"Brasil pode liderar processo de paz entre Ucrânia e Rússia",
diz embaixador ucraniano
Recém-chegado a Brasília, o novo embaixador
ucraniano Andrii Melnyk pretende mobilizar a diplomacia brasileira a
"pensar fora da caixa" e liderar o processo de paz entre as
vizinhas Ucrânia e Rússia. Desde fevereiro de 2022, os ucranianos enfrentam a invasão de tropas russas e
tentam resistir com ajuda internacional.
Para o representante diplomático do governo
ucraniano no Brasil, um dos primeiros passos para essa aproximação entre Kiev e
Brasília foi organizar o encontro de mais de uma hora entre Luiz
Inácio Lula da Silva e Volodimir Zelenski, em Nova York,
na última semana, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas. Segundo Melnyk,
a conversa franca entre líderes é vista como chance de o mandatário brasileiro
entender melhor a situação e se aproximar do país do Leste Europeu.
Durante a entrevista concedida à DW na embaixada da
Ucrânia, abrigada numa casa alugada em Brasília, Melnyk argumentou que seria
importante receber armas do Brasil, o que, segundo ele, se constituiria numa
ajuda humanitária.
LEIA A ENTREVISTA:
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Na avaliação do senhor,
quais são os maiores equívocos no Brasil sobre a guerra que a Rússia está
travando contra a Ucrânia, na sociedade e no plano político? Como planeja
combatê-los?
Andrii Melnyk: Os brasileiros sabem que existe o Estado independente da Ucrânia.
Mas, basicamente, o conhecimento é muito escasso. Mas não é culpa dos
brasileiros, é nosso trabalho que não tem sido feito de forma apropriada nas
últimas três décadas.
É nosso trabalho e nossa missão nos aproximarmos da
sociedade brasileira e da comunidade política, fazer este contato e explicar
nossa causa. Ficamos sem embaixador aqui por um longo período e isso atrapalhou
a comunicação sobre o que aconteceu quando ocorreu a grande invasão em
fevereiro de 2022.
Essa guerra de agressão, que pode parecer distante
dos brasileiros geograficamente falando, afeta também a essência do DNA do
Estado brasileiro, e ameaça as fundações da ordem internacional. E o Brasil é
um dos países líderes dentro da ONU que tenta fortalecer esta ordem.
Minha segunda tarefa é mostrar para os brasileiros
que a Ucrânia é mais do que apenas uma vítima desta guerra terrível. Temos que contar as histórias das pessoas. Ano passado, eu estava em Kiev, eu vivenciei os bombardeios noturnos
diários. Muitos amigos meus morreram na linha de combate, muitos se feriram.
Civis perderam suas vidas, suas casas. Temos também que contar a história da
Ucrânia, o maior país em termos geográficos da Europa. Isso é algo que temos em
comum com o Brasil, como o maior país da América do Sul.
·
Na Alemanha, onde o senhor foi embaixador da Ucrânia de 2015 a 2022, ganhou a
reputação de ser franco e de criticar abertamente a classe política do país,
incluindo a liderança do governo. O senhor pretende adotar a mesma postura no
Brasil?
Honestamente, eu não sei ainda o caminho que eu
devo escolher. É fato que não haverá um cenário de 'copia e cola', cada
situação é única. Eu me sinto honrado por ter servido na Alemanha, tive o
privilégio trabalhar lá por sete anos antes da grande invasão russa.
Eu era muito franco quando a guerra começou. Era um
apelo sincero meu. Eu não conseguia entender por que a Alemanha, que se
envolveu tanto nas negociações de Minsk e
que tentava nos ajudar a resolver a primeira agressão russa com a anexação da Crimeia, em 2014,
sabendo de todos os riscos, não nos forneceu armas. Minha convicção pessoal é
que isso teria prevenido a atual invasão russa, iniciada em 2022. Tendo
esse enorme peso geopolítico e econômico, a Alemanha poderia ter desempenhado
outro papel para conter a Rússia ou mesmo evitar a guerra, pelo menos naquele
momento. Isso não aconteceu.
No Brasil, a tarefa é diferente porque a conexão,
por assim dizer, não é tão forte. Há uma comunidade de imigrantes ucranianos aqui
de mais de 130 anos no Paraná, existem mais de 600 mil brasileiros com raízes
ucranianas. Mas, basicamente, para a maioria das pessoas aqui, a Ucrânia ainda
não parece ter um grande significado por enquanto.
Minha meta aqui é contar a história da guerra. Há
muitas coisas que precisam ser faladas. Podemos começar com o sequestro de crianças ucranianas: milhares delas foram levadas à força para a Rússia. Elas são dadas
para adoção forçada a famílias russas para serem reeducadas. Isso está
acontecendo agora, no século 21. É pura barbaridade. Há prisioneiros de guerra
ucranianos sendo torturados.
