O que a negritude de Machado de Assis diz sobre como Brasil lida com
racismo
Assinada pelo escrivão Olympio da Silva Pereira, a
certidão de óbito de Joaquim Maria Machado de Assis, morto aos 69 anos em 29 de
setembro de 1908, há 115 anos, traz uma informação curiosa, senão polêmica: a
nona linha do formulário declara que sua cor era "branca".
Sobretudo nos últimos anos, a questão racial
daquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos tem se
tornado uma bandeira importante para a afirmação e a valorização da população
negra.
Mas o que pesquisadores contemporâneos têm
descoberto é que, considerando documentos como a própria certidão de óbito e
cartas antigas, a identidade racial de Machado de Assis é um assunto polêmico
desde antes da morte dele.
O que leva a uma questão importante: como o próprio
Machado de Assis se identificava?
"Nós não sabemos até o momento. Não há nenhum
documento que tenha chegado até nós que traga essa informação, como o próprio
Machado se identificava, como ele se via. Temos depoimentos só de
terceiros", afirma à BBC News Brasil a historiadora Raquel Machado
Gonçalves Campos, professora na Universidade Federal de Goiás (UFG) e
pesquisadora sobre a vida e a obra do escritor.
Um dos documentos citados por ela é a carta enviada
pelo poeta português Gonçalves Crespo (1846-1883) a Machado, com data de 6 de
junho de 1871.
"A Vossa Ex., já eu conhecia de nome há
bastante tempo. De nome e por uma certa simpatia que para si me levou quando me
disseram que era… de cor como eu", diz trecho da correspondência.
Não se sabe como o escritor brasileiro reagiu ao
ler a missiva, tampouco se conhece qualquer resposta que ele tenha
eventualmente redigido de volta ao português. A professora Campos pontua que a
expressão "de cor" era a mais aceita naquele momento histórico para
descrever pessoas negras.
"[O relevante é que] Machado é visto como um
homem ‘de cor’ por um escritor de seu próprio tempo", salienta ela.
Pesquisadora na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), a historiador Cristiane Garcia traz outro elemento que pode
indicar que o escritor, em vida, se via como negro.
"Eu pesquiso Machado de Assis quando jovem.
Entre o final de 1854 e início de 1855, Machado de Assis passou a frequentar a tipografia
de Francisco de Paula Brito, tipógrafo, editor e homem de letras, negro como
Machado", conta ela, à BBC News Brasil.
"A tipografia de Paula Brito foi a responsável
pela imprensa negra de meados do século XIX, no Brasil. Não só isso: ali se
organizava uma rede de homens negros que se ajudavam e protegiam, pelo menos
até os primeiros anos da década de 1860", aponta.
"E a condição de ser homem negro na sociedade
da época é uma questão presente na produção deles, em alguns jornais que saíam
da tipografia do Paula Brito, no posicionamento político, entre tantos outros
aspectos presentes na trajetória desses homens. Machado de Assis foi um
aprendiz desse grupo, cresceu muito com eles. Paula Brito o apresentou para uma
rede de sociabilidade que possibilitou a abertura de novos caminhos
profissionais para o jovem Machado de Assis."
Pesquisador independente que já descobriu vários
textos inéditos do escritor, o publicitário Felipe Rissato também afirma à
reportagem que "não existe uma declaração de Machado de Assis acerca da
cor de sua pele".
"Quando fez seu testamento de próprio punho,
em 1906, poderia ter incluído esse dado. Não que fosse obrigatório. E nada
mencionou", pontua ele.
"Fato é que Machado de Assis era mulato, filho
de pai pardo, alforriado, e mãe branca."
Um mês após a morte do escritor, o jornalista e
escritor José Veríssimo (1857-1916) publicou um obituário sobre o amigo no
Jornal do Commercio, texto este intitulado 'Machado de Assis: impressões e
reminiscências'.
Nele consta a seguinte frase: "mulato, foi de
fato um grego da melhor época".
O texto provocou reação em outro amigo de Machado,
o jornalista, historiador e político Joaquim Nabuco (1849-1910).
"Ele escreveu uma carta ao Veríssimo elogiando
o obituário, mas dizendo que ele, Veríssimo, deveria retirar este trecho para o
caso de uma futura publicação em livro do texto", comenta Campos.
"Eu não o teria chamado mulato e penso que
nada lhe doeria mais do que essa síntese", anotou Nabuco.
"Rogo-lhe que tire isso, quando reduzir os
artigos a páginas permanentes. A palavra não é literária e é pejorativa. O
Machado para mim era branco, e creio que por tal se tomava: quando houvesse
sangue estranho, isso em nada afetava sua perfeita caracterização caucásica. Eu
pelo menos só vi nele o grego."
