maior programa de produção sustentável de alimentos do planeta,
desenvolvido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), prevendo
intensificar a produção livre de desmatamento, podendo dobrar a sua área de
produção pela conversão de até 40 milhões de hectares de pastagens de baixa
produtividade e com aptidão para a agricultura, sem avançar no território
preservado do país, com sequestro de carbono já nos primeiros anos.
O processo da ocupação e do uso da terra no Brasil
está mais acelerado e vem progressivamente se integrando às cadeias globais de
valor, muitas vezes em associação ao capital transnacional, visto que oito
grandes corporações exploram o mercado de terras para produção de commodities e
para especulação financeira. O avanço na expansão da fronteira agrícola se dá
especialmente com o plantio da monocultura da soja no Cerrado, o bioma com os
maiores índices de desmatamento no Brasil com estimativa de que 52% do bioma
tenha sido degradado ou sofrido perda irreversível, seguido pela Caatinga. A
concentração de terras em grandes propriedades é característica da região
Centro-Oeste (ATLAS do agronegócio, 2018).
A grilagem de terras de elevada quantidade de
propriedades rurais sobrepostas a numerosas terras indígenas homologadas ou em
fase de homologação pela FUNAI (Relatório De Olho nos Ruralistas) indica haver
conexões políticas e corporativas, que chegam a personalidades centrais do
capitalismo brasileiro e global a demonstrar que a globalização econômica, ao
concentrar terras e capital, exclui a população e lhe nega os direitos humanos
(CASTILHO, 2023).
A agricultura, a produção de alimentos e a fome
avocam, necessariamente, a questão fundiária, e que, segundo Josué de
Castro, “nenhum fator é mais negativo para a situação de abastecimento
alimentar do país do que a sua estrutura agrária feudal,com um regime
inadequado de propriedade, com relações de trabalho socialmente superadas e com
a não utilização da riqueza potencial dos solos” (ANDRADE, 2003).
“A reforma agrária sempre é uma proposta para uma
questão agrária declarada”, segundo Guilherme Costa Delgado (DELGADO, 2023).
Após a Constituição Federal, com a política enveredando pela vertente
neoliberal, foi sendo enfraquecido o controle da “função social” da terra,
entre os anos 1999 e 2010 sob a ostensiva grilagem de terras públicas (DELGADO,
2012). A pauta da reforma agrária, ultrapassando os interesses da agricultura,
pode ser revigorada com a proposta de que a terra deve cumprir uma função
socioambiental, diante dos custos sociais da degradação do trabalho e do meio
ambiente, da expansão agrícola, em face das mudanças climáticas, do cumprimento
dos compromissos em tratados e convenções internacionais e atender a regra
antidesmatamento da União Europeia e pela situação do Brasil como 6º país
emissor de CO2 (DELGADO, 2010) e de destruição dos ecossistemas e apropriação
crescente dos recursos naturais promovidas por setores econômicos e políticos
dominantes, sobrando aos sem-terra apenas terras marginais (LEROY, 2001) e, por
fim, aplicando os princípios constitucionais da atividade econômica, da
política agrícola e fundiária e da reforma agrária.
Fábio Konder Comparato afirma que o acesso à terra
é a base para outros direitos (COMPARATO, 2001). Milton Santos também defendia
a reforma agrária no regime capitalista para solução da questão fundiária
(SANTOS, 2007, pp. 53-54). Miloon Kothari, relator especial da ONU para moradia
adequada, relaciona as dificuldades para concretizar esse direito com o fato de
se considerar a moradia, a terra e a propriedade como produtos de comércio, e
não como direitos humanos. A falta desse reconhecimento legal do direito à
terra contribui para a fome e a insegurança alimentar, ou a pobreza extrema,
pois a terra constitui o principal ativo que possibilita aos pobres das zonas
rurais assegurar a subsistência (KOTHARI, ONU, 2008).