>>>> "Pode-se
até permanecer neutro de alguma forma"
Há muitos assuntos práticos que têm significado
para nós, não só do ponto de vista político e diplomático. A diplomacia
brasileira faz parte das mais fortes do mundo, com grande tradição. O Itamaraty
é um templo da diplomacia, com todas as pré-condições para ter orgulho dessa
tradição, mas a sociedade, o jornalismo, ativistas políticos, ONGs – todos
podem desempenhar um papel para influenciar a liderança russa a libertar
crianças, na troca de prisioneiros de guerra.
São questões humanitárias. Pode-se até permanecer
neutro de alguma forma. Há muito o que pode ser feito aqui para nos ajudar a
aliviar as consequências desta guerra terrível. Há áreas enormes na Ucrânia que
estão cheias de minas. O Brasil também poderia ajudar a liberar essas áreas,
enviando especialistas que podem ajudar a tornar possível o retorno seguro dos
moradores.
Na área de meio ambiente, o Brasil também pode
ajudar. Nós estamos falando de crimes de guerra em escala industrial que foram
cometidos desde o primeiro dia. Quase ninguém fala sobre os danos ecológicos: florestas
destruídas, campos que não podem mais ser cultivados nos próximos anos ou
décadas.
Como o Brasil, a Ucrânia é um celeiro mundial
importante. Então não é só uma guerra nossa, é uma guerra que tem repercussão
em outros países, [é uma] ameaça à segurança alimentar.
>>> Liderança do
Brasil e obrigação moral
O Brasil pode nos ajudar a garantir que haverá
um julgamento de todos esses crimes humanitários. Todos aqueles que perpetraram
crimes de guerra, estupro, tortura, que mataram civis, devem ser julgados. Se
isso não for feito, se não recuperarmos as áreas ocupadas, haverá um problema,
um mau exemplo ficará para outros países, que poderiam cometer os mesmos crimes
de guerra, genocídio, crimes contra
a humanidade.
O Brasil tem esta ambição de ter um papel de
liderança, que é ancorada em seu tamanho geográfico, demografia, em sua
economia, em sua cultura. Acho que é uma obrigação moral estar mais engajado e
mostrar esta liderança para que outros possam seguir.
·
Em abril, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva disse que a decisão de iniciar a guerra foi tomada
tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia. Na semana passada, durante seu
pronunciamento de abertura na Assembleia Geral das Nações Unidas, ele optou por
adotar um tom distante em relação à guerra na Ucrânia, segundo analistas ouvidos pela
DW. Ele não mencionou especificamente a Rússia, apenas a guerra na Ucrânia, num
contexto de outros conflitos no mundo – segundo os especialistas, não houve
ênfase no conflito. Isto pode não ter agradado ao presidente ucraniano
Zelenski, que não aplaudiu Lula. Como o senhor vê a posição do Brasil em
relação à guerra na Ucrânia? Essa posição é equivocada?
Eu não diria isso. Em sua posição oficial, o Brasil
pertence ao grupo, agora composto por 141 países, que, em fevereiro, na
Assembleia Geral da ONU, condenou a invasão, condenou a
violação das leis internacionais, além de fazer parte da ampla comunidade
internacional que tenta nos ajudar a encontrar uma solução pacífica.
Eu estou muito contente e orgulhoso que pudemos
organizar este primeiro encontro entre Lula
e Zelenski em Nova York na semana passada. Até então, os dois haviam se falado
apenas uma vez por telefone em março. Depois disso, houve muitas declarações,
muitas emoções, e isso não foi útil. Ninguém se beneficia disso e ninguém
conseguia entender o que estava acontecendo – tomando por base a posição
oficial do Brasil, segundo a qual o Brasil está a bordo conosco.
Não foi fácil organizar este encontro devido a esse
volume de emoções que foram criadas de forma artificial. Eles conversaram cerca
de uma hora e dez minutos. Foi uma conversa franca e honesta entre dois líderes
muito ambiciosos, sem grandes expectativas, mas com o desejo de entender melhor
a posição de cada um. Foi um bom começo. Podemos chamar de grande avanço,
depois deste círculo vicioso de concepções e interpretações equivocadas vividas
no passado.
·
"Iniciar negociações
agora faria pouco sentido"
Não temos um processo de paz. Nós só temos uma
guerra brutal porque Putin não está disposto a
negociar. E isso foi um dos tópicos do encontro. Meu presidente tentou explicar
para Lula por que iniciar negociações [de paz] agora faria pouco sentido. Não
há uma mínima confiança sobre o que o chefe do Kremlin diz ou faz. As promessas que ele faz são palavras vazias.
