As origens históricas da nova crise de Nagorno-Karabakh em cinco pontos
Após várias guerras, o Azerbaijão lançou uma ofensiva em
setembro de 2023 que forçou os armênios de Nagorno-Karabakh a
capitular. Essa região predominantemente armênia do Cáucaso,
dentro do território do Azerbaijão, proclamou sua independência às vésperas do
desmembramento da URSS e está em conflito com o Azerbaijão há mais de 30 anos.
Para conhecer as origens históricas dessa nova crise, a RFI entrevistou
Tigrane Yegavian, pesquisador da Universidade Schiller.
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1. Nagorno-Karabakh é o berço da civilazação
armênia
>>> RFI:
Historicamente, a quem pertence a região de Nagorno-Karabakh?
Tigrane Yegavian: Nagorno-Karabakh sempre foi uma
região historicamente armênia. É o berço da
civilização armênia, como evidenciado pelos mosteiros e outros monumentos
históricos. Os problemas começaram em 1921, quando o Cáucaso foi sovietizado.
Havia três entidades - Geórgia, Armênia e Azerbaijão - com fronteiras que não
eram muito bem definidas. Quando o Azerbaijão e a Armênia declararam sua
independência um pouco antes, eles não conseguiram demarcar a fronteira. Na
época, havia uma disputa entre o Azerbaijão e a Armênia por regiões como
Nagorno-Karabakh, a região de Syunik e Nakhichevan. O Azerbaijão
foi sovietizado antes da Armênia e a política de Moscou na época era a de
dividir para reinar.
Em outras palavras, o Kremlin buscava enfraquecer o
nacionalismo e, assim, recompensar a Turquia. Em 1921, a Turquia era um estado
anti-imperialista e não estava próxima do bloco ocidental. Assim, como
resultado da pressão turca, os russos deram Karabakh e Nakhichevan ao
Azerbaijão com as bençãos turcas. Só que em Nakhichevan houve uma limpeza
étnica. Os armênios, que representavam 50% da população da região, foram
embora. Mas em Nagorno-Karabakh, onde os armênios representavam 94% da
população total, eles nunca aceitaram essa ligação com o Azerbaijão e nunca a
reconheceram. Em 1923, Nagorno-Karabakh se tornou uma região
autônoma dentro do Azerbaijão.
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2. O direito à autodeterminação dos povos
>>> O período soviético
deixou esse problema em segundo plano?
Durante todo o período soviético, o nacionalismo
foi mantido em segredo. E os azerbaijanos tentaram gradualmente mudar o
equilíbrio demográfico para que houvesse uma maioria azeri. Então, em 1988,
veio a perestroika na URSS. E para os armênios de Karabakh, foi um teste para
ver se a democratização era possível: não o direito à autodeterminação, mas o
direito de mudar de status, de ser integrado à Armênia soviética, como a
Crimeia havia sido integrada à Ucrânia soviética em 1954. Portanto, eles
achavam que a Crimeia e a Ucrânia eram um precedente e que isso também poderia
se aplicar aos armênios de Karabakh. Mas a resposta do poder central em Moscou
foi negativa.
Como resultado, de 1988 a 1991, testemunhamos a primeira
fase do conflito, uma fase de guerrilha na qual o Exército Vermelho cooperou
com os azerbaijanos para lutar contra os armênios a fim de estabelecer o poder
do Azerbaijão. Isso porque em 1988, o parlamento da região autônoma de Karabakh
votou pela adesão à Armênia soviética. Mas, em 1991, a União Soviética entrou
em colapso e tanto a Armênia quanto o Azerbaijão se tornaram estados
independentes.
O Azerbaijão tornou-se uma república independente
em 28 de agosto. A proclamação de sua independência cancelou o status de
autonomia de Karabakh. Portanto, para os armênios de Karabakh, isso significa
uma sentença de morte. Para eles, não há mais nenhuma garantia de uma vida
pacífica. Como resultado, eles vão se declarar independentes, e o fizeram em 2
de setembro, antes da Armênia, que declarou sua independência em 21 de
setembro. Enquanto isso, ainda havia uma ficção jurídica, porque a União
Soviética ainda existia e só desapareceu em dezembro do mesmo ano. É preciso
entender que há dois princípios no direito internacional: o princípio do
direito dos povos à autodeterminação e o princípio da integridade territorial.
