DO #FORADILMA AO JANTAR PARA BOULOS: A história da executiva que guinou
à esquerda
Diante de uma
plateia de 140 pessoas, acomodadas no espaço de convivência de um edifício de
luxo no Itaim Bibi, em São Paulo, o deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP)
contou uma história vivida por ele tempos atrás, quando foi convidado para
jantar no apartamento de um médico influente. Autorizado a entrar no
condomínio, Boulos se confundiu e pegou o elevador de uma torre diferente
daquela onde morava o anfitrião. Subiu, abriu a porta e se deparou com uma
família jantando. “Aqui é a casa do fulano?”, perguntou. Não era. “Essa foi a
única situação em que invadi uma casa”, brincou o antigo líder do MTST
(Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), provocando risadas no público abastado
que o ouvia.
A história é relembrada por Rosangela Lyra ao
comentar o jantar daquela noite, em agosto, organizado por ela com o objetivo
de apresentar Boulos à elite paulistana. “Assim, o Boulos já quebrou qualquer
bobagenzinha [que as pessoas pudessem pensar]. Igual falar agora: ‘Ai,
eu tenho uma aplicação de 100 mil reais e o Lula vai me taxar’”, diz Lyra,
rindo. “São essas burrices, essa falta de entendimento.”
Rosangela Lyra tem 58 anos e é presidente do
Política Viva, grupo criado em 2013 para promover “encontros e discussões a
favor do Brasil”, segundo consta em suas redes sociais. A confraternização com
Boulos foi a primeira de um ciclo com os principais pré-candidatos à Prefeitura
de São Paulo. Os próximos convidados serão Tábata Amaral (PSB-SP) e o atual
prefeito, Ricardo Nunes (MDB-SP).
Na plateia que ouviu Boulos, segundo a anfitriã,
havia “de bancário a banqueiro”, com idades entre 30 e 70 anos. A maioria dos
convidados participa do Política Viva, movimento que se articula principalmente
pelo WhatsApp, com 2.500 pessoas divididas em sete grupos, onde se compartilha
e debate notícias sobre política. Todos, segundo Lyra, se impressionaram com a
eloquência do deputado psolista.
“As pessoas ficaram surpresas com ele. Acharam que
ele passa segurança, confiança, passa o que um político tem que passar. Uma
pessoa disse ter a impressão de que o Boulos veio para servir, e não ser
servido”, relatou Lyra, contente com o regabofe. Ela, que durante 28 anos
trabalhou na Dior, chegando a ser CEO da grife no Brasil, diz que também mudou
sua impressão sobre o líder dos sem-teto. Segundo ela, Boulos é uma pessoa
“muito gentil, muito doce, muito educada, muito assertiva, com muita determinação
e facilidade de articulação”.
Tantos elogios a um deputado socialista seriam
impensáveis poucos anos atrás, quando Lyra pintava a cara de verde e amarelo e
saía às ruas para protestar contra os governos do PT – uma militância
tão aguerrida que chamou atenção dos jornais, na época. Mas tudo ficou para
trás. Hoje, Rosangela Lyra é outra pessoa.
Quando fala de
seu passado, Lyra o faz em tom de galhofa. Não é fácil explicar como uma mulher
que pendurou uma bandeira do Brasil de ponta cabeça na varanda de seu
apartamento, em 2015, e disse à Folha de S.Paulo que só iria
ajustar o pano “quando o PT sair e o Brasil for resgatado”, hoje é devota de
Lula. Devota mesmo: reza pelo petista e, frequentemente, se vê agradecendo a
Deus por ele ter dado uma nova chance ao petista. “Eu só tenho a agradecer a
Deus pela vida do Lula. Agradeço por ele existir e topar essa missão nada fácil
[de ser presidente pela terceira vez]. Tenho muito carinho, muita
admiração, muito respeito e, sobretudo, muito agradecimento pela pessoa dele”,
explica a executiva.