Há outro registro contemporâneo a Machado sobre
como os outros o viam. Trata-se do livro 'Machado de Assis: Estudo comparativo
de literatura brasileira', publicado em 1897 pelo crítico Sylvio Romero
(1851-1914).
Na obra, o autor afirma que Machado de Assis é
"um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que
pareça estranho tocar neste ponto".
"Mas a crítica não existe para ser agradável
aos preconceitos dos homens, que devem ter ânimo bastante para libertar-se de
infundados prejuízos", prossegue Romero.
"Sim, Machado de Assis é um brasileiro em
regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana que constitui o tipo
diferencial de nossa etnografia, e sua obra inteira não desmente a sua
fisiologia […]. Com certeza não o molesto, falando assim; e não pode ser por
outro modo."
Para Campos, "dentro da perspectiva racista de
Sylvio Romero, ele ataca e diminui o Machado de Assis, qualificando-o como
mestiço [com a expressão 'sub-raça brasileira']".
Filho de um descendente de escravos alforriados, Francisco
José de Assis, e de uma lavadeira portuguesa oriunda dos Açores, Maria
Leopoldina Machado da Câmara, o escritor foi fotografado algumas vezes — mas a
baixa qualidade das imagens e o fato de serem em preto e branco, dadas as
limitações técnicas da época, ainda hoje suscitam debates sobre qual seria a
real cor de sua pele.
• Biografias
Em artigo publicado nos anais do VI Seminário do
Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, de agosto de 2020, Raquel
Campos analisou a "cor e a identidade racial" nas biografias escritas
sobre Machado de Assis.
Compilado de conferências proferidas entre 1915 e
1917, 'Machado de Assis', do advogado, jornalista e crítico Alfredo Pujol
(1865-1930) traz apenas duas menções raciais sobre o escritor. Logo no início,
ele pontua que seu biografado era filho de "um casal de gente de
cor".
Em seguida, quando ele descreve os primeiros anos
de sua carreira de colaborador de jornal, enfatiza sua convivência com "as
agruras criadas pela inferioridade de seu nascimento, pelos preconceitos de
cor, pela sua grande pobreza".
Até hoje considerada a mais influente biografia de
Machado, a obra de Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), 'Machado de Assis: estudo
crítico e biográfico', de 1936, insiste bastante no aspecto racial do escritor.
Segundo a análise de Campos, ela prefere chamá-lo de "mulatinho" mas
também usa os termos "mestiço" e "pardinho".
A ideia de Pereira era abordar Machado como alguém
que nasceu com três grandes dificuldades — a pobreza, a cor e a epilepsia, da
qual sofria — e, mesmo assim, ao superar essas questões, conseguiu vencer e se
tornar o maior da literatura brasileira.
Na conversa com a reportagem, a professora Campos
ressaltou que essa biografia tem muitas informações contestadas, mas que ali
está dito que Machado "não gostava de referências à sua cor"e
"que nunca utilizava a palavra mulato".
Em 'A Vida de Machado de Assis', de 1965, o
escritor e advogado Luiz Viana Filho (1908-1990) pouco se refere à cor e à
identidade racial de Machado, embora recupere a ideia de que ele era "como
um grego".
Mas há um ponto curioso trazido por esta obra: uma
análise do ensaísta e jornalista Peregrino Júnior (1898-1983) que aborda o
"embranquecimento" de Machado.
Viana Filho vê com naturalidade que o escritor,
"uma flor da civilização", houvesse optado por uma imagem mais
caucasiana para ilustrar seu livro 'Poesias Completas', de 1901.
Para o biógrafo, o "tempo depurou a fisionomia
de Machado, fazendo-o perder gradativamente os traços do mestiço" e
"ao fim da vida dificilmente se dirá não ser um ariano".
Em 'Vida e Obra de Machado de Assis', de 1981, o
jornalista e teatrólogo Raymundo Magalhães Júnior (1907-1981) classifica o
escritor como "amulatado" e diz que, quando havia ficado noiva dele,
Carolina Xavier de Novais (1835-1904) teria afirmado que iria se casar com
"um homem de cor".
O professor de literatura francês Jean-Michel Massa
(1930-2012), em 'A Juventude de Machado de Assis', de 1971, traz um subcapítulo
chamado "J. M. Machado de Assis, um mestiço", no qual afirma que ele
“é, parece, mestiço”. Mas também pontua que "como muitos brasileiros, não
é nem um homem de cor, nem, strictu sensu, um homem branco".
