'Dark offices': os trabalhadores que têm que usar guarda-móveis como
escritório
Tipo de negócio que está se expandindo nas grandes
cidades brasileiras, o self storage é conhecido por ser um local onde se pode
alugar espaços — de cubículos de 1m² a salas passando de 100 m² — para guardar
móveis, eletrodomésticos, garrafas de vinho, arquivos, estoques de produtos,
entre vários outros itens.
Mas, além de objetos, esses espaços têm sido usados
para abrigar também pessoas, mais especificamente trabalhadores de empresas que
alugam os chamados box ("caixas", em tradução livre do inglês) para
suas operações e para que os funcionários trabalhem ali em uma parte ou em todo
o expediente.
A BBC News Brasil visitou alguns estabelecimentos
de self storage na região metropolitana de São Paulo e conversou com pessoas
que trabalham nesses locais — chamados por alguns de dark offices
("escritórios escuros"), em analogia a outro fenômeno urbano, as dark
kitchens ("cozinhas escuras"). Ambos são locais de trabalho fechados
ao público e que atendem ao comércio online.
Boa parte das empresas que têm funcionários
trabalhando nos boxes lidam com a armazenagem e a entrega de produtos, ou usam
esses cubículos para guardar documentos.
Grandes empresas de self storage costumam oferecer
estrutura que facilita essas atividades, como wi-fi, acesso por senha ou
digital, câmeras de segurança, elevadores para carga, empilhadeiras, carrinhos
e docas para a colocação de produtos em caminhões.
Mas alguns especialistas em direito do trabalho
criticam o uso desses ambientes — que foram feitos para armazenamento — como
escritórios (leia mais no final desta reportagem).
Bruna*, de 28 anos, trabalha há um ano e meio em um
storage na região metropolitana de São Paulo. Ela é analista de almoxarifado de
uma loja virtual.
Embora ela goste do seu trabalho, não gosta do
ambiente dele.
"Na teoria, o self storage é feito apenas para
o armazenamento de coisas e produtos, e não para se ter pessoas trabalhando
dentro do box", diz Bruna, que trabalha com outras pessoas dentro de um
box sem refrigeração.
"Não tem janela, o que já é horroroso. Você
não vê a luz do dia. É uma grande tendência, mas trabalhar em storage é
insalubre."
Já Otávio*, 21 anos, surpreendeu-se positivamente
quando começou a trabalhar em um storage. Ele, que era atendente de uma loja
física e estava acostumado com o contato diário com clientes, foi comunicado
por sua chefia que trabalharia por alguns meses dentro de um box, no intervalo
da mudança de uma loja física para outra.
Ele já está trabalhando há três meses em um box. Em
algumas semanas, vai de segunda a sexta para lá, em outras, dia sim dia não —
depende do volume e dos horários que chegam as compras pela internet, onde sua
empresa vende produtos cosméticos.
Sua rotina envolve gerar notas das vendas e
entregar os pacotes para a transportadora, que coleta os produtos ali mesmo.
Ele trabalha todo o expediente no box, e nos intervalos descansa e mexe no
celular em uma área de convivência do storage que tem sofás e tomadas.
"No antigo local, todos os dias tinha uma
troca. Você nem precisava conhecer a pessoa, mas só de ela dar 'bom dia', já é
uma troca. Aí você vem para um lugar onde não tem tanto convívio com clientes,
com pessoas de modo geral, eu estranhei", desabafa o jovem.
"É um pouco estranho, mas de certa forma é
legal também, entendeu? São experiências que a vida nos dá. [O lado legal de
trabalhar aqui] Seria basicamente ter um tempo para mim mesmo, colocar os
pensamentos em dia. A estrutura é muito boa", diz Otávio, que trabalha
sozinho em um box que tem uma pequena janela e um microondas.
• Empresas
do setor apoiam uso como escritório
"Escritório no Self Storage? Dá certo sim",
diz o título de um texto no site da Good Storage, uma das maiores empresas de
self storage do país e que tem mais de 20 unidades no Estado de São Paulo,
principalmente na capital paulista.
Segundo o texto, alugar um box é um "excelente
custo-benefício para quem deseja ter um local para receber clientes ou, até
mesmo, trabalhar de forma privativa e tranquila".
Entre as vantagens deste uso enumeradas pela Good
Storage estão o wi-fi gratuito, vagas para visitantes, além da segurança e da
localização de "excelentes endereços da cidade de São Paulo".
Várias unidades da rede têm áreas comuns com mesas
para trabalho e café de cortesia.
