quinta-feira, 28 de setembro de 2023

ONU vai questionar Brasil por ofensiva contra aborto

A situação do aborto será alvo de uma cobrança por parte da ONU que, nesta quinta-feira e sexta-feira, realiza uma sabatina com o Brasil por conta de direitos econômicos e sociais no país. A reunião ocorre em Genebra e terá a presença de uma ampla delegação brasileira.

O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) informou que 18 peritos internacionais irão avaliar o cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. “A delegação brasileira será chefiada pela secretária-executiva da Pasta, Rita Oliveira, que redirecionará os posicionamentos da atual gestão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania a respeito do relatório entregue no governo anterior e apresentará as políticas em curso atualmente no Brasil sobre a temática”, explicou o governo.

Se os informes deixam claro que diversos aspectos serão tratados nas seis horas de debates, um deles é a situação do aborto no Brasil, onde 72 projetos de lei tramitam no Congresso apontando para a ampliação de restrições contra essa prática e dificultando qualquer ação por parte de mulheres. Num documento enviado pelo Comitê de Direitos Econômicos e Sociais da ONU ao governo brasileiro, fica claro que a entidade cobrará respostas sobre o tema.

Os peritos pedem que o estado: Informe o Comitê sobre o progresso feito para liberalizar a lei restritiva do aborto do Estado Parte, que atualmente criminaliza as mulheres que se submetem a abortos. Descreva os obstáculos para a obtenção do acesso universal à assistência à saúde sexual e reprodutiva e à assistência à saúde materna de qualidade no Estado Parte.

Numa resposta ainda enviada no ano passado pelo governo de Jair Bolsonaro, o Brasil indicou que o Pacto Internacional não faz referência a um eventual “direito” ao aborto. “Pelo contrário, o Artigo 10 protege expressamente a família: “A mais ampla proteção e assistência possíveis devem ser concedidas à família, que é a unidade grupal natural e fundamental da sociedade”. Em sua resposta, o governo Bolsonaro indicou que “o Brasil defende a vida incondicionalmente desde a concepção”. “Mesmo levando isso em conta, o Estado brasileiro respeita integralmente as disposições legais que permitem a realização de abortos em situações extremamente específicas”, disse.

O governo anterior ainda apontou que “o aborto não é punido, quando praticado por médicos, nos casos em que a gravidez põe em risco a vida da mulher, quando é resultado de estupro, e em caso de anencefalia, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, demonstrando, assim, que o arcabouço jurídico brasileiro prescreve normas que visam dar maior proteção à vida, inclusive à vida intrauterina”.

Ativistas contestam versão do governo Bolsonaro O posicionamento do governo levou a sociedade civil a reagir. Mais de uma dezena de informes paralelos foram enviados para a ONU por ativistas e ONGs nos últimos meses, subsidiando os peritos com outras versões sobre a realidade do país. De acordo com documentos enviados ao Comitê pela entidade Human Rights Watch, de 2018 a 2022, os tribunais brasileiros julgaram uma média de 400 casos criminais de aborto por ano.

Os dados são do Instituto de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito de Columbia. “As mulheres negras têm maior probabilidade de serem processadas, o que geralmente acontece depois que os profissionais de saúde as denunciam por suspeita de aborto, violando seu direito à privacidade”, diz. O documento também informa que o Brasil teve o maior número de casos de estupro registrados em sua história em 2022: 74.930, de acordo com um relatório recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em mais de 60% dos casos, a sobrevivente tinha menos de 14 anos de idade.

Embora as grávidas sobreviventes de estupro tenham direito ao aborto legal, o acesso a ele pode ser quase impossível. Trecho de documento enviado pela HRW para peritos da ONU Segundo a entidade, o governo Bolsonaro “tentou restringir ainda mais o acesso a abortos, emitindo uma regulamentação em 2020 que exigia que a equipe médica denunciasse à polícia qualquer pessoa que buscasse aborto após estupro, sem o consentimento da sobrevivente e mesmo que ela não desejasse denunciar a agressão”.

O governo Lula revogou a norma em janeiro de 2023. Mas apenas 73 hospitais em um país com mais de 203 milhões de pessoas realizaram abortos legais, informou a organização Artigo 19 em setembro de 2022. “A falta de acesso a unidades de saúde que realizam abortos legais, gratuitos e seguros e a negação do acesso ao aborto legal em unidades de saúde se somam a barreiras como o estigma e o medo de processos que podem violar os direitos humanos de mulheres e outras pessoas grávidas”, alerta. “Esses fatores também podem impedi-las de procurar atendimento quando sofrem emergências obstétricas ou complicações decorrentes de abortos autogeridos ou abortos espontâneos.

Entre 2016 e 2020, pelo menos 300 mulheres morreram de complicações relacionadas ao aborto, de acordo com a Gênero e Número”, destacou. Diante dessa situação, a Human Rights Watch recomendou que o Comitê pergunte ao governo do Brasil: Continua após a publicidade Como o governo está garantindo que todas as pessoas com direito legal ao aborto possam ter acesso a um aborto seguro e legal? Que medidas o governo está tomando para reduzir a morbidade e a mortalidade devido ao aborto inseguro e para combater o estigma em torno do aborto?

A Human Rights Watch ainda pediu que o Comitê solicite ao governo do Brasil que: Descriminalize o aborto e garanta que ele seja seguro, legal e acessível a todos. Garanta o acesso à assistência pós-aborto sem discriminação, maus-tratos ou medo de processos, inclusive em casos de aborto autoadministrado. Fornecer educação sexual abrangente em todas as escolas, incluindo um enfoque na desestigmatização do aborto.