'Machado de Assis, Um Gênio Brasileiro', livro de
2005 escrito pelo jornalista Daniel Piza (1970-2011) foi a última das biografias
contempladas pela professora Campos em seu artigo.
Ela ressalta que, nele, "são esparsas as
alusões à cor de Machado de Assis, que é referido sempre, nessas ocasiões, como
mulato".
"Lendo as biografias com os olhos do presente,
chama a atenção a ausência de classificações de Machado de Assis como
'negro'", pontua a pesquisadora.
"Apesar da origem humilde, desde muito cedo
Machado teve o acolhimento das pessoas certas para ter a formação autodidata
que teve, aprendendo línguas, como o francês, e humanidades, fora dos cursos
convencionais. Bem quisto no trabalho como funcionário público, bem como
literato, embora não fosse uma unanimidade, Machado adquiriu o status que não
se permitia a um homem negro, salvo raras exceções, daí a busca para se começar
a entender a incógnita de seu embranquecimento", comenta o pesquisador
Rissato.
"Curioso é que tendo acesso às suas
fotografias originais, vemos claramente os seus traços de homem mulato, o que
deixa ainda mais inexplicável a cor 'branca' indicada em seu atestado de
óbito".
• Compreensões
da identidade racial
À reportagem, Campos comenta que "não sabemos
se Machado se considerava negro mas, mais provavelmente no universo da
especulação, considerando os testemunhos que temos, se ele se identificava
racialmente provavelmente os termos que ele lidaria seriam 'homem de cor' ou
'mulato', não ‘negro'".
Ela lembra que, parte de seus próprios estudos, é
preciso compreender a maneira como as identidades raciais foram entendidas no
Brasil do século 19 e ao longo do século 20.
"Há uma discussão que atravessa pela questão
cultural, o conceito antropológico de cultura que enfatiza muito a
singularidade do Brasil como uma nação mestiça", afirma.
"Sabemos que no século 19 e no 20, essa
mestiçagem era entendida como fator de inferioridade, obstáculo ao
desenvolvimento nacional. Isso explica o caráter racial das políticas de
imigração financiadas pelo Estado brasileiro, que selecionaram as populações
alvo considerando um ideal de embranquecimento da população nacional."
Nesse contexto, o embranquecimento do maior
escritor brasileiro parecia fazer sentido.
"A partir da década de 1930, o Machado de
Assis começa a ser visto como mestiço, e aí o grande escritor nacional
correspondia justamente a um exemplo da identidade nacional mestiça. Machado de
Assis passou então a ser tratado fortemente como mulato", acrescenta a
professora.
Assim, ao longo de boa parte do século 20 no
Brasil, tratá-lo como mestiço ou mulato parecia ser a maneira entendida como
correta.
"Havia esse ideal de democracia racial
brasileira, uma construção criada, na verdade, para impedir o combate ao
racismo estrutural”, afirma Campos.
É como se o Machado pudesse se assumir negro apenas
em suas memórias póstumas, a bem da verdade. E isto tem tudo a ver com a ascensão
do movimento negro. É por isso que, observa ela, o escritor aparece como negro
justamente quando é "descoberto" pelos Estados Unidos, já nos anos
1960.
"Nessa época, Magalhães Júnior começa a
recusar tal classificação. Para o crítico, o escritor brasileiro poderia ser
considerado negro 'do ponto de vista americano'. Já 'segundo os nossos
padrões', seria mulato", contextualiza a professora.
Para a especialista, é inegável que, sim,
"houve um processo de embranquecimento de Machado" e isso está nítida
na própria certidão de óbito, onde "fica explícito o apagamento da
cor". Mas esse percurso não pode ser achatado em uma linha reta. É
permeado de complexidades culturais e sociais. "Uma questão
controversa", resume.
No meio desse então incipiente debate, a obra
'Machado de Assis e o Hipopótamo', de 1960, é interessante.
Ali, o jornalista e historiador Gondin da Fonseca
(1899-1977) considera que levantar a questão da identidade racial de Machado é
que seria uma conduta racista.
"Ele recupera essa perspectiva da democracia
racial, dizendo que no Brasil todo mundo tem um pouco de sangue negro, todo
mundo é mestiço, então não daria para falar que alguns são brancos, outros são
negros", diz Campos.
O apagamento da cor de Machado de Assis, então,
também pode ter obedecido a essa perspectiva anacrônica de racismo.
• Hoje
Se para o mercado literário norte-americano,
Machado de Assis é visto como um escritor negro desde os anos 1960, no Brasil
essa perspectiva é mais recente. Somente nos últimos anos, por exemplo, livros
escolares passaram a defini-lo assim e as próprias fotografias dele passaram a
ser restauradas de forma a enfatizar mais nitidamente aspectos
afrodescendentes.
