'NÃO HÁ DINHEIRO PARA COMPENSAR A DESTRUIÇÃO EM MARIANA', DIZ ADVOGADO
NO INÍCIO DESTE MÊS, uma comitiva com quilombolas e indígenas das etnias Krenak,
Pataxó, Tupiniquim e Guarani desembarcaram na Austrália. Eles viajaram
acompanhados dos advogados da Pogust Goodhead, escritório sediado na Inglaterra
e especializado em litígios coletivos relacionados a causas sociais e
ambientais. Lá, se reuniram com políticos e acionistas da mineradora
anglo-australiana BHP para contar como estão suas vidas quase oito anos
após o desastre
em Mariana, em Minas Gerais – a destruição aconteceu no dia 5
de novembro de 2015 com o rompimento da barragem do Fundão, controlada pela
empresa Samarco, com capital repartido entre a Vale e a anglo-australiana BHP.
Durante o encontro, os indígenas e quilombolas se
lembraram do desastre que varreu do mapa o distrito de Bento Rodrigues, na
cidade mineira, e destruiu a bacia do rio Doce, com 62 milhões de metros
cúbicos de lama despejados dentro do rio, matando o ecossistema e espalhando
um rastro de
destruição até o litoral do Espírito Santo. Dezenove
pessoas morreram – 18 confirmadas e uma vítima que nunca foi
encontrada.
Os indígenas e quilombolas contaram também os danos
que ainda persistem e as estratégias jurídicas das empresas para não indenizar
as vítimas.
“Eles [acionistas da BHP] não sabiam que as
pessoas, depois de oito anos, ainda não podiam pescar, por exemplo. É que
também a BHP mente para eles. A BHP diz ‘nós temos a Fundação Renova, tudo está
ótimo’ blá blá blá e todas aquelas merdas”, esbravejou Thomas Goodhead,
sócio-administrador e CEO global do escritório que representa os indígenas e
quilombolas.
Com o objetivo de reparar as vítimas, as
mineradoras criaram a Fundação
Renova, em 2016. Uma das ações da entidade foi
reconstruir Bento Rodrigues. Mas, no ano passado, durante coletiva de imprensa
para anunciar a entrega de algumas casas, os
atingidos protestaram, dizendo que não cabia nem sequer uma cama de
casal nos imóveis. “A Fundação Renova falhou completamente, não pagaram nenhuma
indenização justa”, relatou Goodhead.
Até hoje, as empresas e os executivos não foram
condenados pelo maior crime ambiental do Brasil. O processo
criminal segue emperrado na justiça, ainda em fase de coleta de
depoimentos.
Essa morosidade motivou o escritório Pogust
Goodhead a entrar na briga, em 2018, contra a BHP em seu país de origem: a
Inglaterra. Juntaram mais de 200 mil pessoas atingidas pelo desastre e abriram
um processo cobrando indenizações justas. A mineradora alegou que não fazia
sentido responder pelo processo na corte inglesa, uma vez que já tinha sido
acionada judicialmente no Brasil. E, em 2020, um juiz inglês concordou com a
BHP e extinguiu o processo. O escritório recorreu e, mais uma vez, perdeu a
batalha.
A insistência foi premiada em 2022 . A justiça
inglesa acatou o
pedido de Goodhead e reabriu o caso. “Foi o dia mais
feliz da minha vida. Eu gritei no táxi, depois saltei e fiquei dançando na
rua”, relembrou.
O processo coletivo cobra um valor de R$ 230 bilhões
da BHP em indenizações, envolvendo 720 mil pessoas, 2,5 mil empresas, 46
municípios, 10 mil membros quilombolas e indígenas. A maioria desse
dinheiro,66%, será repassado aos atingidos. Os municípios devem ficar com 23%
do valor e as empresas com 10%. O julgamento já tem até data: está marcado para
o dia 7 de outubro de 2024.
Quando foi divulgada a decisão
da justiça de Inglaterra de que a Vale deveria
arcar com os eventuais custos de metade do processo, a BHP afirmou que
“continua trabalhando em estreita colaboração com a Samarco e a Vale para
apoiar os programas de reparação e compensação implementados pela Fundação
Renova sob a supervisão dos tribunais brasileiros.”
Em entrevista em inglês ao Intercept, Goodhead contou detalhes
sobre as disputas judiciais, os cálculos indenizatórios e a viagem à Austrália
em busca de justiça pelas vítimas do desastre.
