INVASORES CONSTRUÍRAM VILA, IGREJA, GARIMPO E JÁ SÃO MAIS NUMEROSOS QUE
INDÍGENAS EM RESERVA LEGAL
EM SETE ANOS, NÃO
INDÍGENAS ergueram 210 casas, igrejas, lojas de
comércio, uma escola e até um posto de gasolina dentro da terra indígena
Apyterewa, na cidade de São Félix do Xingu, no sudoeste do Pará. Essa ocupação
ilegal deu origem a uma vila, que foi batizada de Renascer e hoje reúne
cerca de mil invasores – eles superam em número os 730 indígenas legalmente
instalados na área e donos do território, de acordo com documentação acessada
pelo Intercept, que
incluem relatórios de órgãos do governo federal e investigações da Polícia
Federal.
A perspectiva é ainda de mais crescimento, com
novas casas em construção. Tudo isso acontece ao lado de uma base de
operação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai.
Um dos canais de acesso da vila Renascer alcança
outra área invadida: a vila do Piranha, com dez edificações e plantações. Do
outro lado da reserva, um sujeito de nome Josemar Alves da Costa, assassinado
em 2022, negociou com uma dezena de pessoas pedaços de terra que não lhe
pertenciam. Esses e outros quatro povoados ainda vivem ilegalmente dentro dos
773 mil hectares que pertencem ao povo Parakanãs, homologados em 2007, durante
o segundo mandato do presidente Lula.
Há ainda outros cinco acessos irregulares, entre
pistas de pousos, pontes e matas abertas na floresta para a criação de gado –
ora em currais fechados, ora soltos. Além da pecuária, muitos dos
invasores possuem interesse no garimpo. Só em maio deste ano, o Ibama desarticulou
20 acampamentos dentro da terra índigena Apyterewa – e o
desmatamento caiu 94% no primeiro semestre deste ano, segundo dados do
Ministério dos Povos Indígenas. Apesar da expulsão dos garimpeiros, os sinais
de destruição seguem visíveis, com maquinários abandonados dentro de rios
amarelados pela intensa atividade de mineração.
Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da
Amazônia, o Imazon, a TI Apyterewa foi a reserva indígena com maior área de
floresta derrubada na Amazônia
nos últimos quatros anos. Não é coincidência os
números crescentes de desmatamento e invasões na região amazônica. O
ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL, estimulou a legalização do garimpo em
terras indígenas e discursou
inúmeras vezes a favor da revogação de reservas às
comunidades tradicionais – além de sucatear e desmontar os órgãos de
defesa do meio ambiente e proteção
aos povos indígenas.
Em nota, a Funai confirmou os recordes de
desmatamento na área Apyterewa nos últimos anos e que, para contê-los, foi
criado o Comitê de Desintrusão para “garantir a proteção constante e permanente
de todos os territórios indígenas”.
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Políticos defendem
ocupação ilegal da reserva Apyterewa
O município de São Félix do Xingu também concentra
políticos contrários às proteções das reservas indígenas. João Cleber de Souza
Torres, atual prefeito de São Félix do Xingu, do MDB, e seu irmão, o deputado
estadual Francisco Torres de Paula Filho, mais conhecido como Torrinho, do
Podemos, acumulam denúncias por tomada de
terra e até assassinato.
Antes de se eleger prefeito, Torres chefiou a Funai
no estado do Pará durante o governo Bolsonaro e foi denunciado
pelo Ministério Público Federal por abrir
uma estrada usada por garimpeiros dentro da terra dos Parakanãs. Já eleito, ele
organizou caravanas a Brasília para lutar contra as operações
de desintrusão e reuniões para defender a presença de não indígenas
em terras já demarcadas. Seu vice, João Batista Alves de Abreu, também liderou
resistências contra a desintrusão, em 2016 – ano que a Vila Renascer começaria
a ser instalada na terra indígena Apyterewa.
A primeira operação de desintrusão durou poucos
meses. Em 2011, o governo federal criou as duas bases de controle e fluxo dos
invasores que permanecem até hoje – base 1, de São Sebastião, e base 2, de São
Francisco. As ações naquele ano perduraram apenas de janeiro a março, quando
uma decisão judicial garantiu a permanência dos não indígenas na área.
