ONU vai questionar Brasil por ofensiva contra aborto
A situação do aborto será alvo de uma cobrança por
parte da ONU que, nesta quinta-feira e sexta-feira, realiza uma sabatina com o
Brasil por conta de direitos econômicos e sociais no país. A reunião ocorre em
Genebra e terá a presença de uma ampla delegação brasileira.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania
(MDHC) informou que 18 peritos internacionais irão avaliar o cumprimento pelo
Brasil do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. “A delegação brasileira será chefiada pela secretária-executiva da
Pasta, Rita Oliveira, que redirecionará os posicionamentos da atual gestão do
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania a respeito do relatório entregue
no governo anterior e apresentará as políticas em curso atualmente no Brasil
sobre a temática”, explicou o governo.
Se os informes deixam claro que diversos aspectos
serão tratados nas seis horas de debates, um deles é a situação do aborto no
Brasil, onde 72 projetos de lei tramitam no Congresso apontando para a
ampliação de restrições contra essa prática e dificultando qualquer ação por
parte de mulheres. Num documento enviado pelo Comitê de Direitos Econômicos e
Sociais da ONU ao governo brasileiro, fica claro que a entidade cobrará
respostas sobre o tema.
Os peritos pedem que o estado: Informe o Comitê
sobre o progresso feito para liberalizar a lei restritiva do aborto do Estado
Parte, que atualmente criminaliza as mulheres que se submetem a abortos.
Descreva os obstáculos para a obtenção do acesso universal à assistência à
saúde sexual e reprodutiva e à assistência à saúde materna de qualidade no
Estado Parte.
Numa resposta ainda enviada no ano passado pelo
governo de Jair Bolsonaro, o Brasil indicou que o Pacto Internacional não faz
referência a um eventual “direito” ao aborto. “Pelo contrário, o Artigo 10
protege expressamente a família: “A mais ampla proteção e assistência possíveis
devem ser concedidas à família, que é a unidade grupal natural e fundamental da
sociedade”. Em sua resposta, o governo Bolsonaro indicou que “o Brasil defende
a vida incondicionalmente desde a concepção”. “Mesmo levando isso em conta, o
Estado brasileiro respeita integralmente as disposições legais que permitem a
realização de abortos em situações extremamente específicas”, disse.
O governo anterior ainda apontou que “o aborto não
é punido, quando praticado por médicos, nos casos em que a gravidez põe em
risco a vida da mulher, quando é resultado de estupro, e em caso de
anencefalia, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal, demonstrando, assim,
que o arcabouço jurídico brasileiro prescreve normas que visam dar maior
proteção à vida, inclusive à vida intrauterina”.
Ativistas contestam versão do governo Bolsonaro O
posicionamento do governo levou a sociedade civil a reagir. Mais de uma dezena
de informes paralelos foram enviados para a ONU por ativistas e ONGs nos
últimos meses, subsidiando os peritos com outras versões sobre a realidade do
país. De acordo com documentos enviados ao Comitê pela entidade Human Rights Watch,
de 2018 a 2022, os tribunais brasileiros julgaram uma média de 400 casos
criminais de aborto por ano.
Os dados são do Instituto de Direitos Humanos da
Universidade de São Paulo e da Faculdade de Direito de Columbia. “As mulheres
negras têm maior probabilidade de serem processadas, o que geralmente acontece
depois que os profissionais de saúde as denunciam por suspeita de aborto,
violando seu direito à privacidade”, diz. O documento também informa que o
Brasil teve o maior número de casos de estupro registrados em sua história em
2022: 74.930, de acordo com um relatório recente do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. Em mais de 60% dos casos, a sobrevivente tinha menos de 14
anos de idade.
Embora as grávidas sobreviventes de estupro tenham
direito ao aborto legal, o acesso a ele pode ser quase impossível. Trecho de
documento enviado pela HRW para peritos da ONU Segundo a entidade, o governo
Bolsonaro “tentou restringir ainda mais o acesso a abortos, emitindo uma
regulamentação em 2020 que exigia que a equipe médica denunciasse à polícia
qualquer pessoa que buscasse aborto após estupro, sem o consentimento da
sobrevivente e mesmo que ela não desejasse denunciar a agressão”.
O governo Lula revogou a norma em janeiro de 2023.
Mas apenas 73 hospitais em um país com mais de 203 milhões de pessoas
realizaram abortos legais, informou a organização Artigo 19 em setembro de
2022. “A falta de acesso a unidades de saúde que realizam abortos legais,
gratuitos e seguros e a negação do acesso ao aborto legal em unidades de saúde
se somam a barreiras como o estigma e o medo de processos que podem violar os
direitos humanos de mulheres e outras pessoas grávidas”, alerta. “Esses fatores
também podem impedi-las de procurar atendimento quando sofrem emergências
obstétricas ou complicações decorrentes de abortos autogeridos ou abortos
espontâneos.
Entre 2016 e 2020, pelo menos 300 mulheres morreram
de complicações relacionadas ao aborto, de acordo com a Gênero e Número”,
destacou. Diante dessa situação, a Human Rights Watch recomendou que o Comitê
pergunte ao governo do Brasil: Continua após a publicidade Como o governo está
garantindo que todas as pessoas com direito legal ao aborto possam ter acesso a
um aborto seguro e legal? Que medidas o governo está tomando para reduzir a morbidade
e a mortalidade devido ao aborto inseguro e para combater o estigma em torno do
aborto?
A Human Rights Watch ainda pediu que o Comitê
solicite ao governo do Brasil que: Descriminalize o aborto e garanta que ele
seja seguro, legal e acessível a todos. Garanta o acesso à assistência
pós-aborto sem discriminação, maus-tratos ou medo de processos, inclusive em
casos de aborto autoadministrado. Fornecer educação sexual abrangente em todas
as escolas, incluindo um enfoque na desestigmatização do aborto.