Nós queremos paz. O Brasil pode ajudar a preparar o
terreno para essas negociações. Chegar a um cessar-fogo não é o suficiente para
atingir uma paz duradoura. Poderia acontecer o mesmo que ocorreu com o Acordo
de Minsk, que não foi implementado, e muitos países negligenciaram as
consequências e uma grande guerra se instalou no nosso território.
·
O senhor então acredita
que o Brasil poderia liderar este processo das negociações de paz?
Certamente. Para mim, o Brasil é predestinado a ter
um papel mais ativo por diferentes razões. Este tem que ser um processo muito
criativo, já que não há um exemplo similar no passado recente. Pela primeira
vez, há um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU atacando, agredindo, invadindo um país vizinho e com um direito
de vetar qualquer decisão política.
É um dos principais problemas da ordem legal atual
que está ameaçada pela Rússia e não há um instrumento para forçar o país
agressor a parar a invasão. Nosso apelo a todos os amigos e parceiros
brasileiros é pensar fora da caixa, pensar de forma criativa. Esse é o maior
desafio que a humanidade enfrenta depois da Segunda Guerra, um trauma que
continua vivo para nós: na Segunda Guerra, perdemos cerca de 10 milhões de
ucranianos.
Como na Segunda Guerra, os civis são os que mais
sofrem, porque a Rússia usa táticas sinistras de colocar os civis como alvo,
atacando vilas, hospitais, escolas, museus, empresas, portos. No campo de
batalha, a Rússia não se mostra como um país com um grande Exército. Parece
que, para compensar isso, eles atingem os civis para criar terror, forçar os
ucranianos a deixar o país, ou ir para outras regiões mais distantes do
conflito.
Atualmente, as estruturas existentes dentro da ONU
não oferecem soluções para nos ajudar a parar a guerra por meio diplomático.
Estamos pedindo ajuda para pensar nesta solução não só ao governo brasileiro,
mas também a think tanks, ONGs, universidades.
·
O Brasil deveria fornecer
armas para a Ucrânia?
Primeiro, é uma decisão de total soberania do
governo brasileiro, que tem que cuidar de seus interesses e formular sua
própria agenda. Sob o nosso ponto de vista, podemos falar apenas da perspectiva
de vítimas, de civis. Gostaria de ressaltar isso novamente, pois uma coisa que
não é sempre compreendida aqui é a natureza maligna desta guerra. A propaganda
russa diz todo o tempo aqui que se trata de um conflito menor, quase uma guerra
civil, que a Rússia está lutando contra o Ocidente, contra a Otan – que seria má – que
desejaria invadir o território dela.
E gostaria de repetir esse dado: esta é uma guerra
que está sendo travada contra alvos que são 94% civis. Drones, foguetes e todas
as outras armas que eles usam são direcionadas para civis em 94% dos casos.
Isso muda tudo.
Por que Lula não quer ajudar a Ucrânia com armas?
É uma guerra que está sendo travada contra
idosos, crianças, mulheres. Se não fosse o sistema de defesa aéreo, fornecido
por países como a Alemanha, que abate os drones e foguetes que voam
literalmente sobre nossas cabeças na Ucrânia, mais escolas e casas teriam sido
destruídas e mais pessoas teriam morrido.
Desse ponto de vista, são um pedido e uma
expectativa justos por parte da sociedade ucraniana. O Brasil poderia ter um
papel de liderança também aqui na América Latina nesse sentido. Enviar munição
para sistemas de defesa como os Gepard, enviados pela Alemanha em 2022,
poderiam salvar vidas, não seria participar das hostilidades, ou
assumir um lado ou outro do conflito. Eles ajudam os nossos militares a
"fechar o céu", deixar as cidades mais seguras.
·
"Ninguém espera que
o Brasil se envolva nas zonas de conflito"
Ninguém espera que o Brasil se envolva nas zonas de
conflito, mas que ajude de outras maneiras, como, por exemplo, com a retirada
de minas, fornecendo munições para o sistema de defesa aéreo e veículos para
transporte de feridos nas cidades bombardeadas. O Brasil também poderia nos
ajudar na questão da energia, com geradores e outros equipamentos que poderiam
ser enviados às cidades e que ajudariam os ucranianos a sobreviver ao próximo
inverno [no Hemisfério Norte], que será uma estação muito difícil.
·
Por que a Ucrânia até
agora praticamente não conseguiu mobilizar um apoio significativo no Sul Global?
É uma pergunta difícil, e ainda não temos uma
resposta apropriada. Há muitos fatores que, infelizmente, nós deixamos de lado
nestas três décadas depois de termos conquistado novamente a nossa
independência.