A Good Storage começou também a inaugurar espaços
exclusivamente empresariais, com galpões que podem ser usados como locais de
armazenamento e centros de distribuição, por exemplo.
O Guarde Aqui, outra grande empresa do setor, com
25 unidades em vários Estados, afirmou por meio da assessoria de imprensa que
apoia e permite o uso de seus boxes como ambiente de trabalho. Para isso, diz
oferecer estações de trabalho com computadores e acesso à internet, além de
ambiente para refeições.
"Há alguns anos, a grande maioria do nosso
público era pessoa física. Hoje, pessoas jurídicas já representam 40% da nossa
base de clientes", afirma Mariane Wiederkehr, CEO (diretora executiva) do
Guarde Aqui.
"Um dos principais motivos é o fortalecimento
do e-commerce [comércio eletrônico]. Essas empresas, principalmente do varejo
digital, buscam no self storage mais que armazenagem de estoque, elas precisam
de um centro de distribuição próprio que conceituamos como dark stores
["lojas escuras"], espaços onde são realizados os processos de
armazenagem, separação, embalagem e despacho desses produtos vendidos
online."
A Guarde Mais — que, segundo seu CEO, Alberto Neto,
é a maior rede de storage do Brasil, com 90 unidades — também afirmou permitir
e apoiar o uso de boxes para trabalho.
"Até uma fábrica de aviamento têxtil temos
instalada dentro de um dos nossos boxes", diz Neto.
Mirando no setor empresarial, a Guarde Mais está
construindo um hotel logístico no Rio de Janeiro (RJ) que terá self storage,
estúdios para gravação de podcasts, áreas para armazenagem e estrutura para
dark pharmacy ("farmácia escura", para distribuição de itens de
farmácia vendidos online).
Embora empresas de storage estejam inaugurando
espaços dedicados a empresas ou ofereçam áreas comuns para os trabalhadores, o
que a BBC News Brasil observou é que muitos destes continuam trabalhando,
parcial ou totalmente, dentro dos boxes comuns — aqueles em que uma pessoa
física pode guardar móveis ou um empregador decide alocar seus funcionários.
Segundo um relatório da Associação Brasileira de
Self Storage (Asbrass) relativo ao primeiro trimestre desse ano, o preço médio
do m² de espaços em storages no Brasil é de R$ 112. Já a locação de um imóvel
comercial custa, na média (considerando as 10 cidades brasileiras monitoradas),
R$ 41,51, de acordo com o Índice FipeZAP+ de julho.
Mas o presidente da Asbrass, Rafael Cohen, aponta
que, além do preço do m², é preciso considerar que o aluguel de um espaço
comercial convencional costuma incluir outros custos, como condomínio,
segurança, seguro, entre outros, além de exigências como fiador e contratos
longos.
"Nesse preço do self storage, já está tudo incluído
em um único ticket", diz Cohen, ele mesmo proprietário de uma empresa de
self storage no Rio de Janeiro (RJ), a Smartbox, que tem duas unidades.
O empresário também destaca que os boxes pequenos
puxam o preço médio para cima — e as empresas tendem a precisar de espaços
maiores.
"O preço do box tem relação com o tamanho.
Boxes pequenos têm preços de metro quadrado muito alto. À medida que esses
boxes vão sendo maiores, os preços vão caindo", aponta.
"Aquele é um preço médio do Brasil, onde
existe uma preponderância de boxes pequenos."
Rodrigo Melo, proprietário da Thunderbolt, uma
marca de bicicletas e patinetes elétricos, viu-se justamente diante da escolha
entre alugar uma loja ou um box ao criar sua empresa em 2019, um pouco antes da
pandemia de coronavírus.
Hoje, suas vendas são online e ele aluga três boxes
em uma unidade de storage na capital paulista. Embora ele não tenha
funcionários fixos e trabalhe de casa, que fica próxima ao storage, seu negócio
demonstra a convergência entre o setor de storage e o ramo das vendas online.
Os compartimentos são usados como estoque e,
ocasionalmente, para ele ou um prestador de serviço fazer revisões e consertos
de bicicletas e patinetes. Ele também recebe clientes ali e usa corredores para
fazer fotos de seus produtos.
"Eu não tinha essa visão de ter um negócio
assim, eu ia montar uma loja, ia ser um negócio de rua. Aí veio a pandemia e
ela meio que obrigou a enxugar a estrutura, porque não tinha fundamento ter uma
loja de rua numa época que não tinha gente circulando. Então foi nessa época
que eu comecei a estruturar a empresa aqui", conta Melo.
