O que acontece com o corpo humano após mais de um ano no espaço?
Com alguns apertos de mão, uma breve sessão de
fotos e um aceno, o astronauta da Nasa Frank Rubio despediu-se da Estação
Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), que tinha sido sua casa nos
últimos 371 dias.
Sua saída do complexo orbital e seu retorno à Terra
marcam o fim do voo espacial mais longo realizado por um americano até hoje.
Seu tempo em órbita – que ultrapassou o recorde anterior dos EUA de 355 dias
consecutivos – foi estendido em março, depois que a espaçonave na qual ele e
seus colegas voltariam para casa teve um vazamento de líquido de refrigeração.
Os meses extras no espaço fizeram com que Rubio
registrasse um total de 5.963 órbitas ao redor da Terra, viajando 253,3 milhões
de km. Ainda assim, ele está a cerca de dois meses do recorde do voo espacial
mais longo da história realizado por um ser humano – do cosmonauta russo Valeri
Polyakov, que passou 437 dias a bordo da Estação Espacial Mir em meados da
década de 1990.
Com um enorme sorriso no rosto, Rubio foi
transportado da espaçonave Soyuz MS-23 depois que ela pousou em segurança na
Terra deixando uma nuvem de poeira perto da cidade de Zhezkazgan, no
Cazaquistão.
Passar tanto tempo no ambiente de baixa gravidade
da ISS causa danos ao corpo, por isso ele teve que ser retirado da cápsula
pelas equipes de recuperação.
A sua longa viagem ao espaço, no entanto, fornecerá
informações valiosas sobre como os humanos podem lidar com voos espaciais de
longa duração e qual a melhor forma de neutralizar os problemas que eles podem
apresentar. Ele é o primeiro astronauta a participar de um estudo que examina
como o exercício limitado feito por astronautas com equipamentos de ginástica
pode afetar o corpo humano.
É uma informação que se revelará vital à medida que
a humanidade se concentra no envio de tripulações em missões para explorar mais
profundamente o Sistema Solar.
Uma viagem de retorno de Marte, por exemplo, deve
demorar cerca de 1.100 dias (pouco mais de três anos) segundo os planos atuais
da Nasa. A espaçonave em que os astronautas viajarão será muito menor que a
ISS, o que significa que serão necessários aparelhos de exercício menores e
mais leves.
Entenda o que se sabe até hoje sobre como o voo
espacial afeta o corpo humano.
·
Músculos e ossos
Sem a constante força da gravidade da Terra em
nossos membros, a massa muscular e óssea começa rapidamente a diminuir no
espaço.
Os mais afetados são os músculos que ajudam a
manter a postura nas costas, pescoço, panturrilhas e quadríceps – na
microgravidade, eles não precisam mais trabalhar tanto e começam a atrofiar.
Depois de apenas duas semanas, a massa muscular pode cair até 20%. Em missões
mais longas, de três a seis meses, pode cair 30%.
Da mesma forma, como os astronautas não submetem os
seus esqueletos a tanta tensão mecânica como quando sujeitos à gravidade da
Terra, os seus ossos também começam a desmineralizar e a perder força.
Os astronautas podem perder de 1 a 2% da sua massa
óssea todos os meses que passam no espaço e até 10% durante um período de seis
meses (na Terra, homens e mulheres mais velhos perdem massa óssea a uma taxa de
0,5% a 1% todos os anos). Isso pode aumentar o risco de sofrer fraturas e
aumentar o tempo de cicatrização. Pode levar até quatro anos para que a massa
óssea volte ao normal após retornar à Terra.
Para combater esse atrofiamento, os astronautas
fazem 2 horas e meia por dia de exercícios e treinos intensos enquanto estão em
órbita na ISS. Isso inclui uma série de agachamentos, levantamentos, remadas e
outros exercícios usando um aparelho instalado na “academia” da ISS. Eles
também fazem exercícios em uma esteira e em uma bicicleta ergométrica, além de
tomarem suplementos para ajudar a manter os ossos o mais saudáveis possível.
Um estudo recente, no entanto, mostrou que mesmo
este regime de exercícios não foi suficiente para prevenir perdas na função e
no tamanho muscular.
A falta de mais força da gravidade para exercer
pressão sobre seus corpos também pode fazer com que os astronautas fiquem um
pouco mais altos durante sua estadia na ISS, à medida que suas colunas se
alongam ligeiramente.
Isso pode levar a problemas como dores nas costas,
enquanto ainda estiverem no espaço, e hérnias de disco quando voltarem à Terra.