Nós não investimos muito tempo e atenção em todos
os países que agora são chamados de Sul Global, um termo do qual eu não gosto
muito porque coloca países muito diferentes numa mesma denominação. Em parte,
foi um erro nosso.
Nós estivemos muito concentrados em outras questões
importantes, como entrar para a União Europeia e para
a Otan. Se fizéssemos parte desta
comunidade de defesa, a Ucrânia não teria sido agredida pela Rússia.
Não tínhamos recursos suficientes para prestar
atenção a outros países. Agora, essa guerra abriu nossos olhos, tínhamos que
ter sido mais ativos na América Latina, Ásia, em
outras regiões. Ter uma embaixada não é suficiente. Ao mesmo tempo, os russos têm estado presentes não apenas diplomaticamente, mas com suas missões de negócios e
cobertura de mídia.
Agora esta tarefa se tornou, talvez, cem vezes mais
difícil. Estamos tentando corrigir isso. Estamos abrindo várias representações
diplomáticas na África, mesmo gastando atualmente 60% do nosso PIB com Defesa.
Não esperamos resultados rápidos. Precisamos investir pelo menos uma década
nesta expansão diplomática, ajudando nossos negócios a estarem mais presentes
também nestes países.
·
Lula disse recentemente
que o Brasil não prenderia Vladimir Putin se ele comparecesse à cúpula do G20
no Rio de Janeiro em 2024. Mais tarde, ele disse que caberia às autoridades judiciais brasileiras decidir. O que o senhor acha
disso?
Tudo o que eu posso dizer é que Ucrânia gostaria
que o presidente Zelenski fosse convidado para a cúpula que reúne todos os
grandes líderes das 20 nações mais ricas. É algo que nós já dissemos aos nossos
amigos brasileiros.
Nós gostaríamos de nos engajar com a presidência
brasileira para que esta presidência do G20 fosse bem-sucedida. E não estamos
falando apenas da agenda da cúpula, que inclui combate à pobreza, às
desigualdades, aborda questões da Amazônia, mas também de temas como restaurar
a ordem mundial. Isso é do nosso interesse.
Se o Sr. Putin estará presente ou não, isso é uma
decisão dos nossos amigos brasileiros. Nosso desejo é que, durante a
presidência do Brasil, a Ucrânia possa estar entre os participantes, talvez
como convidados especiais – já que não somos membros do grupo – para apresentar
nossa causa, a de uma guerra que temos que travar por se tratar de uma questão
de existência.
A partir desta perspectiva [de manutenção da ordem
mundial], penso que seria de interesse do Brasil e de outros países-membros do
G20, talvez até para a Rússia, estar presente no Rio para trocar visões. Espero
que meu presidente possa visitar o Brasil em 2024 (antes ou durante a cúpula do
G20). Seria um sinal de visão ampla sobre essa ordem global e ajudaria o Brasil
a nos entender melhor.
Levando em consideração o interesse do Brasil em se
tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, que deve ser
reformado, o país vai precisar de aliados e amigos no Leste da Europa.
·
Como o senhor acha que
essa guerra vai acabar?
Para mim, como cidadão da Ucrânia, não apenas como
diplomata ou como embaixador, pode não haver outra saída do que a Ucrânia
libertar todas as áreas que foram ocupadas, incluindo a Crimeia. Ou seja, só
quando a Ucrânia tiver restaurado as suas fronteiras internacionalmente
reconhecidas a partir de 1991 é que se poderá falar numa paz duradoura.
É importante enfatizar isso porque, como vocês
provavelmente sabem e ouviram, e também aqui no Brasil, tem havido algumas
discussões sobre possíveis linhas de compromisso, e uma das sugestões é que
Crimeia deva ser colocada entre "colchetes" e a Ucrânia apenas tenha
que se esforçar para libertar os territórios que foram ocupados depois de
fevereiro de 2022.
Se a comunidade internacional permitir que este
falso compromisso seja alcançado, isso não garantiria uma paz duradoura. Essa
ocupação já dura mais de nove anos. Se a questão da justiça for simplesmente
deixada de fora deste futuro acordo de paz – que esperamos que seja universal e
global –, qualquer que seja a forma que assuma, isso significaria que dezenas
de milhares de crimes de guerra poderiam não ser levados à Justiça e isso não é
nada bom para a ordem global.
E a última, mas não menos importante, questão é,
obviamente, a questão das garantias futuras. Como prevenir, como garantir, por
meios diplomáticos, que a Rússia não iniciará uma nova guerra semelhante ou
talvez ainda mais brutal no futuro.
Fonte: BBC News Brasil
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