"Aqui no bairro, em uma loja você vai pagar R$
8 mil, R$ 10 mil de locação. Enquanto aqui eu gasto R$ 2 mil, R$ 3 mil."
"O grande diferencial são os equipamentos.
Você tem carrinhos de mão, a doca, então a empresa vem, retira e leva [os
produtos]. Leva para o Brasil inteiro. O cliente pode vir aqui para o showroom
e depois a gente vai para o coworking e negocia. Ele tem um ambiente seguro
para fazer o pagamento, mexer com o banco."
"Não vou mudar mais, agora a minha ideia é
expandir. A gente vai começar a ter franqueado, vai ser um box desse em cada
Estado."
• Advogados
criticam uso como ambiente de trabalho
Nos quatro prédios de storage que a reportagem
visitou na região metropolitana de São Paulo — Estado onde o setor é mais forte
—, observou-se que o uso de boxes como ambiente de trabalho não é o que
predomina, mas eles estavam sempre ali.
Alguns não têm janelas e, em alguns casos, nenhuma
lâmpada, recorrendo apenas à luz dos corredores do estabelecimento. Outros têm
pequenas janelas tipo basculantes.
Alguns box têm tomadas, outros não, dando margem à
improvisação, com fios ligados a tomadas nos corredores. Não estava muito
calor, mas os locais tampouco estavam frescos.
Por serem ambientes muito monitorados e
controlados, a BBC News Brasil decidiu não captar nem reproduzir fotos desses
ambientes, mas produziu ilustrações com base no que foi visto.
Rafael Cohen, da Asbrass, avalia que a pandemia
impulsionou o uso dos boxes por empresas.
"A atividade [de self storage] inicialmente é
muito voltada para pessoa física, e atualmente o público preponderante ainda é
a pessoa física. Porém, com a pandemia, a gente teve uma aceleração muito forte
no comércio eletrônico, e as empresas começaram a perceber que existem novas
formas de trabalhar."
Ele afirma que o uso pontual dos boxes para
atividades de empresas é o esperado, e não o uso permanente — mas, em última
instância, cabe ao locatário do box decidir como usá-lo, diz. Cohen destaca
que, diferente da interpretação errônea de muitas pessoas, o negócio do self
storage não é a prestação de serviço, e sim a locação de imóveis.
"Não é para permanência integral, não foi
feito para isso, não é esse objetivo. Mas você usa o seu box como você quiser.
Se você quiser ficar o dia inteiro dentro do seu box, você pode. Tem condições
de fazer isso", aponta o presidente da associação do setor.
"São lugares arejados. Embora sejam fechados,
são saudáveis. Tem controle de umidade, tem temperatura adequada, porque também
não posso guardar coisas num lugar muito quente. Tem controle de praga, não vai
ter barata, não vai ter rato, são locais salubres."
Mas dois advogados trabalhistas entrevistados pela
BBC News Brasil foram enfáticos quanto ao que dizem ser inadequado o uso de
boxes como ambiente de trabalho.
"O guarda móvel, até pelo nome que se
intitulou o serviço, é próprio para armazenar coisas, e não um local de
trabalho para pessoas", afirma o advogado Ricardo Calcini, professor do
Insper e sócio do escritório Calcini Advogados.
"Isso leva ao fenômeno que a doutrina
trabalhista já apelidou de 'coisificação do ser humano', permitindo que
sindicatos e o próprio Ministério Público do Trabalho ingressem com ações
judiciais para impedir a adoção de tais práticas, podendo as empresas assumirem
condenações milionárias."
"Certamente tais locais estão em desacordo com
a legislação trabalhista. "
Calcini aponta que a situação pode ser considerada
irregular sob a norma regulamentadora nº 15 do Ministério do Trabalho e Emprego
(MTE), que aborda a inadequação do ambiente de trabalho. Segundo o advogado,
isso traria, na Justiça, consequências como o pagamento de adicional de
insalubridade, além de danos morais.
Especialista em direito processual e material do
trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o
advogado Marcel Zangiácomo aponta também para possíveis violações ao artigo 175
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que exige iluminação natural ou
artificial "uniformemente distribuída, geral e difusa, a fim de evitar
ofuscamento, reflexos incômodos, sombras e contrastes excessivos".
Ele aponta também para o artigo 171, segundo o qual
os locais de trabalho devem ter no mínimo 3 metros de pé-direito, salvo se
"atendidas as condições de iluminação e conforto térmico compatíveis com a
natureza do trabalho".