Mas o argumento azerbaijano não é necessariamente
válido quando se trata de integridade territorial, porque os armênios de
Karabakh dizem que nunca fizeram parte do Azerbaijão independente, em outras
palavras, que foram anexados ao Azerbaijão após a sovietização. Esse é o
argumento legal dos armênios. Os azeris, por outro lado, insistem na
integridade territorial, considerando que as fronteiras administrativas são
agora internacionais e que Karabakh pertence a eles. Em 1994, estourou uma
guerra de alta intensidade, vencida pelos armênios de Nagorno-Karabakh.
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3. Trauma profundo e sede de vingança
>>> RFI: Esse é
o primeiro conflito armado na região desde o colapso da URSS. Quais são as
consequências dessa guerra?
O exército armênio não está diretamente envolvido
no conflito. A Armênia não declarou guerra diretamente ao Azerbaijão, mas é
claro que, nesse meio tempo, Yerevan apoiou os armênios de Karabakh e acabamos
chegando a uma situação em que eles retomaram 80% do enclave, mas também toda
uma zona de amortecimento em torno desse enclave, o que resultará na fuga de
800 mil refugiados azeris. Esse é um número enorme. Todas as cidades vizinhas
do Azerbaijão foram sistematicamente destruídas. Um trauma profundo foi criado
na sociedade azerbaijana, juntamente com uma profunda sede de vingança e
revanche.
Em
1923, Nagorno-Karabakh se tornou uma região autônoma dentro do Azerbaijão
O que precisa ser entendido é o impacto dessa
vitória militar, que resultou na perda de 14% do território azerbaijano. Os
armênios veem isso como uma zona de segurança, uma zona tampão, uma
profundidade estratégica que lhes permitirá negociar uma espécie de paz com os
territórios ao redor de Karabakh. Mas a tragédia foi que, logo após 1994, o
governo armênio era presidido por Levon Ter-Petrossian, que era bastante
próximo do [então presidente russo] Boris Yeltsin. Levon Ter-Petrossian era um
pragmático que acreditava ser imperativo negociar uma paz justa com base em
concessões mútuas: todos os territórios foram devolvidos e um referendo sobre
autodeterminação foi realizado. Ele estava convencido de que o status
quo era insustentável e que os azeris poderiam reverter o equilíbrio de
poder. Ele não estava errado, mas foi derrubado em 1998 por sua equipe de
guarda-costas, que era composta inteiramente por pessoas de Karabakh.
Em outras palavras, para os líderes de Karabakh,
não poderia haver paz sem o reconhecimento total da independência da região ou
sua ligação com a Armênia, sem concessões. Eles pagaram um alto preço por essa
estratégia: Levon Ter-Petrossian foi substituído por Robert Kotcharian, seu
primeiro-ministro e antigo presidente de Karabakh. Ele era um nacionalista
pró-russo que achava que, enquanto a Armênia fosse aliada da Rússia, seria uma
forma de seguro de vida, porque a Rússia precisava da Armênia na época como seu
único aliado confiável na região do Cáucaso.
O problema é que o Azerbaijão cresceu gradualmente
em poder: a partir de 2002, o gasoduto Baku (no Azerbaijão) - Tbilisi (na
Geórgia) - Ceyhan (na Turquia) entrou em operação. O PIB do Azerbaijão começou
a crescer, assim como seus gastos com armas. Entre 2000 e 2010, a diplomacia do
Azerbaijão foi extremamente proativa, multilateral e forjou alianças com a
Ásia, Israel, o Reino Unido e até mesmo a Rússia. Enquanto isso, os armênios
confiaram sua segurança apenas à Rússia. Eles perderam o que os azeris
conseguiram fazer: forjar alianças com todas as grandes potências, mesmo que
sejam antagônicas (Paquistão e Israel, por exemplo). Os armênios continuam com
a ilusão de que os russos estão lá como apoio para sempre.
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4. A derrota armênia no pós-covid sob os
bombardeios turcos
>>> Mas o
contexto mudou em 2016 com a "Guerra dos Quatro Dias"...
Em 2016, durante esses quatro dias, o Azerbaijão
rompeu as defesas armênias e, após quatro dias, a Rússia negociou um cessar-fogo. Naquele momento, percebemos que o equilíbrio de poder havia mudado e
que os armênios não tinham a vantagem militar. Então, quatro anos depois, veio
a pandemia da covid e as eleições nos Estados Unidos. O Azerbaijão lançou uma
ofensiva, mas dessa vez a grande notícia foi que o exército turco estava com
eles. Antes, o exército turco não estava presente no terreno, enviava
assessores, mas não estava no comando.