Antes de seu retorno à Terra, o próprio Rubio disse
que sua coluna estava crescendo. Ele disse que isso até poderia ajudá-lo a
evitar uma lesão comum no pescoço que os astronautas podem sofrer quando sua
espaçonave atinge o solo. Isso porque muitas vezes eles tentam sair de seus
assentos para ver o que está acontecendo.
“Acho que minha coluna se estendeu o suficiente
para que eu fique preso no forro do assento, então não devo me mover muito”,
disse ele.
·
Perda de peso e bactérias
amigas
Embora o peso signifique muito pouco em órbita – o
ambiente de microgravidade significa que qualquer coisa que não esteja amarrada
pode flutuar livremente no habitat da ISS, incluindo corpos humanos – manter um
peso saudável é um desafio em órbita.
Embora a Nasa tente garantir que seus astronautas
tenham uma gama diversificada de alimentos nutritivos, incluindo, mais
recentemente, algumas folhas de salada cultivadas a bordo da estação espacial,
a dieta limitada ainda pode afetar o corpo de um astronauta.
O mais extenso estudo sobre os efeitos de voos
espaciais de longa duração foi feito com o astronauta da Nasa Scott Kelly, que
ficou a bordo da ISS durante 340 dias, enquanto o seu irmão gêmeo permaneceu na
Terra. Kelly perdeu 7% da sua massa corporal enquanto estava em órbita.
Pesquisadores que examinaram Kelly após sua viagem
à ISS descobriram também que as bactérias e fungos que viviam em seu intestino
haviam se alterado profundamente no tempo em que ele esteve no espaço.
Pesquisas recentes apontam que a composição e a
diversidade dos microrganismos que vivem em nosso corpo é uma peça chave para a
saúde. A microbiota pode influenciar a forma como digerimos os alimentos,
afetar os níveis de inflamação no nosso corpo e até alterar a forma como o
nosso cérebro funciona.
Os pesquisadores que examinaram Kelly após sua
viagem à ISS descobriram que as bactérias e fungos que viviam em seu intestino
haviam se alterado profundamente em comparação com antes de ele voar para o
espaço. Isto talvez não seja totalmente surpreendente, dada a comida muito
diferente que ele comia e a mudança nas pessoas com quem convivia — obtemos uma
grande quantidade de microrganismos intestinais e orais das pessoas com quem
convivemos.
Mas a exposição à radiação e o uso de água
reciclada, juntamente com as mudanças na sua atividade física, também podem ter
desempenhado um papel.
·
Visão
Na Terra, a gravidade ajuda a forçar o sangue do
nosso corpo para baixo, e o coração o bombeia para que circule. No espaço,
porém, esse processo fica confuso (embora o corpo se adapte um pouco), e o
sangue pode se acumular na cabeça mais do que aconteceria normalmente.
Parte desse fluido pode se acumular na parte
posterior do olho e ao redor do nervo óptico, causando edema. Isso pode levar a
alterações na visão, como diminuição da nitidez e alterações estruturais no
próprio olho.
Essas mudanças podem começar a ocorrer após apenas
duas semanas no espaço e, à medida que o tempo passa, o risco aumenta. Algumas
das mudanças na visão são revertidas cerca de um ano após o retorno dos
astronautas à Terra, mas outras podem ser permanentes.
A exposição à radiação cósmica de fundo e
partículas energéticas solares também pode levar a outros problemas oculares. A
atmosfera da Terra ajuda a nos proteger destes fenômenos, mas no espaço não
temos essa barreira.
Embora as naves espaciais possam transportar
blindagem para ajudar a impedir a entrada do excesso de radiação, os
astronautas a bordo da ISS relataram ter visto flashes de luz nos seus olhos à
medida que os raios cósmicos e as partículas solares atingiam suas retinas e
nervos ópticos.
·
Cognição
Após a sua longa estadia na ISS, descobriu-se que o
desempenho cognitivo de Kelly mudou pouco e permaneceu relativamente igual ao
do seu irmão no solo.
No entanto, os pesquisadores notaram que a
velocidade e a precisão do desempenho cognitivo de Kelly diminuíram ao longo de
cerca de seis meses após a aterrissagem, possivelmente à medida que o seu
cérebro se reajustava à gravidade da Terra e ao seu estilo de vida muito
diferente em casa.