Mas, para Zangiácomo, os problemas não estão apenas
em pontos específicos, como iluminação ou pé direito, mas no que chama de
"deturpação gigantesca" da finalidade desses espaços.
"Logicamente, é grave. Primeiro porque o
fundamento, inclusive o objeto social do negócio dessas empresas [de storage],
não é posto de trabalho, mas sim a guarda de materiais. Então não é um ambiente
propício pro trabalho, com absoluta certeza", afirma o advogado, sócio do
escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados.
Outra gravidade, segundo o advogado, é a
dificuldade de fiscalização, já que os storages não são locais óbvios de
trabalho como são, por exemplo, salas comerciais ou espaços de coworking
(espaço compartilhado de trabalho).
"Parece aquele famoso jeitinho brasileiro:
'Olha, eu já pago o aluguel desses locais, por que não fazer a minha empresa
aqui?'", diz, simulando o pensamento de um empresário ou uma empresária
que decide ter funcionários nos box.
Zangiácomo avalia que tanto as empresas que têm
funcionários trabalhando nesses espaços alugados quanto as próprias empresas de
storage que são locatárias podem ser alvo de ações trabalhistas na Justiça,
eventualmente acusadas pelo MTE, pelo Ministério Público, por empregados ou
sindicatos
Sobre as empresas de storage, o advogado diz:
"A responsabilidade dessas empresa existe. Quando elas agem com culpa — ou
seja, através de negligência, omissão ou imprudência —, elas podem ser responsabilizadas."
Para ele, essas empresas estão sendo "no
mínimo imprudentes".
A reportagem pediu posicionamento sobre como
empresas do setor que tenham no mínimo 20 unidades lidam com as acusações de
insalubridade.
Em nota, a Good Storage afirmou que "atua como
locadora e gestora das áreas comuns, não interferindo e se responsabilizando
pelas atividades dentro dos espaços."
"Trata-se de uma relação de cunho locatício,
seguindo as mesmas regras praticadas pelo mercado imobiliário. O que se
encontra em absoluta consonância com as regras jurídicas do Direito
Brasileiro", afirmou a assessoria de imprensa.
Já o Guarde Aqui afirmou: "A empresa não
incentiva os clientes a trabalharem full time [em tempo integral] dentro dos
boxes. Oferecemos fora dos boxes uma estrutura completa para quem quer
trabalhar, com salas com ar condicionado, mesas, wifi, banheiros e refeitório
para todos os clientes."
Por fim, Alberto Neto, da Guarde Mais, garantiu que
todos os compartimentos usados para trabalho são adaptados para isso.
"Eles são preparados com total infraestrutura:
elétrica, climatização, detector de presença e fumaça, pallets e qualquer outra
demanda que possa ser solicitada pelo cliente."
• Setor
em expansão
O relatório da Asbrass relativo ao primeiro
trimestre de 2023 mostra uma expansão do setor de self storage, de trimestre a
trimestre desde o início de 2022, em número de boxes, operações (que são
unidades, como um prédio cheio de boxes) e empresas.
Na comparação do primeiro trimestre de 2022 com o
mesmo período de 2023, a vacância diminuiu 3,4% (de 17,5% para 16,9%).
Rafael Cohen, presidente da associação, prevê que o
setor ainda crescerá muito no Brasil.
"É um mercado que tem um futuro muito grande
pela frente. A gente se compara sempre aos Estados Unidos, que é a Meca desse
negócio. Eles têm mais de 60 mil locais de self storage, a gente tem 500."
Das operações existentes no país (um total de 542),
42% começaram a funcionar até 2015, 36,3% entre 2016 e 2019 e 21,8% depois de
2019.
"Os imóveis estão ficando cada vez menores, as
cidades estão ficando cada vez mais densas e as pessoas estão cada vez
acumulando mais. Tudo isso faz com que o setor seja conhecido lá [nos EUA] como
um setor à prova de crise: quando está tudo bombando, as pessoas compram mais e
guardam; e quando está ruim, as empresas se desmobilizam para guardar
equipamentos, guardar seus móveis, guardar seus documentos, porque fecham [seus
escritórios]", diz Cohen.
O Estado de São Paulo lidera no setor, concentrando
28,7% das empresas e 41% das operações de self storage no país.
Considerando as operações nas regiões brasileiras,
2% estão no Norte, 10% no Centro-Oeste, 18% no Sul, 12% no Nordeste e 57% no
Sudeste.
Fonte: BBC News Brasil
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