Agora, o exército turco estava participando da
guerra por meio de suas forças especiais, sua força aérea e os jihadistas que
estava recrutando na Síria. Foi uma derrota total para os armênios, pois eles
enfrentaram o exército turco e o exército azerbaijano, com equipamentos
israelenses causando estragos em todos os sistemas de defesa antiaérea. Ao
mesmo tempo, os russos não podem alienar a Turquia e o Azerbaijão, porque
realmente precisam deles para seus interesses geoestratégicos. Portanto, os
armênios se sentem um pouco abandonados pelos russos. Em Erevan, existe essa
convicção de que a Rússia se afastou, porque o governo de Nikol Pachinian, que
chegou ao poder em 2018 após uma revolução, tem uma agenda pró-ocidental. Para
a Rússia, isso é inaceitável e, portanto, eles estão fazendo com que paguem.
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5. Guerra híbrida e limpeza étnica
>>> A queda de
Nagorno-Karabakh era previsível?
De 2020 a 2023, o Azerbaijão está travando
uma guerra híbrida contra os armênios. E por quê? Porque eles não atingiram seus objetivos. O Azerbaijão tem
três objetivos: primeiro, aniquilar o Karabakh armênio, o que já foi alcançado graças à limpeza étnica que está em andamento.
Em seguida, o segundo objetivo: estabelecer um corredor extraterritorial no sul
da Armênia para proporcionar continuidade territorial com a Turquia. Esse
corredor é importante para os turcos porque é por onde passarão os canos do
futuro gasoduto. Eles o querem, querendo ou não. E o terceiro objetivo é um
acordo de paz com a Armênia, mas que é mais um acordo de rendição baseado em
novas concessões territoriais. É isso que está em jogo hoje.
Ø Armênios se organizam para receber refugiados de Nagorno-Karabakh
A Armênia tem recebido desde domingo (24/09) um
grande número de refugiados, vítimas da ofensiva relâmpago lançada pelo governo
do Azerbaijão ao enclave de Nagorno-Karabakh. O fluxo de pessoas causa um
complexo quebra-cabeças para as autoridades e a população de Goris, pequena
cidade situada após a passagem pelo engarrafado corredor de Latchine.
O número de refugiados que chegaram à Armênia ultrapassa
65 mil, segundo dados divulgados por Ierevan nesta
quinta-feira (28/09), o que representa mais da metade dos habitantes da região
de Nagorno-Karabakh.
A operação militar do Azerbaijão na região, no domingo, deixou mais de 400 mortos entre os dois lados.
Paralelamente, quase 100 pessoas foram declaradas
desaparecidas após a explosão de um depósito de combustíveis na noite de
segunda-feira (25/09) no enclave, uma tragédia que deixou 68 mortos e 290
feridos.
Até a semana passada, 120 mil armênios viviam no
enclave, reconhecido pela comunidade internacional como parte integrante do
Azerbaijão.
No domingo, o Azerbaijão abriu para circulação a
única estrada que liga Nagorno-Karabakh à Armênia, quatro dias após a rendição
dos separatistas e da assinatura de um acordo de cessar-fogo que deu a Baku o
controle da região.
A Armênia, majoritariamente cristã, e o Azerbaijão,
predominantemente muçulmano, travaram duas guerras na região de
Nagorno-Karabakh desde o colapso da União Soviética em 1991.
Em meio ao êxodo, os guardas de fronteira do
Azerbaijão tentam detectar supostos “criminosos de guerra” entre os refugiados,
afirmou à AFP uma fonte do governo de Baku.
Nesta quarta-feira, um ex-líder separatista
armênio, Ruben Varadanyan, que comandou o governo separatista de
Nagorno-Karabakh de novembro de 2022 a fevereiro deste ano, foi detido quando
seguia para a Armênia pela rodovia, anunciaram as autoridades do Azerbaijão.
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Crise humanitária
A cidade fronteiriça de Goris, onde a maioria dos
refugiados faz a sua primeira parada, está quase irreconhecível. Centenas de
carros invadiram suas ruas, onde reina o caos, diante dos olhares atônitos dos
policiais, incapazes de direcionar o trânsito com seus megafones.
Edo, sentado em um banco, com uma pequena mala e
sacolas plásticas cheias, conta à RFI como foi a fuga com a
família, diante do avanço dos soldados do Azerbaijão. “Eles cercaram a cidade,
então tivemos de partir." Edo, sua mulher, a filha e um filho com
deficiência, ficaram durante uma semana em uma base militar russa. “Não havia
nada para comer, sobrevivemos como pudemos e agora estamos aqui.”
