Banco do Brasil é alvo de inquérito inédito sobre papel na escravidão e
MPF pede reparação
O Ministério Público Federal (MPF) notificou o
Banco do Brasil (BB) na tarde desta quarta-feira (27/09) sobre a abertura de um
inquérito civil público que pretende investigar o envolvimento da instituição
na escravidão e no tráfico de cativos africanos durante o século 19.
A ação, inédita no país e obtida com exclusividade
pela BBC News Brasil, visa iniciar um movimento de cobrança por reparação
histórica de grandes e centenárias instituições brasileiras - estatais e
privadas - que de alguma forma tenham participado ou fomentado a escravidão no
país.
O inquérito foi proposto por um grupo de 14
historiadores de 11 universidades, que pesquisaram e escreveram um texto sobre
o que se sabe da relação do Banco do Brasil com a economia escravista e seus
negociantes.
Eles descobriram, por exemplo, que entre os
fundadores e acionistas do BB estavam alguns dos mais notórios traficantes de
escravizados da época - entre eles José Bernardino de Sá, tido como o maior
contrabandista de africanos do período (leia mais abaixo).
Três procuradores aceitaram a sugestão e elaboraram
uma ação com o objetivo de fazer com que o banco estatal reconheça e tome
medidas para investigar e tornar públicas suas ações durante a escravidão.
Entre essas ações, está o financiamento, em um
primeiro momento, de pesquisas acadêmicas sobre o assunto para que, no futuro,
possa bancar projetos de reparação e políticas públicas voltadas à comunidade
negra.
“O debate sobre reparação está acontecendo no mundo
inteiro. Da nossa parte, queremos aprofundar a discussão com o Banco do Brasil
e com a sociedade para que essa história não seja mais silenciada”, diz Julio
Araujo, procurador regional dos direitos do cidadão do MPF, que assina o
despacho com outros dois colegas, Jaime Mitropoulos e Aline Caixeta.
“O que
existe hoje é uma naturalização do papel de várias instituições brasileiras
nesse período. Essa é uma discussão importantíssima a ser encarada: até que
ponto cabe a reparação histórica e qual é a melhor maneira de fazê-la?”,
questiona o procurador.
A escravidão é considerada um crime contra a
humanidade. Por isso, não prescreve e permite que ações relacionadas ao período
ainda possam correr na Justiça.
Instituições de alguns países, como universidades e
bancos nos Estados Unidos e Inglaterra, têm reconhecido seu papel na escravidão
e criado medidas de reparação, que vão de fomento a pesquisas acadêmicas e
indenizações.
No documento enviado ao Banco do Brasil, o MPF
estipulou um prazo de 20 dias para a presidência da instituição responder a uma
série de questões:
“A posição do banco sobre sua relação com o tráfico
de pessoas negras escravizadas”, “informações sobre financiamentos realizados
pelo banco e relação com a escravidão”, “informações sobre traficantes de
pessoas escravizadas e sua relação com o banco” e “iniciativas do banco com
finalidades específicas de reparação em relação a esse período.”
Os procuradores também solicitaram uma reunião com
a direção do BB para discutir medidas de reparação histórica no dia 27 de
outubro, no Rio de Janeiro. Também convidaram para o encontro o grupo de
historiadores que propôs a ação e membros dos ministérios de Direitos Humanos e
Igualdade Racial.
Segundo Julio Araujo, o inquérito civil “é
diferente de uma investigação tradicional”, e pode terminar em um acordo, Termo
de Ajuste de Conduta (TAC) ou mesmo uma ação judicial contra o banco caso a
instituição se recuse a discutir o tema. “É imprevisível, não sabemos qual o
rumo ele pode tomar, mas queremos uma resposta do banco”, afirma o procurador.
Contatado pela BBC News Brasil às 17h desta
quarta-feira, o Banco do Brasil informou que "foi notificado no final da
tarde de hoje" e que o "jurídico da instituição analisará o teor do
documento e prestará as informações necessárias dentro do prazo previsto"
(pelo MPF).
Mas, afinal, como o Banco do Brasil participou da
escravidão?
·
História do BB
Nos últimos cinco meses, os historiadores
pesquisaram em arquivos públicos a participação de escravocratas e traficantes
na fundação e estabelecimento do Banco do Brasil como a maior instituição
financeira do Império.
No início da pesquisa, havia uma questão
fundamental: o Banco do Brasil de hoje é o mesmo do século 19?
“Inicialmente, na minha cabeça, a resposta era
negativa, porque ele havia sido fundado, liquidado e refundado outras vezes”,
explica o historiador Thiago Campos Pessoa, pesquisador do Laboratório de
História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), um dos
acadêmicos que assinaram o documento enviado ao MPF.
A resposta para o dilema, conta Pessoa, veio do
próprio banco. “Oficialmente, o BB conta que sua história começa em 1808, com a
vinda do rei D. João 6º ao Brasil. Ou seja, mesmo com as refundações, ele
considera que é sempre a mesma instituição. Então, partimos dessa premissa: é o
mesmo banco”, afirma Pessoa.