Quatro anos depois, o Supremo Tribunal Federal
derrubou todas as ações que impediam a desintrusão. O governo federal, então,
articulou uma espécie de força-tarefa, entre a Funai, os ministérios da
Defesa, da Justiça e do Desenvolvimento Agrário para tirar os invasores
de vez das terras dos Parakanãs.
No início de janeiro de 2016, o atual prefeito de
São Félix do Xingu, que havia acabado de perder a reeleição municipal, partiu
para Brasília. Junto a eles estavam outros dois nomes: Adelson Costa e Antônio
Belfort, segundo documentos oficiais acessados pelo Intercept.
O primeiro deles é um pastor evangélico da vila
Taboca com uma fazenda chamada Fé em Deus, além de presidente de uma associação
local. Em uma de suas empreitadas, juntou-se a posseiros e ameaçou indígenas
que pretendiam fundar uma nova aldeia dentro da reserva. O segundo é um
pecuarista afortunado e que já tentou sucessivas vezes ocupar um cargo público
– foi candidato três vezes a vereador, mas nunca se elegeu.
De acordo com documentos acessados pela reportagem,
Belfort também se apossou de terras na Apyterewa. Ambos fazem a ponte do
político com uma peça-chave nas manifestações daquele ano: Vicente Paulo
Terenço – outro posseiro poderoso, famoso por acumular terras e protegê-las com
pistoleiros, além de ser acusado de ordenar assassinatos.
Nenhuma dessas figuras expõem o rosto publicamente
para promover ou incentivar atos contrários aos direitos indígenas. Ficam
apenas nas articulações e bastidores. Foi ele quem mandou para Brasília, em
2016, um grupo de invasores que defendiam abertamente intervenção militar – os
parentes de Belfort compartilharam essas manifestações golpistas em suas redes
sociais.
Enquanto isso, no Pará, sua turma migrou para a
base 2 da Funai na TI, onde montou acampamento. E de lá, da Vila Renascer, não
saíram até hoje – mais uma vez, as decisões judiciais impediram a completa
remoção dos invasores.
Tentamos contato com o prefeito João Cleber de
Souza Torres e com o deputado Francisco Torres de Paula Filho, mas nenhum deles
nos respondeu. Não conseguimos encontrar Torenço, Adelson Costa e Antônio
Belfort.
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Invasores acuaram Força
Nacional na reserva Apyterewa
Ainda naquele ano, a violência e investidas contra
os agentes públicos pioraram. Invasores chegaram a acuar policiais da Força
Nacional com o uso de coquetel molotov. Passaram a criar estratégias de
guerrilha: armadilhas para furar pneus de viaturas, trator para fechar vias de
acesso e incêndios em pontes.
Quatro anos depois, com o aumento das invasões em
2017, negociações de conciliação abertas
pelo STF, fiscais do Ibama viraram
reféns dos invasores. Após autuarem uma área por desmatamento ilegal,
manifestantes bloquearam vias e atiraram contra eles, que foram obrigados a
buscar abrigo na base 2. Os invasores cercaram a base com barricadas e
impediram os servidores de receber alimentos por três dias. Terenço foi
indiciado como réu pela Justiça, que também ordenou o imediato desbloqueio das
vias.
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Governo Lula homologou
reserva Apyterewa em 2007
Tamanha adesão de invasores nessa terra indígena
vem de uma narrativa difundida pelas lideranças sobre a mudança da extensão da
TI Apyterewa. Segundo eles, lá na década de 1990, o governo ampliou a área dos
indígenas, que era de 266 mil hectares, para 980 mil hectares, deixando 4,5 mil
famílias de não indígenas em situação irregular. Pouco tempo depois, em novo
acordo com o governo, a área foi reconfigurada para os atuais 773 mil hectares.
A Funai reconheceu cerca de 1,3 mil famílias que
viviam no local e negociou indenizações – as outras 3,2 famílias não
foram reembolsadas. Em alguns casos, o órgão entendeu que havia “má-fé” no
pedido de reparação.
Alguns dos não indígenas indenizados julgaram que
receberam um valor muito baixo e começaram as negociações que perdurariam por
anos. Em 2005, fecharam um acordo: a homologação das terras só aconteceria após
o julgamento “da boa fé dos não indígenas”. Só que o governo Lula se antecipou
e, em 2007, antes do julgamento, homologou por meio de um decreto a TI
Apyterewa. Os invasores nunca perdoaram a “traição” da justiça e do presidente
petista.
Fonte: The Intercept
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