Num outro documento entregue para a ONU, a GELEDÉS
– Instituto da Mulher Negra – destacou que “mulheres com melhores condições
socioeconômicas buscam recursos técnicos para um aborto seguro, enquanto
mulheres negras e pobres buscam soluções inseguras e acabam com complicações,
sofrimento e mortes”. Para a entidade, o estado brasileiro viola artigos do
Programa de Ação de Durban e pede que essa situação seja corrigida. Projetos de
Lei no sentido contrário às normas internacionais
Em outro documento recebido pelos peritos, a
entidade Conectas alertou que existem 72 projetos de lei tramitando no
Congresso que poderiam ampliar as restrições ao aborto. Uma delas é o Projeto
de Lei no. 434/2021, denominado Estatuto do Nascituro, que propõe a proteção
integral do “nascituro”. Na prática, segundo o documento, a iniciativa “sugere
que nunca será admissível causar diretamente a morte do nascituro, mesmo que um
de seus genitores tenha cometido violência sexual, pois “o nascituro concebido
a partir de um ato de violência sexual tem os mesmos direitos de todos os
demais nascituros”.
“Esse projeto de lei é um imenso ataque aos
direitos das mulheres e representa um retrocesso em termos de saúde
reprodutiva”, alerta a entidade. Continua após a publicidade “O Projeto de Lei
também ignora as recomendações da ONU sobre direitos sexuais e reprodutivos,
bem como os direitos à dignidade, liberdade e autodeterminação das mulheres
como parte crucial da luta pela igualdade de gênero”, destaca.
A Conectas também aponta como, num guia ainda
apresentado em 2022, o governo Bolsonaro declarou que “não existem abortos
legais no Brasil” e que “todo aborto é crime”.
O grupo ainda denuncia a ex-ministra e hoje
senadora Damares Alves. No documento entregue para a ONU, a entidade destaca
que ela “fez várias declarações contra o aborto legal e, em 2020, envolveu-se
diretamente no caso de uma menina de 10 anos que deveria se submeter ao
procedimento após ter sido agredida sexualmente por um tio”. “Alves e sua
equipe tentaram transferir a criança para outro hospital, pressionaram e
intimidaram os profissionais de saúde responsáveis pela realização do
procedimento e chegaram a revelar publicamente os dados pessoais da criança e o
endereço onde a gravidez seria interrompida para impedir a realização do procedimento”,
declarou.
Ø Probabilidade de mulheres negras fazerem aborto é 46% maior do que para
brancas, diz Fiocruz
Mulheres negras têm probabilidade 46% maior de
fazer um aborto, em todas as idades, em relação a mulheres brancas, segundo um
estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com outros órgãos.
O número significa que, para cada 10 mulheres
brancas que fizerem aborto, haverá, aproximadamente, 15 mulheres negras.
O levantamento indica ainda que, ao chegar aos 40
anos de idade:
- uma em cada cinco mulheres negras terá feito ao menos um aborto;
- entre mulheres brancas, será uma em cada sete.
“Existem desigualdades raciais em todas as edições
da PNA [Pesquisa Nacional de Aborto]. São sempre as mulheres negras que mais
realizam abortos. São sempre as mulheres negras as mais vulneráveis ao aborto
e, consequentemente, ao aborto inseguro”, reflete a pesquisadora Emanuelle
Góes, uma das autoras do estudo.
A pesquisa foi feita com uma amostra de mulheres de
18 a 39 anos de idade, gerada a partir de dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE).
O levantamento utilizou a técnica da coleta de
dados através de urna, em que a entrevistada preenche um formulário com
questões sensíveis e o deposita em um recipiente fechado.
A análise também foi baseada na Pesquisa Nacional
de Aborto (PNA), realizada nos anos de 2016, 2019 e 2021, e divulgada na
terça-feira (26).
Os levantamentos dos anos de 2016 e 2021 cobrem
todo o Brasil urbano; já o de 2019 tem dados apenas da área urbana da região
Nordeste.
Não foi possível dizer muito sobre as mulheres
indígenas e amarelas (asiáticas), pois, segundo a Fiocruz, o número dessas
mulheres nas amostras não é grande. A maior parte dos resultados das
comparações que as inclui é vulnerável a flutuações puramente estatísticas.
A pesquisa foi publicada na revista Ciência e Saúde
Coletiva da Abrasco, com coautoria de Góes, da Fiocruz Bahia, e de
pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade de Columbia,
dos Estados Unidos.
·
Descriminalização do aborto
Na última sexta-feira (22), a presidente do Supremo
Tribunal Federal, Rosa Weber, votou pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
O voto da ministra, que vai se aposentar esta
semana, diz que o aborto é uma questão de saúde pública e reprodutiva da
mulher. O tema ainda será retomado em julgamento no plenário físico do STF.
Atualmente, o aborto só é permitido no Brasil em
três condições:
- em caso de estupro,
- de risco para a vida da gestante,
- e de fetos anencéfalos.
>>> Posição da
Fiocruz
A Fiocruz diz acreditar que a criminalização impede
que as mulheres acessem os serviços de saúde público e privados para realizar
aborto.
Como consequência a isso, mulheres usam métodos
inseguros para abortar, ficando expostas a riscos desnecessários.
A criminalização, segundo a fundação, também
impediria o debate que poderia ajudar na prevenção do aborto.
“O problema fundamental é que o aborto é tratado
como um crime. A criminalização restringe o acesso das mulheres ao sistema de
saúde antes do aborto, pois não é disponível, e depois do aborto, por medo de
denúncias e represálias”, dizem os autores do estudo.
Fonte: UOL/CNN Brasil
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