Além de reparar a história, tais esforços também
ecoam políticas afirmativas requisitadas pelo menos desde o fim dos anos 1970
pelo movimento negro no Brasil. Em 2021, a Universidade Zumbi dos Palmares
lançou a campanha Machado de Assis Real, um abaixo-assinado para que as
editoras deixem de imprimir e comercializar livros em que o escritor apareça
embranquecido.
Reitor da universidade, o advogado e educador José
Vicente diz à BBC News Brasil que a campanha foi realizada porque "a cada
momento em que somos surpreendidos por mais um dos efeitos nocivos do racismo,
que tenta apagar nossas existências, nossa história, entendemos e reafirmamos
nossa missão e temos que agir".
Para ele, o embranquecimento de Machado torna
"perceptível o reflexo de como o brasileiro enxerga as pessoas negras no
país, sempre as colocando em posições subordinadas e lhes tirando os próprios
feitos".
"A publicidade tem uma enorme responsabilidade
com a construção do imaginário e ao reforçar estereótipos, ao embranquecer um
personagem tão icônico do protagonismo negro na literatura temos a dimensão de
quão doente está nossa sociedade. Não havia a possibilidade de nos
silenciarmos. Como uma instituição educacional a Zumbi dos Palmares liderou
ações com o viés de reparação, educação e conhecimento", acrescenta.
"Desde o período pós-abolição não têm sido
poucas as iniciativas para o embranquecimento da população negra. O processo de
branqueamento pelo qual Machado de Assis veio passando diz respeito ao
imaginário social que o povo brasileiro construiu em relação à população negra,
que é vista como inferior e incapaz."
O manifesto divulgado pela campanha sentenciava:
"Machado de Assis era um homem negro. O racismo o retratou como
branco".
Em 2011, a Caixa Econômica Federal envolveu-se em
uma polêmica ao divulgar um comercial exaltando o fato — verdadeiro — de que
Machado de Assis mantinha uma caderneta de poupança no banco. O vídeo foi ao ar
com uma gafe: o ator que representava o escritor era branco. A campanha foi
retirada do ar, o banco desculpou-se publicamente; no ano seguinte, o mesmo
material, reeditado e desta vez com um Machado de Assis negro, voltou a ser
exibido.
Machado de Assis também consta em verbete da
'Enciclopédia Negra', livro de 2021 de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano
e Lilia Moritz Schwarcz.
E vem sendo retratado assim não só em apostilas
escolares, mas também em eventos públicos, como a exposição aberta no ano
passado no Engenho Massangana, no Recife, que trouxe retratos de Jeff Alan de
personalidades negras brasileiras, com destaque para Machado.
Campos nota que há uma mudança na abordagem. Antes,
quando se falava em intelectuais negros do século 19, Machado não costumava
constar no rol que agrupava nomes como André Rebouças (1838-1898), Luiz Gama
(1830-1882) e José do Patrocínio (1853-1905).
"Até recentemente ele não ocupava esse lugar.
Agora, sim", pontua ela. "No Brasil de hoje, ele é, sim, um escritor
negro."
A professora Campos lembra que, "enquanto
historiadora" que se debruça sobre as questões de cor em Machado, sua
função "não é arbitrar essa questão", mas sim mostrar como há uma
historicidade nessa construção. Machado de Assis ora visto como branco, como
grego. Machado de Assis de cor. Machado de Assis mulato, mestiço. Machado de
Assis negro.
"Há uma expressão que diz que Machado de Assis
é um escritor que nos lê. Por meio dele podemos pensar uma série de questões
que dizem respeito à história do Brasil, inclusive a complexidade de nossa
questão racial, marcada por uma população que conheceu e conhece a
miscigenação", pontua ela.
"Também compreendemos um pouco da história da
luta antirracista, da discriminação racial. Tudo por meio da identidade racial
de Machado de Assis", acrescenta.
"A reivindicação de Machado de Assis como
negro é muito recente. E, insisto, do meu ponto de vista ela se explica por uma
modificação do que é o próprio debate sobre raça, racismo, mestiçagem e
identidade nacional. Isto levou a uma problematização dessa categoria de mulato
em consonância ao mito da democracia racial", afirma Campos. "E levou
a uma modificação da compreensão da identidade racial de Machado de Assis."
A questão, portanto, é mais complicada ainda do que
saber se Capitu traiu ou não Bentinho. Estas são as memórias póstumas de
Machado de Assis. E não parecem haver vencedores para ficar com as batatas.
Fonte: BBC News Brasil
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