Um estudo sobre um cosmonauta russo que passou 169
dias na ISS em 2014 também revelou que algumas mudanças no cérebro pareciam ter
acontecido durante o seu período em órbita. Descobriu-se que houve alterações
nos níveis de conectividade neural em partes do cérebro relacionadas com a
função motora – ou seja, responsáveis pelo movimento – e também nos centros
vestibulares, que desempenham um papel importante na orientação, equilíbrio e
percepção do nosso próprio movimento.
Isso talvez não seja surpreendente, dada a natureza
peculiar da ausência de peso no espaço. Os astronautas muitas vezes precisam
aprender como se mover com eficiência sem gravidade para ancorá-los e se
ajustar a um mundo onde não há altos ou baixos.
Um estudo mais recente levantou preocupações sobre
outras mudanças na estrutura cerebral que podem ocorrer durante missões
espaciais de longo prazo. Cavidades no cérebro conhecidas como ventrículo
lateral direito e terceiro ventrículo podem inchar e levar até três anos para
voltar ao tamanho normal. São áreas responsáveis pelo armazenamento do líquido
cefalorraquidiano, fornecimento de nutrientes ao cérebro e eliminação de
resíduos
Pele
A pele de Kelly ficou particularmente clara
enquanto ele estava em órbita. Ele passou a apresentar sensibilidade aumentada
e erupções na pele por cerca de seis dias depois que retornou da estação
espacial. Os pesquisadores especularam que a falta de estimulação da pele
durante a missão pode ter contribuído para o problema.
·
DNA
Uma das descobertas mais significativas da
prolongada viagem de Kelly ao espaço foram os efeitos que teve no seu DNA. No
final de cada fita de DNA estão estruturas conhecidas como telômeros, que
ajudam a proteger nossos genes contra danos. Conforme envelhecemos, o DNA copia
a si mesmo para produzir novas células. E a cada cópia que o DNA faz de si
mesmo, os telômeros vão ficando mais curtos - como a cópia de uma cópia uma
imagem em um papel vai ficando menos nítida.
Pesquisas realizadas com Kelly e outros astronautas
revelaram que as viagens espaciais parecem alterar o comprimento dos seus
telômeros.
“O mais impressionante foi a descoberta de
telômeros significativamente mais longos durante voos espaciais”, diz Susan
Bailey, professora de saúde ambiental e radiológica na Universidade Estadual do
Colorado, que fez parte da equipe que estudou Kelly e seu irmão.
Ela também fez estudos separados com outros 10
astronautas que participaram de missões mais curtas, de cerca de seis meses.
"Também inesperado foi que o comprimento dos telômeros diminuiu
rapidamente no retorno à Terra para todos os membros da tripulação. Os
astronautas em geral tinham mais telômeros curtos após o voo espacial do que
antes, algo de particular relevância para a saúde a longo prazo e as
trajetórias de envelhecimento.”
Ainda não se sabe exatamente por que isso acontece,
diz ela.
“Temos algumas pistas, mas outros tripulantes de
longa duração – como Rubio, que passou um ano no espaço – serão fundamentais
para realmente caracterizar e compreender esta resposta e os seus potenciais
resultados para a saúde.”
Uma possível causa poderia ser a exposição à
complexa mistura de radiação no espaço. Os astronautas que sofrem exposição
prolongada enquanto estão em órbita mostram sinais de danos no DNA, diz ela.
Houve também algumas mudanças na expressão genética
– o mecanismo que lê o DNA para produzir proteínas nas células – observadas em
Kelly que podem estar relacionadas à sua viagem ao espaço.
Algumas delas estão conectadas com a resposta do corpo
aos danos no DNA, à formação óssea e à resposta do sistema imunológico ao
estresse. A maioria dessas mudanças, no entanto, voltou ao normal seis meses
após seu retorno à Terra.
·
Sistema imunológico
Kelly recebeu uma série de vacinas antes, durante e
depois de sua viagem ao espaço e seu sistema imunológico reagiu normalmente.
Mas a pesquisa de Bailey descobriu que os astronautas sofrem algumas
diminuições na contagem de glóbulos brancos. Essa mudança está de acordo com as
doses de radiação que eles recebem enquanto estão em órbita, diz ela.
No entanto, ainda há muitas questões a serem
respondidas sobre o impacto que as viagens espaciais podem ter sobre uma
espécie bípede e de cérebro grande que evoluiu aqui na Terra.
À medida que Rubio se recupera dos seus 371 dias no
espaço, os pesquisadores irão, sem dúvida, analisar os seus exames para ver o
que mais podem aprender.
Fonte: BBC Future
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