A intervalos regulares, Edo ergue o filho de 26
anos para reposicioná-lo mais confortavelmente na cadeira de rodas. “Minha
mulher cuida dos registros junto às autoridades, mas eu preciso ficar com meu
filho, para ajudá-lo a ir ao banheiro, dar de comer. Preciso estar a seu lado o
tempo todo”, explica.
‘Trabalhei 30 anos, construí uma casa e perdi tudo’
Edo espera o retorno da mulher, sem saber se vão
continuar em Goris ou partir para outro lugar da Armênia. “Trabalhei 30 anos,
construí uma casa e perdi tudo”, conta. Ele acrescenta que trouxeram apenas
roupas e uma reserva equivalente a € 500”.
A população local se mobiliza para ajudar os
refugiados. “Viemos ajudar, sabemos que eles têm fome e sede”, diz o jovem
comerciante Hayk, que junto com os amigos são voluntários no acolhimento.
Muitas pessoas chegam de outras cidades para
contribuir. “Eu sabia que precisavam de ajuda aqui. As pessoas querem ir para
algum lugar. Peguei o carro e acabei de chegar", conta um motorista de
táxi. "Estou esperando para saber qual família devo levar a Ierevan. Sei
que essas pessoas perderam tudo. Então para mim é importante ajudar como
puder”.
“Goris é uma cidade muito pequena, a situação é
caótica, falta gente para ajudar”, conta à RFI por telefone,
da capital Ierevan, a estudante Ani. “Mas o governo pede que não saiam de
Goris, para que sejam registrados e depois sejam relocados. A cidade está
cheia, hotéis e pousadas estão lotadas, as pessoas dormem em carros. Mas a
população local também está recebendo os refugiados de coração aberto, isso é
positivo”.
Ø Governo brasileiro pede ‘proteção de direitos’ dos armênios em Nagorno-Karabakh
O Itamaraty publicou nesta quinta-feira
(28/09) uma nota revelando o posicionamento do Brasil com relação
ao conflito em Nagorno-Karabakh, com foco
no êxodo de mais de 65 mil refugiados armênios dessa região, situação que vem se produzindo desde o último
domingo (24/09).
Segundo o governo brasileiro, “o deslocamento de
milhares de civis de origem armênia na região de Nagorno-Karabakh e em seu
entorno causa grande preocupação, sobretudo em vista de suas graves implicações
humanitárias e políticas”.
Nagorno-Karabakh foi alvo de um ataque relâmpago promovido na semana passada pelo governo
do Azerbaijão, como forma de intimidação à comunidade armênia
local, em função das atividades de grupos que defendem a autonomia da região.
Na nota, o Itamaraty expressou que “o Brasil
considera indispensável a garantia à segurança da população residente, bem como
a proteção de seus direitos. Também rejeita o recurso à força e à violência com
o objetivo de alterar o status político da região”.
“Apenas soluções alcançadas por meio do diálogo e
da diplomacia poderão resultar em paz sustentável e prosperidade para toda a
região”, afirmou a diplomacia brasileira.
O Itamaraty também salientou que “a situação
humanitária e de segurança em Nagorno-Karabakh e entorno seguirá sendo objeto
de atenção do Brasil, em coordenação com os demais membros do Conselho de Segurança
das Nações Unidas, especialmente em vista da iminente assunção da presidência
rotativa do órgão pelo país, em 1º de outubro”.
Horas antes da publicação da nota brasileira, o premiê da Armênia, Nikol Pashinyan, pediu apoio
internacional aos refugiados, contra o que
chamou de “limpeza étnica” dos cidadãos armênios em Nagorno-Karabakh.
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Fim da ‘República de Artsakh’
Enquanto isso, os grupos armênios que defendiam a
independência da região de Nagorno-Karabakh do resto do Azerbaijão anunciaram
que abandonaram essa reivindicação.
Em um comunicado, o líder rebelde Samvel
Shajramanian disse que “a partir de janeiro de 2024, a República de Artsakh
(Nagorno-Karabakh) deixará de existir”.
A decisão implica no fim de mais de 30 anos de
conflito entre a comunidade armênia, que constituía a maioria da população de
Nagorno-Karabakh, e o governo do Azerbaijão.
Fonte: rfi/Opera Mundi
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