De fato, em seu site, o Banco do Brasil afirma ter
mais de 200 anos de história, embora não cite a escravidão nem suas três
refundações. “Estamos cuidando do futuro com responsabilidade, e cultivando, há
mais de 200 anos, o valor dessa relação que temos com os brasileiros”, diz o
texto da empresa na seção “Quem somos”.
Em sites de órgãos do governo federal, como do
Banco Central e do Arquivo Nacional, a história do BB sempre começa em 12 de
outubro de 1808, meses depois da chegada da corte portuguesa ao Brasil.
Quando foi criado, o objetivo da instituição era
enfrentar a escassez de crédito e de moeda do Império português, mas sua
atuação se reduziria ao financiamento público. Segundo os historiadores, porém,
parte do dinheiro do banco vinha de taxas cobradas de embarcações dedicadas ao
tráfico de africanos.
“A escravidão e o comércio negreiro financiavam a
constituição do banco também de maneira indireta por meio de subscrições”,
escrevem os pesquisadores.
Ou seja, o governo imperial concedia títulos de
nobreza a escravocratas e comerciantes ilegais que colocavam dinheiro no banco.
Com dificuldades financeiras, esse primeiro BB foi
dissolvido em 1829 e depois foi refundado em 1833, mas essa fase durou apenas
um curto período.
É na refundação de 1853 que a ligação do Banco do
Brasil com a escravidão fica mais estreita, segundo os pesquisadores que
procuraram o MPF.
Eles descobriram, por exemplo, que grandes
traficantes de escravizados fizeram parte do grupo de empresários que assinaram
o termo de refundação da instituição.
Embora tenha renascido como um banco privado, o BB
tinha finalidades públicas, como o controle do mercado de crédito e o monopólio
da emissão da moeda.
Um desses empresários que fundaram o BB era José
Bernardino de Sá, que se tornou seu maior acionista em 1853. Um dos homens mais
ricos do Império, o magnata tinha fazendas, inúmeros imóveis e até um teatro no
Centro do Rio de Janeiro.
Mas sua principal atuação era o tráfico de
africanos, diz o historiador Thiago Campos Pessoa, da UFF, que há anos estuda a
vida do contrabandista e há poucos meses se deparou com o nome dele entre os
fundadores do Banco do Brasil.
“Esse era um mercado muito complexo e envolvia
muitas pessoas dos dois lados do Atlântico. Mas também era extremamente
lucrativo, porque, na época, um escravizado valia muito dinheiro. Uma única
viagem de um navio negreiro podia enriquecer um traficante”, afirma.
Segundo Pessoa, Bernardino de Sá tinha um barracão
ao norte de Luanda, capital de Angola, onde deixava os africanos sequestrados
até o embarque. Eles chegavam ao litoral de São Paulo e Rio de Janeiro e,
depois, eram deixados em fazendas do empresário até serem negociados. Estima-se
que o traficante tenha contrabandeado 20 mil africanos entre 1825 e 1851.
Essa operação, porém, era considerada ilegal desde
1830, quando o comércio transatlântico de pessoas foi proibido por lei sob
pressão da Inglaterra. A questão é que a proibição “não pegou” no Brasil e
ficou conhecida como “lei para inglês ver”.
Nos anos seguintes, o tráfico se intensificou com
anuência e participação do Império. Calcula-se que cerca de 753 mil africanos
foram trazidos ilegalmente ao Brasil em apenas duas décadas, entre 1830 e 1850.
Como comparação, em todo o período da escravidão no
Brasil, que durou cerca de 300 anos, 5 milhões de pessoas foram trazidas ao
Brasil.
“Nessas duas década o Brasil foi responsável pelo
maior crime contra a humanidade do século 19”, diz Bruno Rodrigues de Lima,
doutor em História e o Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em
Frankfurt, na Alemanha, e especialista na história da escravidão desse período.
“A lei assinada pelo imperador D. Pedro 2º tem
efeito contrário. O tráfico se torna massivo, em escala industrial. O Rio de
Janeiro se tornou na época a capital mundial da escravidão. E, para esse
mercado dar certo, era preciso muito dinheiro, crédito, operações bancárias e
documentos oficiais”, explica Lima, organizador das Obras Completas de Luiz
Gama.
Era nesse contexto que atuava José Bernardino de
Sá.
“Não era segredo o que ele fazia, ele era uma
pessoa rica e conhecida, com muitos investimentos. Mas foi o tráfico que o
enriqueceu. Esse ‘comércio ilegal’ era naturalizado, era conduzido pelo Estado
e tinha o Estado como parceiro”, diz.
Segundo os historiadores, em 1855, José Bernardino
de Sá possuía 5.216 ações do Banco do Brasil, o que representava um montante de
cerca de mil contos de réis, fortuna maior do que a de muitos fazendeiros do
Vale do Paraíba, região cafeeira entre o Rio e São Paulo e morada dos homens
mais ricos do Brasil na época.
