Marco temporal: Senado desafia STF e aprova projeto, mas lei não deve
vigorar
Menos de uma semana após o Supremo Tribunal Federal
(STF) ter decidido que a tese do marco temporal para demarcação de terras
indígenas é inconstitucional, o Senado desafiou a Corte e aprovou, na última
quarta-feira (27), o projeto de lei que trata sobre o tema (PL 2.903/23). O
movimento de afronta, porém, deve ter um efeito mais político que prático. De
acordo com juristas ouvidos pela Agência
Pública, se o PL virar lei, deve ser questionado no STF, reabrindo a
celeuma.
Em 21 de setembro, depois de anos de julgamento, o
Supremo rejeitou a tese jurídica, segundo a qual só devem ser demarcadas áreas
ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da Constituição Federal (5 de
outubro de 1988). A decisão foi amplamente celebrada pelo movimento indígena,
que vê no marco temporal a maior ameaça à garantia de seus direitos
territoriais.
Mas ontem, enquanto os 11 ministros discutiam a tese final do julgamento, que reafirmou a rejeição ao marco
temporal, do outro lado da Praça dos Três Poderes, o Senado aprovou o PL em
plenário a toque de caixa, após operação orquestrada pela Frente Parlamentar do
Agronegócio (FPA) – a chamada bancada ruralista –, ferrenha defensora da
medida.
A matéria vai agora para análise do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), que tem 15 dias para sancionar ou vetar dispositivos
do texto. Os eventuais vetos serão examinados pelo Congresso, em sessão
conjunta da Câmara e Senado, que pode derrubá-los. Apenas ao fim desse
processo, a lei será promulgada e entrará em vigor.
Daniel Sarmento, professor de Direito
Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), explica que o
fato de o Supremo ter decidido que o marco temporal fere a Constituição não
impede que o Congresso legisle sobre o tema.
Por isso, caso o PL 2.903/23 seja transformado em
lei da forma como está, será necessário questioná-la no STF por meio de uma
Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). “Com quase toda certeza, o Supremo
vai derrubar a lei, porque ele acaba de julgar que não existe marco temporal,
com uma maioria folgada”, afirma Sarmento.
Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse à Pública que, nesse caso, a própria entidade apresentará uma
ADI à Suprema Corte. “Já estamos, inclusive, com uma peça pronta”, relatou.
Enquanto o STF não julgar a ação, entretanto, a lei
terá validade. Como determina o oposto da decisão do tribunal, que tem
repercussão geral – ou seja, servirá de parâmetro para todos os julgamentos
envolvendo o marco temporal para demarcação de terras indígenas –, é de se
esperar que haja uma confusão jurídica, avalia Conrado Hübner Mendes, professor
de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP).
“O STF vai enfrentar todo o périplo de novo para
analisar essa lei e, enquanto isso, ela vai produzindo efeitos”, afirma.
Sarmento observa, porém, que nas Ações Diretas de
Inconstitucionalidade há a possibilidade da concessão de medidas cautelares,
que antecipam os efeitos da decisão quando se entende que a demora no
julgamento pode causar prejuízos. O professor considera que a lei poderia ser
suspensa a partir desse instrumento.
Além do marco temporal, o PL 2903/23 traz uma série
de outras questões encaradas como prejudiciais aos direitos indígenas, na
avaliação de lideranças do movimento e especialistas. Entre elas, flexibiliza a
proteção a povos isolados e facilita a exploração econômica das terras
indígenas (leia reportagem que mostra, em 10 pontos, como o projeto afeta os
direitos indígenas).
Segundo Sarmento, o STF pode também julgar a
constitucionalidade dos demais pontos. “O Supremo não precisa se ater ao marco
temporal. Se o projeto de lei tem tantos problemas constitucionais, quem
ajuizar a ação vai levar [o questionamento sobre eles]”, destaca.
A estratégia do movimento indígena agora é
pressionar Lula pelo veto da matéria. “Vamos fazer isso via Ministério dos
Povos Indígenas e através de pessoas que sejam próximas a ele. Mas, sem sombra
de dúvida, vamos partir do ponto inicial: solicitar uma reunião com Lula”,
afirma Dinamam Tuxá. “Vamos incidir não só com ele, mas também através dos seus
ministros e dos deputados da bancada governista.”
A expectativa entre parlamentares da base
governista é de que o presidente rejeite parcial ou totalmente o projeto. Na
tarde de ontem (27), o líder do governo no Congresso, senador Randolfe
Rodrigues (Sem Partido-AP), afirmou que o PL “será objeto de veto” do chefe do
Executivo.
Já o líder do governo no Senado, Jaques Wagner
(PT-BA), declarou, após a aprovação em plenário, que “tudo que não for marco
temporal”, o presidente “seguramente irá vetar”. “Sobre o marco temporal, não
tenho ainda a posição dele. Então, prefiro não externar, por enquanto,
opinião”, disse.