>>>> Leia abaixo a entrevista com o
advogado.
·
Como você foi parar no
caso de Mariana?
Thomas Goodhead: Comecei no caso em setembro de 2017. Vim para o Brasil com um
advogado daqui, que representou cerca de 6 mil pescadores que não estavam
recebendo indenizações da Fundação Renova, montada pela BHP, Vale e Samarco
para supostamente providenciar as compensações depois do desastre. E esse
advogado tinha experiências em vários casos mundo afora contra companhias
multinacionais muito grandes. Ele entrou em contato comigo e trouxe este caso.
Começamos em 2018 e estamos nesta batalha há cinco anos.
Eu estava sozinho e com um grupo de advogados
brasileiros que moravam em Londres. Eram uns advogados bem jovens que estudavam
lá. Voamos para Belo Horizonte em julho de 2018. E eles conheciam outros
advogados no Brasil e nós apenas saímos conversando com as pessoas. Fomos para
Mariana, para Governador Valadares, Barra Longa e outras comunidades que foram
impactadas. Falamos com prefeitos, com líderes da comunidade, falamos com pessoas
em igrejas, lanchonetes. Em qualquer lugar, a gente saiu falando com as pessoas
sobre isso. Eu não tinha ideia de quão grande era o caso, pensava que talvez
fossem 2 mil pessoas impactadas, ou algo assim. Não tinha a menor ideia de que
seriam 200 mil pessoas [que depois se tornariam 700 mil]. Mas então descobri
que a Fundação Renova tinha falhado completamente, não iriam pagar nenhuma
indenização justa. Tudo isso aconteceu em três ou quatro meses, num período
muito, muito rápido.
·
Como vocês chegaram aos
valores finais de indenização, orçado em R$ 230 bilhões?
Não foi fácil. Não há um cálculo matemático que
permita a você contabilizar a perda do rio Doce, do prazer que alguém tinha no
rio. É o que nós chamamos de dano moral. Mas o que fizemos foi distribuir questionários
para mais de 600 mil clientes, com mais de 700 perguntas, sobre o que mudou com
as perdas que sofreram, os danos psicológicos. Alguma coisa mudou na rotina
deles desde então? Basicamente, quais eram seus empregos, o que faziam pela
família, etc. A mesma coisa com negócios e municípios que representamos,
pegamos todos esses dados e entregamos ao nosso time de cientistas de
dados, que somam mais de 20 profissionais. Juntos a analistas financeiros e com
uma empresa americana de contabilidade forense, eles produziram uma enorme
análise para nós. Foi daí que chegamos ao número. Devemos receber a análise
completa no meio de outubro. Eles calcularam os valores de coisas como os
cuidados, danos morais, quase como uma indenização punitiva pelos danos. Depois,
nós desenvolvemos pesquisas de jurisprudência com a Universidade de São Paulo e
com o Instituto Getúlio Vargas.
·
Como esse dinheiro será
dividido individualmente para cada vítima?
Nós temos um comitê de clientes, cerca de 30
pessoas, que são as vozes dos nossos clientes na ação. Uma dessas pessoas é
Marcelo Krenak, que representa a comunidade indígena. E se houver negociações
com a BHP, Vale e Samarco, esse comitê tomaria as decisões sobre como os
valores recuperados na ação podem ser divididos entre os reclamantes. Isso se
houver um acordo, se for para a corte, depois da decisão do judiciário, eles
avaliarão os valores individualmente.
·
Na câmara dos deputados,
vocês apresentaram um valor médio de R$ 121 mil por vítima, certo?
Isso. O valor médio para os povos indígenas é
maior, não consigo precisar quanto. Mas há valores, no geral, acima da média,
porque são individualizados.
·
Parece um valor médio
pequeno, se dividirmos pelos oito anos desde o desastre, dá cerca de R$ 15 mil
por ano…
Não é isso o que as empresas dizem. Para eles é uma
“quantia escandalosamente alta de dinheiro”, o que é ridículo e terrível, e,
para ser honesto, eu concordo com você. A verdade é que não há uma quantia
exata de dinheiro que irá genuinamente compensar a comunidade indígena Krenak
pela destruição do seu modo de vida. Eu, pessoalmente, acho que a BHP e Vale
deveriam estar pagando dezenas de bilhões de dólares de multas para o estado
brasiliero, para o governo do Espírito Santo, de Minas Gerais. Mas eles não
estão! Eles mal pagaram um centavo em multa. Por isso digo que é criminoso. É
criminoso o que aconteceu e é criminoso como, na verdade, eles não foram
responsabilizados por isso. Não houve condenações quanto aos procedimentos
criminais que foram trazidos contra os diretores responsáveis. Eles sabiam do
risco de rompimento da barragem. É como se ninguém nunca fosse para a cadeia
por isso, o que é horrendo. Então, eu não discordo de você, mas é o melhor que
pudemos fazer usando a jurisprudência, usando a análise de números.