Mas havia outros nomes conhecidos da escravidão
entre os fundadores do Banco do Brasil, inclusive em sua diretoria.
Um deles era João Pereira Darigue Faro,
vice-presidente do banco em 1855. Visconde do Rio Bonito, Darigue Faro era
membro de uma das famílias mais ricas do Vale do Paraíba fluminense. Segundo o
documento do MPF, sua família possuía 540 escravizados, “certamente dos maiores
proprietários de escravos no Império”, diz o texto.
Outro nome era João Henrique Ulrich, diretor do BB
por uma década a partir de 1854. Sua história com a escravidão também é
conhecida. Em 1842, ele foi flagrado pelo governo de Angola comandando um
barracão de escravizados em Luanda. Segundo jornais da época, Ulrich fez
fortuna com o tráfico e intermediando negócios do café.
·
Ligações do BB com a
escravidão
Embora entre os fundadores do BB estejam
traficantes de escravizados, até que ponto o banco estava ligado à escravidão e
quanto de seu dinheiro vinha desse sistema?
Para Clemente Penna, pesquisador da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) que também assina o documento, o sistema
financeiro da época “dependia da escravidão”, mas ainda faltam mais pesquisas
acadêmicas para determinar o papel de cada instituição.
“Era uma economia que tinha pouca moeda oficial
circulando. O que havia era um sistema baseado em títulos de créditos,
hipotecas, letras de câmbio… Quem tinha muito dinheiro em caixa eram os
traficantes. Então, foram eles que financiaram o Estado, os títulos da dívida e
o capital societário dos bancos”, explica.
A pesquisa do historiador, que analisou 3 mil
execuções de dívidas no Rio de Janeiro entre 1830 e 1860, aponta que
escravizados eram utilizados inclusive como garantia do pagamento de empréstimos.
Quando havia uma débito não pago, a Justiça
determinava que escravizados pertencentes ao devedor fossem enviados a um
depósito no antigo Cais do Valongo, na Zona Portuária do Rio, onde eram
“armazenados” até que o dinheiro fosse devolvido. Se isso não acontecesse, o
cativo era leiloado e o valor era usado para saldar a dívida.
Segundo Penna, 65% das execuções de dívidas no
período tiveram ao menos um escravizado levado a esse depósito - algumas dessas
negociatas tiveram participação dos bancos.
Para o historiador, todas as operações financeiras
da época tinham ligação com a escravidão. “Quem fazia dinheiro no século 19
estava ligado com a escravidão, porque ela estava em toda a sociedade, em toda
esquina. Todo o sistema financeiro dependia dela”, explica.
O Banco do Brasil também concedeu empréstimos a
fazendeiros proprietários de escravizados.
Segundo a tese de doutorado de Thiago Campos
Pessoa, da UFF, o banco emprestou 800 contos de réis para José e Joaquim de
Souza Breves, conhecidos como Irmãos Breves, em 1871.
A pesquisa aponta que, além de acionista e com
membros na diretoria do BB, a família Breves era conhecida como uma das maiores
proprietárias de escravizados do país, com cerca de 5 mil pessoas espalhadas em
suas fazendas no Rio e em São Paulo.
“O que acontecia era que o banco financiava a
escravidão e a escravidão financiava o banco. O dinheiro que entrava e o que
saía faziam parte desse sistema”, explica Pessoa.
·
Movimento internacional
O inquérito do MPF segue um movimento global por
reparação histórica de grandes instituições que participaram da escravidão.
Na Inglaterra, por exemplo, o caso mais emblemático
é do Bank of England, fundado em 1694, que foi proprietário de centenas de
escravizados no século 18. Recentemente, o banco reconheceu seu papel na
escravidão e, por meio de pesquisas históricas, encontrou descendentes de
escravizados, iniciando um processo de reparação financeira às famílias.
Já nos Estados Unidos, uma série de universidades,
como Harvard e Brown University, também reconheceu o papel que proprietários de
escravos tiveram em sua fundação e crescimento. A partir daí, as entidades
financiaram pesquisas acadêmicas de longo prazo e em projetos voltados à
comunidade negra afetada.
Para o procurador Julio Araujo, o inquérito contra o
Banco do Brasil pode ser o pontapé inicial das discussões sobre reparação
histórica no país.
“É preciso encarar essa discussão, porque esse
passado e essa memória fazem parte e ainda afetam nosso presente, por meio das
desigualdades sociais e do racismo estrutural. A sociedade e as grandes
instituições brasileiras precisam se olhar no espelho e enfrentar esse
assunto”, diz.
Já o historiador Bruno Lima afirma que “todas as
instituições brasileiras com mais de 150 anos, sejam elas bancos, universidades
e até tribunais de Justiça, têm em suas mãos o sangue e as digitais da
escravidão.”
“Elas enriqueceram com a escravidão, compraram e
venderam pessoas. É preciso um esforço institucional e uma pressão da sociedade
para que essa história seja escavada, seja reconhecida, e que a gente consiga
finalmente compreender como foi formado o Brasil”, afirma.
Fonte: BBC News Brasil
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