Lyra estudou no Colégio Bandeirantes e se formou em
administração na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado). Votou a vida toda no
PSDB e se dizia uma pessoa de centro-direita. Seu primeiro contato com a
política, segundo ela recorda, se deu em Londres. Tinha 15 anos e foi passar
uma temporada na casa do embaixador do Brasil, Roberto Campos, herói dos
liberais brasileiros, ministro do Planejamento nos primeiros anos de ditadura.
“Eu via televisão sentada no meio do tio Roberto e da tia Estela”, ela
relembra. “Ele ia me explicando sobre geopolítica. Ficou plantada essa
sementinha.”
Quando entrou na faculdade, o Brasil ainda vivia
sob a repressão militar. Diferentemente de muitos estudantes, Lyra não se
envolveu no movimento das Diretas Já. Mas, já naquela época, tinha contato com
o mundo da política. Aos 18 anos, em 1983, foi trabalhar na Paulistur, empresa
que promovia o turismo em São Paulo e era comandada por João Doria Jr. “Conheci
Franco Montoro, Mário Covas, conheci a dona Lila [Covas]. Ali eu fui
nutrindo esse conhecer, esse entendimento”, ela diz.
Lyra, caída no berço do tucanato, não era ainda uma
militante. Sua vida pessoal lhe tomava a maior parte do tempo. Aos 20, prestou
concurso para assessora financeira na Dior. Foi aceita e permaneceu na maison
por quase trinta anos. Só saiu em 2013. Tem memórias tenras desse período: os
eventos de luxo com atrizes de Hollywood, as viagens e até mesmo um jantar na
casa de Bernard Arnault, magnata francês que, segundo a Forbes, é hoje a pessoa
mais rica do mundo.
Em 2006, quando ainda navegava por esse mundo de
opulência, Lyra se indignou com o que lia no noticiário brasileiro e foi às
ruas protestar contra o mensalão. Para que sua militância não respingasse na
Dior, tomou o cuidado de ir disfarçada. Vestindo boné e óculos escuros, se uniu
a uma pequena multidão que armou o protesto na Avenida Paulista, em frente ao
Masp. “Eu era contra o mensalão, não era contra o Lula, viu?”, ela se apressa
em explicar hoje. “Não era contra o PT, era contra um esquema necessário ou não
que o PT fez. Eu era contra um todo.”
Foi só o começo. Quando estouraram os protestos de
2013, Lyra sentiu o chamado das ruas. Como dessa vez estava de saída da Dior,
sentiu-se livre para falar o que lhe desse na telha. “Eu já era a ‘tia’ dos
movimentos.” Tomou gosto pela militância. Naquele ano, criou o Política Viva.
Passou a organizar encontros quinzenais com parlamentares no auditório da
clínica de odontologia de seu marido, Laércio Vasconcelos, na Avenida Brasil.
Em 2015, conseguiu atrair para um desses encontros Michel Temer, o vice que na
época já conspirava para derrubar Dilma.
Lyra foi convidada a ajudar na criação do Vem pra
Rua, um dos maiores grupos da orquestração pró-impeachment, mas não simpatizou
com a ideia. Apoiou, em vez disso, o Movimento Brasil Livre. “Lembra que eles
fizeram uma caminhada de São Paulo a Brasília a pé? Então, eu ajudei eles a
conseguir financiamento com empresários e a divulgar na imprensa”, ela conta,
rindo.
Enfim, aproximou-se de Deltan Dallagnol e Sergio
Moro. Apoiava fervorosamente a Lava Jato – embora, em segredo,
tivesse algumas ressalvas. “O Moro eu sempre achei um imbecil, desde que o
conheci. Fui a algumas palestras e ele não falava lé com cré. O Deltan eu adorava.
Ele passava uma imagem de bom menino.”
Lyra seguia à risca o roteiro da direita que
começava a se extremar no Brasil. Até que apareceu Jair Bolsonaro. O ex-capitão
do Exército era demais até para uma antipetista convicta como ela. A executiva
paulistana se viu obrigada a votar em Fernando Haddad no segundo turno. E as
coisas nunca mais foram as mesmas.