·
Lembro de ter visto
alguns estudos em 2015 sobre os cálculos da Samarco em relação a custos com
investimentos em segurança e com possíveis indenizações, caso o desastre
acontecesse. E financeiramente valia a pena correr o risco. Você acredita que
uma vitória jurídica na Inglaterra pode servir como lição para eles?
Nosso processo está em um estágio em que a BHP está
sendo obrigada a entregar todos os documentos internos da empresa para nós. Eu
não posso discutir exatamente o que eu vi por causa dos termos de
confidencialidade do processo legal. Eu vi com meus próprios olhos o que a Vale
fez em Brumadinho. Eles calcularam o custo de uma vida. E a indenização que
eles pagaram, de R$ 500 mil aos familiares das vítimas, não é nada. Equivale
talvez a cerca de 10% do que eles realmente calculam como o valor de uma vida.
É criminoso. Então se eu penso que as mineradoras ainda farão esse tipo de
coisa no futuro? Sim, eu não acho que eles irão mudar. Eles nunca colocam a
segurança acima dos lucros. A Samarco fez isso deliberadamente. Eles sabiam dos
riscos e seguiram aumentando a altura daquela porcaria, mesmo com riscos de
liquefação. O problema é que a Vale e a BHP chegam a lucros tão altos que, em
última análise, apenas não se importam. Mas eu acho importante nós tentarmos
extrair a maior punição financeira possível deles, porque é uma maneira de
fazê-los pensar, também precisamos conversar com seus acionistas. Foi isso que
fomos fazer na Austrália. Os acionistas se preocupam de verdade com os riscos
reputacionais. Então acho que há riscos de que isso se repita, mas também acho
que casos como esses são capazes de ajudar a combater essas repetições. O mais
preocupante que ouvi [audiência pública na Câmara dos deputados, em Brasília] é
que o acordo que o governo deve fazer com Vale, Samarco e BHP é fraco. E isso
faz com que as mineradoras se livrem dos problemas. Foi o que eles fizeram em
Brumadinho e por isso as vítimas estão bravas. Eles pegaram o dinheiro para
construir estradas, deram dinheiro a municípios em Minas Gerais que ficavam a
quilômetros de Brumadinho, foi uma manobra política. E acho que há um perigo de
que isso se repita.
·
Qual era o objetivo da
viagem com os indígenas e quilombolas na Austrália?
Foi uma viagem extraordinária e os membros das
comunidades indígenas e quilombolas puderam se encontrar com senadores
australianos, deputados, ministros e com vários acionistas da BHP. Fomos até
para explicar diretamente a eles, por meio de nossos clientes, como as
atividades da BHP destruíram suas vidas.Nós sempre fazemos a mesma pergunta: se
isso tivesse acontecido
na Austrália, ainda teríamos oito anos sem justiça e sem
resolução? E estamos buscando construir um contraste entre o que a BHP afirma
em seu site, e sobre as doações de dinheiro que fazem para grupos australianos
que apoiam os direitos das comunidades aborígenes por lá. Estamos dizendo:
“olhe que hipocrisia, fingem se importar com os direitos das comunidades
indígenas na Austrália, mas há 10 mil indígenas brasileiros brigando na justiça
inglesa porque eles [a BHP] destruíram suas vidas.” E mais: eles se recusam a
ouvi-los, encontrá-los, apenas seguem com suas atividades. Então o ponto dessa
viagem foi esse. Quando levamos essas pessoas para Londres pela primeira vez
foi com o mesmo objetivo: trazer a realidade do impacto da mineração aos
acionistas.
·
E vocês cobraram alguma
forma de punição ou pressão contra a BHP?