Os eventuais vetos de Lula também terão que ser
negociados com o Congresso, que pode recusá-los. O senador Marco Rogério
(PL-RO), membro da FPA e relator do PL na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania (CCJ) do Senado, sinalizou que a bancada está aberta a negociar a
supressão de trechos que não tratam sobre o marco temporal, como a permissão do
cultivo de transgênicos em terras indígenas e a flexibilização do contato com
comunidades isoladas.
“É possível que na sequência do processo
legislativo se opere o veto a esses pontos, sem prejuízo ao núcleo central”,
disse.
·
Demonstração de força da
bancada ruralista
Mesmo com a perspectiva de que a lei não se
sustente após análise do STF, o movimento indígena assistiu aos acontecimentos
de ontem com preocupação e sentimento de frustração, afirma Tuxá. “O Congresso
Nacional gosta de testar sua força, principalmente em relação à governabilidade
do Executivo. Nessa disputa de poder, estão levando a melhor no que se trata
das questões relacionadas aos direitos ambientais e dos povos indígenas”,
argumenta.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) também
lamentou a aprovação do PL pelo Senado. “Embora a ministra dos Povos Indígenas
e representantes do MPI tenham sido recebidos por líderes, relatores e até pelo
presidente Rodrigo Pacheco para apresentar pontos críticos e sensíveis aos
direitos indígenas, nada foi acatado pelo Senado”, afirmou a pasta por meio de
nota divulgada ontem à noite.
Além de trabalhar pela aprovação do PL, a bancada
ruralista está atuando em mais duas frentes na batalha contra os direitos
indígenas por meio da apresentação de Propostas de Emenda à Constituição
(PECs). Logo após a decisão do STF de que o marco temporal é inconstitucional,
foi apresentada a PEC 48/2023 para mudar a Constituição justamente neste ponto,
inserindo o marco no artigo 231, que trata dos direitos indígenas.
A PEC 132/2015, que já foi aprovada pelos senadores e agora tramita
na Câmara dos Deputados, pretende alterar o mesmo artigo, mas para permitir a
indenização pela terra nua a proprietários com imóveis dentro de áreas
indígenas demarcadas. Segundo o líder da bancada ruralista, deputado federal
Pedro Lupion (PP-PR), o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) se comprometeu
a instalar uma comissão especial para discutir a matéria.
Para os ruralistas, a quarta-feira foi de
comemoração. A operação para aprovar o PL 2903/23 começou ainda na semana
passada, após a decisão do STF, e se fortaleceu nos últimos dias, quando a FPA
se uniu a outras 21 frentes parlamentares, como a Evangélica e da Segurança
Pública, para se opor ao que eles chamam de “ativismo judicial” da Suprema
Corte, que também julga ações de descriminalização do aborto até 12 semanas e
do porte de maconha para consumo próprio.
Na intenção de forçar o avanço do projeto no Senado
e em reação à decisão do STF, o grupo, formado também pelos partidos PL e Novo,
iniciou uma obstrução da pauta da Câmara dos Deputados.
O projeto de lei tramitou de maneira relâmpago.
Pela manhã, foi aprovado na CCJ, que também passou um requerimento de urgência
para sua votação em plenário. No fim da tarde, o requerimento foi aceito na
sessão plenária e, logo em seguida, o presidente da Casa, senador Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), pautou a matéria, aprovada por 43 votos a favor e 21 contra.
Questionado sobre a possibilidade de a lei ser
declarada inconstitucional pelo STF, Marcos Rogério declarou que o Congresso
tinha de “cumprir seu papel” independentemente do que “vai acontecer na
sequência”: “Se vai ser levada ou não ao Supremo Tribunal Federal é um outro
passo, uma outra situação. Se o Parlamento, toda vez que tiver o julgamento de
uma ação no Supremo Tribunal Federal, abrir mão das suas prerrogativas, daqui a
pouco não há razão de ser para a existência do Congresso Nacional.”
Para Conrado Hübner Mendes, foi uma espécie de
afronta ao Supremo. “O Parlamento bate na mesa e diz: STF, fiz uma lei, agora a
bomba está com você. Enquanto não declarar a inconstitucionalidade e nos
afrontar – no sentido de que fazer o controle [da constitucionalidade] é
interpretado como afrontar –, em princípio, a lei é vigente”, explica.
Caso a lei seja efetivamente invalidada pela
Suprema Corte, “a bancada ruralista usará a narrativa de que o STF interfere
demais na definição das políticas públicas”, analisa Suely Araújo, especialista
sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e consultora legislativa
aposentada da Câmara dos Deputados.
“E fará isso na perspectiva de forte deslegitimação
da Corte que vem adotando há tempos. A instabilidade institucional traz ganhos
para quem defende retrocessos nos direitos socioambientais assegurados pela
Constituição”, diz.
A FPA rebate as críticas de que o movimento dos
últimos dias seria uma “afronta ao STF”. “A competência legislativa e a
atribuição legislativa são do Congresso Nacional, não é do Judiciário. Se tem
alguém usurpando função de alguém, é o próprio Judiciário, que não tem que se
meter em causas da sociedade, que não tem que dar opinião política sobre esses
temas”, afirmou Pedro Lupion.
Fonte: Por Anna Beatriz Anjos, da Agencia Pública
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