As mães que assumiram cabelos cacheados para inspirar filhas
A primeira tentativa de Weruska Goeking para
"domar os cachos" aconteceu quando ela tinha 11 anos. O procedimento
escolhido foi o relaxamento capilar, uma técnica também química, mas
considerada menos potente que a famosa progressiva.
A ideia, apoiada por sua mãe, que também tinha
cabelos encaracolados, era diminuir o volume para que fosse mais fácil pentear
e cuidar dos fios — e para Weruska, se parecer mais com as moças que eram
consideradas o "padrão de beleza" da época.
"Como a maioria das cacheadas que cresceram
nas décadas de 80 e 90, eu não tive referências de modelos, atrizes... Figuras
que usassem seus cabelos naturais com orgulho. Meu desejo de ter os fios lisos
começou bem cedo", lembra ela, que hoje tem 40 anos e trabalha como
gerente de marketing e conteúdo em São Paulo.
Foram 25 anos de sua vida passando por alisamentos
- a progressiva, que deixa os fios realmente lisos e dura entre quatro a seis
meses, a depender dos fios, veio logo depois do relaxamento capilar. Escovas,
sessões de chapinha e produtos diversos também fizeram parte da longa rotina
pelo liso perfeito.
A opção de alisar os cabelos foi colocada à prova
na medida em que Weruska era exposta a conteúdos de mais e mais mulheres
assumindo seus cabelos naturais na internet. Em paralelo a isso, crescia a
vontade de ser mãe.
"Eu já vinha flertando com a ideia de ver meu
cabelo natural de novo, buscando referências, pesquisando sobre transição
capilar… Quando engravidei, veio o reforço que eu precisava para abraçar minha
identidade."
Quando recebeu a confirmação de que seria mãe,
Weruska conta que começou a refletir como ensinaria a criança a amar seu corpo,
sua identidade e seu cabelo — especialmente se fosse uma menina, o que se
confirmou algumas semanas mais tarde.
"Não fazia sentido eu não aceitar uma parte de
mim mesma, como meu cabelo, e tentar ensiná-la a se amar. A Manuela desempenhou
um papel fundamental nessa decisão."
Assim como para muitas mulheres que passam pela
transição capilar, a fase foi desafiadora para Weruska. "Eu não estava
preparada para cuidar do cabelo natural, e estar com ele metade cacheado e metade
liso era complicado. Cortei, tirando toda a química, após um ano e alguns meses
de transição."
• A
força da identidade
Na avaliação da psicóloga Danielle Braga, o ato de
assumir os cachos tem relação direta com mostrar a essência, personalidade e
ancestralidade.
"Acho que está tudo bem querer mudar, mas
quando optamos por alisar o cabelo por uma pressão externa, estamos, de certa
forma, representando um papel social para sermos aceitos e nos encaixarmos
minimamente em um contexto social. Assumir nossos cabelos é uma quebra em
relação a essa violência."
O impacto da rejeição do cabelo natural — por si
próprias ou por outras pessoas— pode ter um impacto negativo grande na vida de
meninas, diz Braga.
"Como será que a mente dessa menina vai se
comportar em outras relações no futuro se foi uma figura de cuidado dizendo que
ela não pode ou não deve deixar o cabelo como ele é naturalmente? Provavelmente
ela constantemente pensará que não é suficiente"
Quanto às mães e cuidadoras que permitiam ou
incentivavam o alisamento dos cabelos das meninas, a psicóloga avalia que a
decisão era tomada por um conjunto de motivos — e que não seria justo
colocá-las como vilãs mal-intencionadas.
"Muitas dessas mães são negras, e pode ser que
tenham enfrentado preconceito devido ao cabelo e estivessem tentando proteger
suas filhas. Essas decisões também podem estar relacionadas ao contexto da
época", diz Braga.
"A transição é uma ruptura, permitindo deixar
para trás um passado de dor, negligência e silenciamento, e assumir sua verdadeira
identidade em um mundo que ainda não a enxerga com olhos gentis, que às vezes a
exotizam, é um processo complexo e desafiador, mas é fundamental para a nossa
evolução."
Já o movimento que mães como Weruska fazem — de
romper com um ciclo de anos na mudança da aparência — tem, na visão de Braga,
um impacto na autoestima e no amor-próprio.
"Quando as mães podem transmitir essa
mensagem, o processo de aceitação se torna mais positivo. As meninas também são
preparadas para enfrentar a escola e os comentários de forma diferente."
"Ao invés de dizer 'vamos alisar o cabelo para
não passar por isso', as mães podem dizer 'vou conversar com a diretoria, isso
não vai ficar assim'. Essa sensação de proteção, de ter alguém que olha por
você, te protege e te cuida, é valiosa. Essa geração não vai aceitar menos do
que merece. "
• 'Educar
pelo exemplo'
Diferentemente de Weruska, a carioca Amanda Vidal,
de 40 anos, ainda alisava o cabelo quando sua filha, Laura, nasceu.
"Quando ela tinha cinco anos, estava tentando
deixar os fios naturais, mas eu não gostava do que via no espelho. Cedi à
voltar para o alisamento sem pensar no impacto que isso teria nela",
conta.
Não demorou muito para que Laura começasse a pedir
para ter os fios lisos como o da mãe — ela dizia querer “poder jogar os cabelos
de lado”.
Amanda teve um flashback. “Era exatamente o que eu
falava quando era mais nova — meu sonho era ter um cabelo bem lisinho para
poder jogar. Foi aí que eu comecei a me preocupar com isso e tentei convencê-la
de que seu cabelo era lindo do jeito que era, mas não funcionou como eu
esperava.”
"Eu percebi que não podia dizer que seu cabelo
era lindo enquanto alisava o meu. Precisava educar pelo exemplo, então, comecei
a trabalhar nisso dentro de mim. Foi um processo longo."
"Agora, ela balança seu cabelo e não se
preocupa mais com o volume, porque ela sabe que é linda do jeito que é. Isso me
deixa muito feliz."
"Esse exemplo que eu pude dar não era tão
comum no passado. Minha mãe também tinha cabelo cacheado, mas alisava com
progressiva porque acreditava que era melhor e a fazia sentir-se mais bonita e
arrumada. Havia um estigma de que cabelo cacheado não ficava arrumado, o que
não é verdade.:
• A
tentação da busca pelo 'perfeito'
Amanda acredito que essa mudança — da qual ela e
outras mães fazem parte — pode ajudar as futuras gerações a aceitarem seus
cabelos naturais desde cedo.
"Sem sentir a pressão de alisá-los para se
encaixar em padrões de beleza tradicionais. Isso é maravilhoso, todos devem se
sentir bem consigo mesmos do jeito que são."
Ela diz não aceitar comentários externos sobre os
fios de Laura. "Se sugerem que ela prenda ou passe um creme, por exemplo,
eu digo que ela pode usar como quiser — e que não existe cabelo cacheado sem
frizz."
Weruska concorda — e acrescenta que é perigoso
reforçar padrões de perfeição também para as cacheadas.
"É importante não trocar uma prisão estética
por outra. Aceitar e amar nosso cabelo natural envolve também aceitar a
diversidade dos outros. Cuido do cabelo da minha filha com atenção e carinho,
mas evito reforçar padrões de perfeição."
"Não a elogio apenas quando o cabelo está
recém lavado ou preso. É importante que ela saiba que seu cabelo é lindo em
qualquer estado, e que não existe um cacho 'perfeito'".
Fonte: BBC News Brasil
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