“Não me ofendo quando me chamam de petista. Um ano atrás, falar que
alguém era petista era quase chamar de leproso. Hoje não é mais assim”, opina
Rosangela Lyra. Sua guinada à esquerda lhe facilitou o acesso a figuras como
Guilherme Boulos, mas lhe fechou muitas portas no high society de
São Paulo. Embora seja religiosa, deixou de frequentar até mesmo a igreja.
“Desde que os padres do interior, onde eu assistia à missa, e os de São Paulo
fizeram campanha pro Bolsonaro dentro da homilia, em 2018, eu nunca mais fui à
missa”, ela explica. E completa, segurando o riso: “Os dois padres me
bloquearam no WhatsApp quando eu perguntei o porquê daquilo.”
O block divino não foi o único.
Uma procuradora da Lava Jato, com quem Lyra fizera amizade, também rompeu os
laços com a executiva paulistana. “Outro dia vi uma foto da época em que eu
apoiava a Lava Jato. De dez pessoas ali, sobraram quatro com quem ainda falo”,
diz Lyra. Um dos que restam é o empresário Marcelo Glauco. “A Rosangela é, sem
dúvidas, a pessoa mais ativa dentro da sociedade civil que conheço na
política”, diz o amigo. Ele conta ter ficado preocupado com a segurança de Lyra
em 2022, tamanha foi sua participação na campanha de Lula.
Às vésperas do segundo turno, Lyra organizou uma
caminhada pró-Lula na Avenida Faria Lima, centro financeiro do país onde se
aninham muitos empresários simpáticos ao bolsonarismo. A caminhada teve a
participação de Simone Tebet (MDB-MS), numa tentativa de amenizar a aversão do
empresariado a Lula. Com o petista, Lyra só esteve uma vez. Foi num jantar
organizado pelo advogado Sergio Renault, em junho do ano passado. Ela conta
que, em dado momento naquela noite, conversou com Lula e, ao falar de seu
histórico antipetista, pediu desculpas.
“Ele segurou as minhas mãos, olhou nos meus olhos e
falou assim: ‘Pode votar em mim e fazer seus amigos votarem em mim, vocês não
vão se arrepender.’ Foi tão lindo que só de lembrar agora já dá um calorzinho
no coração”, diz Lyra, derretendo-se pelo agora presidente. Meses depois, ela
pediu perdão também a Dilma, ao encontrá-la na comemoração pela vitória de
Lula, na Avenida Paulista. “Por mais que eu não tenha trabalhado pelo
impeachment, eu batalhei contra ela”, explica. Segundo ela, a ex-presidente
apenas sorriu. “Não sei se ela escutou. Estávamos todos pulando.”
Tamanha redenção não passou despercebida. Em maio,
quando Lula recriou o Conselhão, instância de diálogo com a sociedade civil que
marcou seu primeiro mandato, Lyra foi anunciada como um dos 245 integrantes do
grupo. Os membros do Conselhão trabalham de forma voluntária, sem nenhuma
remuneração. A executiva concilia o trabalho no governo com o Política Viva,
seu grupo de debates. Dispara notícias por WhatsApp diariamente e organiza os
jantares com gente da alta sociedade.
Lyra não abre o jogo sobre seu voto em 2024,
eleição na qual Boulos, até agora, é favorito, com 32% das intenções de voto.
A piauí pediu uma entrevista à assessoria do deputado, para
que ele contasse o que achou do jantar e da recepção dos amigos de Lyra. Ele
não quis se manifestar.
Embora faça galhofa do que viveu nas trincheiras da
direita, Lyra diz que não se arrepende de sua trajetória. “Acho maravilhoso eu
ter vivido isso da forma como vivi. Foi enriquecedor não ter sucumbido, ter
mudado de ideia e visto a luz. Muitos sucumbiram a ponto de apoiar um
genocida.” Quando é chamada de petista, a ex-chefe da Dior responde, com
convicção: “Mas o que é ser petista? Ser petista é querer combater a
desigualdade, querer lutar pelo combate à fome, pela justiça social, dizer não
aos preconceitos? Se for isso, então eu sou.”
Fonte: Revista Piauí
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