No que se refere à agricultura familiar, ela passou
a integrar a pauta governamental a partir da década de 1990, com a Lei nº
11.326, de 2006 com alterações em 2011 (Lei nº 12.512), estabelecendo as
diretrizes básicas para a formulação da Política Nacional de Agricultura
Familiar e Empreendimentos Rurais (ATLAS, 2020). Essa agricultura possui um
papel importante para a segurança alimentar nacional, por produzir grande parte
do alimento destinado ao consumo humano no Brasil e, segundo a FAO, colaborar
no combate à insegurança alimentar. Dados dos Censos Agropecuários 2006 e 2017
indicam que esse tipo de agricultura reúne o maior número de unidades
produtivas no País e contribui com parcela significativa de empregos associados
às atividades agropecuárias, artesanais e agroindustriais a ele vinculadas, no
campo ou na cidade (ATLAS, 2020).
A agricultura familiar representa uma importante
estratégia para alcançar o desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade e a
segurança alimentar são conceitos multidimensionais, envolvendo dimensões
socioeconômicas, culturais, políticas e ambientais levando ao desenvolvimento
sustentável, que propõe o crescimento econômico e social baseado na utilização
consciente dos recursos naturais, com preferência para o uso de recursos
renováveis, e na valorização da cultura. Além do acesso ao alimento, a
segurança alimentar abrange a sustentabilidade intersetorial (BENITES &
TRENTINI, 2019).
A agricultura familiar é menos sensível às
variações de preços do comércio internacional e permite a conservação dinâmica
das sementes e matrizes rústicas (“crioulas”), que preserva o solo e os
recursos hídricos, entre outros, possibilita garantir mais a segurança alimentar
de todos e contribui para manter a riqueza do território (LEROY, 2001).
Para impulsionar a agricultura familiar na produção
de alimentos, o Plano SAFRA 2023/2024 oferece aos produtores que investirem em
alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca, tomate, leite e ovos, entre
outros, redução de 5% para 4% nas taxas de juros sobre os recursos que
contratarem (AGÊNCIA BRASIL). Constitui investimento para a base da sociedade,
que são os verdadeiros produtores, sendo a agricultura familiar um fator multiplicador
(DOWBOR, vídeo Reels) Estes recursos para a agricultura familiar
representam 21% dos recursos destinados para o agronegócio, um aumento
significativo em comparação com os 9,7% de 2016. Existe necessidade, porém, de
diminuir esta diferença no sentido de promover mais a agricultura familiar.
O agronegócio surgiu e seguiu em sentido contrário
à política de desenvolvimento proposta pelo economista Celso Furtado nos anos
1960, cujas ideias continuam tendo seguidores. Entre estes, Rubens Sawaya
entende que o país subdesenvolvido não tem o controle sobre os nódulos de
bloqueio da cadeia de valor que permita a criação do fluxo dinâmico, como no
caso da produção de soja, por estar subordinado aos nódulos tecnológicos sob
domínio transnacional na produção de máquinas, equipamentos e insumos, e na
comercialização dos produtos nos mercados mundiais (SAWAYA, 2020).
A análise de Furtado é atualmente defendida também
em nível internacional por grupos, como nas propostas decoloniais de
Walden Bello, para serem adotadas ações na direção de uma desglobalização, não
como retirada da comunidade internacional mas para “reorientar as economias da
ênfase na produção para exportação para a produção para o mercado local”, por
entender que “uma maior integração global por meio do comércio aumentou muito a
desigualdade dentro dos países e, excluindo o caso excepcional da China,
aumentou a desigualdade entre a população global de famílias e
indivíduos”(BELLO, 2020).
É essencial criar linhas de crédito, fortalecimento
das pesquisas e políticas públicas para promover a agricultura familiar, a
agricultura orgânica, a transição para a agroecologia, e outras formas de
agricultura sustentável, buscando zerar a fome com uma política de
abastecimento de alimentos oriundos de uma agricultura genuína, saudável e
respeitosa da biosfera e integrada com a necessária logística de distribuição.
Valorizar uma produção agrícola direcionada para um
sistema de alimentos que respeite a cultura local, livre da dependência dos
agrotóxicos e dos interesses dos tradings do comércio internacional, tendo sua
distribuição e seu consumo no espaço real e físico, dando relevância para as
pessoas em seu contexto social.
Em linhas gerais, é necessário criar um novo
paradigma para a agricultura priorizando a produção para o mercado local
garantindo a soberania alimentar do país.
Fonte: Por Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima, em
Outras Palavras
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