Num outro documento entregue para a ONU, a GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra – destacou que “mulheres com melhores condições socioeconômicas buscam recursos técnicos para um aborto seguro, enquanto mulheres negras e pobres buscam soluções inseguras e acabam com complicações, sofrimento e mortes”. Para a entidade, o estado brasileiro viola artigos do Programa de Ação de Durban e pede que essa situação seja corrigida. Projetos de Lei no sentido contrário às normas internacionais

Em outro documento recebido pelos peritos, a entidade Conectas alertou que existem 72 projetos de lei tramitando no Congresso que poderiam ampliar as restrições ao aborto. Uma delas é o Projeto de Lei no. 434/2021, denominado Estatuto do Nascituro, que propõe a proteção integral do “nascituro”. Na prática, segundo o documento, a iniciativa “sugere que nunca será admissível causar diretamente a morte do nascituro, mesmo que um de seus genitores tenha cometido violência sexual, pois “o nascituro concebido a partir de um ato de violência sexual tem os mesmos direitos de todos os demais nascituros”.

“Esse projeto de lei é um imenso ataque aos direitos das mulheres e representa um retrocesso em termos de saúde reprodutiva”, alerta a entidade. Continua após a publicidade “O Projeto de Lei também ignora as recomendações da ONU sobre direitos sexuais e reprodutivos, bem como os direitos à dignidade, liberdade e autodeterminação das mulheres como parte crucial da luta pela igualdade de gênero”, destaca.

A Conectas também aponta como, num guia ainda apresentado em 2022, o governo Bolsonaro declarou que “não existem abortos legais no Brasil” e que “todo aborto é crime”.

O grupo ainda denuncia a ex-ministra e hoje senadora Damares Alves. No documento entregue para a ONU, a entidade destaca que ela “fez várias declarações contra o aborto legal e, em 2020, envolveu-se diretamente no caso de uma menina de 10 anos que deveria se submeter ao procedimento após ter sido agredida sexualmente por um tio”. “Alves e sua equipe tentaram transferir a criança para outro hospital, pressionaram e intimidaram os profissionais de saúde responsáveis pela realização do procedimento e chegaram a revelar publicamente os dados pessoais da criança e o endereço onde a gravidez seria interrompida para impedir a realização do procedimento”, declarou.

 

Ø  Probabilidade de mulheres negras fazerem aborto é 46% maior do que para brancas, diz Fiocruz

 

Mulheres negras têm probabilidade 46% maior de fazer um aborto, em todas as idades, em relação a mulheres brancas, segundo um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com outros órgãos.

O número significa que, para cada 10 mulheres brancas que fizerem aborto, haverá, aproximadamente, 15 mulheres negras.

O levantamento indica ainda que, ao chegar aos 40 anos de idade:

  • uma em cada cinco mulheres negras terá feito ao menos um aborto;
  • entre mulheres brancas, será uma em cada sete.

“Existem desigualdades raciais em todas as edições da PNA [Pesquisa Nacional de Aborto]. São sempre as mulheres negras que mais realizam abortos. São sempre as mulheres negras as mais vulneráveis ao aborto e, consequentemente, ao aborto inseguro”, reflete a pesquisadora Emanuelle Góes, uma das autoras do estudo.

A pesquisa foi feita com uma amostra de mulheres de 18 a 39 anos de idade, gerada a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

O levantamento utilizou a técnica da coleta de dados através de urna, em que a entrevistada preenche um formulário com questões sensíveis e o deposita em um recipiente fechado.

A análise também foi baseada na Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada nos anos de 2016, 2019 e 2021, e divulgada na terça-feira (26).

Os levantamentos dos anos de 2016 e 2021 cobrem todo o Brasil urbano; já o de 2019 tem dados apenas da área urbana da região Nordeste.

Não foi possível dizer muito sobre as mulheres indígenas e amarelas (asiáticas), pois, segundo a Fiocruz, o número dessas mulheres nas amostras não é grande. A maior parte dos resultados das comparações que as inclui é vulnerável a flutuações puramente estatísticas.

A pesquisa foi publicada na revista Ciência e Saúde Coletiva da Abrasco, com coautoria de Góes, da Fiocruz Bahia, e de pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de Columbia, dos Estados Unidos.

·         Descriminalização do aborto

Na última sexta-feira (22), a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, votou pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

O voto da ministra, que vai se aposentar esta semana, diz que o aborto é uma questão de saúde pública e reprodutiva da mulher. O tema ainda será retomado em julgamento no plenário físico do STF.

Atualmente, o aborto só é permitido no Brasil em três condições:

  • em caso de estupro,
  • de risco para a vida da gestante,
  • e de fetos anencéfalos.

>>> Posição da Fiocruz

A Fiocruz diz acreditar que a criminalização impede que as mulheres acessem os serviços de saúde público e privados para realizar aborto.

Como consequência a isso, mulheres usam métodos inseguros para abortar, ficando expostas a riscos desnecessários.

A criminalização, segundo a fundação, também impediria o debate que poderia ajudar na prevenção do aborto.

“O problema fundamental é que o aborto é tratado como um crime. A criminalização restringe o acesso das mulheres ao sistema de saúde antes do aborto, pois não é disponível, e depois do aborto, por medo de denúncias e represálias”, dizem os autores do estudo.

 

Fonte: UOL/CNN Brasil

 

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