Pedimos a eles para pressionar a BHP a fazer um
acordo justo. Porque até o momento eles estão contratando advogados caros para
tentar se eximir da responsabilidade. Então, basicamente pedimos para dizerem à
empresa “façam a coisa certa”, pressionem a empresa. Nada pode mudar o fato de
que 19 pessoas morreram e que o meio ambiente foi destruído, certo? Isso já
aconteceu. Mas o que eles poderiam fazer é garantir indenizações justas e
comprometimento em mudar seus comportamentos no futuro. É essa a pressão que
pedimos aos acionistas e políticos para fazerem na empresa, no CEO.
·
Então eles sabiam sobre o
que ocorreu em Mariana?
Sim, eles sabiam, mas não entendiam tudo. Se
lembram do desastre, mas não sabiam que as pessoas, depois de oito anos, ainda
não podiam pescar, por exemplo. É que também a BHP mente para eles, certo? A
BHP diz “nós temos a Fundação Renova, tudo está ótimo” bláblá e todas aquelas
merdas. Colocaram um monte de coisas na mídia australiana – e a BHP é muito boa
em fazer isso –, gastam centenas de milhões para jogar o mesmo lixo. Eu vi o
site deles, as redes sociais, e era importante levar a realidade às pessoas na
Austrália, não as mentiras.
·
Na audiência pública da
Câmara dos Deputados, você também disse que eles mentiram à justiça inglesa.
Eu não usaria a palavra mentira no que eles
disseram à corte inglesa. Eles distorceram a verdade. Eles não deram
informações relevantes. Eu vou usar a palavra inglesa, a palavra
saxônica: bullshit (em tradução: baboseira, besteira). Eles só
falaram besteiras.
·
Como vocês conseguiram
provar na justiça inglesa que eles distorceram a verdade?
O problema foi o primeiro juiz, ele não apreciou
apropriadamente a matéria. Demos a ele inúmeras evidências dos prefeitos, dos
membros das comunidades indígenas, de todas as vítimas. E o que a BHP disse não
era verdade e tampouco era a realidade. E o juiz da primeira instância não
cumpriu seu trabalho apropriadamente, não considerou as evidências, apenas
acreditou em tudo que a companhia disse e fez um péssimo julgamento. Foi
realmente um terrível investimento. Nós apelamos e, mais uma vez, o juiz nem ao
menos leu os papéis apropriadamente. Parece um filme. O problema é que muitos
juízes de elite não têm noção da realidade que as vítimas sofreram, da
realidade do desastre. Então, nós usamos um procedimento legal, o que chamamos
de erros da justiça [miscarriage, em inglês]. Basicamente tivemos de
mostrar que eles estavam completamente errados, como quando alguém é condenado
e preso injustamente. E tivemos muita sorte, porque pegamos três dos melhores
juízes da Inglaterra. E em julho de 2022, eu tive o dia mais feliz da minha
vida. Foi extraordinário ter a ação aceita. Eu estava no banco de trás de um
táxi quando recebi o e-mail. Comecei a gritar e o taxista perguntou o que
estava errado. Eu pulei do táxi e comecei a dançar na rua. Foi, de longe, o
melhor dia da minha vida.
·
E acredita que o próximo
melhor dia deve ser com a vitória definitiva na corte?
Sim! Quer dizer, é difícil saber o futuro. Se
acontecer um acordo, e queremos que seja um bom acordo para as vítimas, será
quase como um sabor agridoce. Porque uma grande parte de mim quer ver a BHP
condenada na corte. Ir ao julgamento dizer que eles se arriscaram
deliberadamente e mataram pessoas, que a responsabilidade era deles. É uma
dessas coisas de ser um advogado, você precisa balancear os interesses de seus
clientes. E, em última análise, o acordo é melhor do que um litígio e
julgamento. Mas uma grande parte de mim quer o julgamento, quer responsabilizar
a BHP. E se eles não oferecerem um bom acordo para nossos clientes, é isso que
nós vamos fazer.
·
Há riscos de sofrer um
novo adiamento? Quando as vítimas devem receber as indenizações?
Não, não. A juíza foi muito clara ao dizer que quer
que aconteça no próximo ano. A indenização depende do desenrolar da história.
Se acontecer um acordo, as indenizações podem chegar às vítimas nos próximos
seis meses. Se seguirmos com o julgamento, deve levar mais uns três anos.
·
Acredita que o resultado
da ação na Inglaterra pode pressionar a justiça brasileira?
Definitivamente e acho que é uma boa pressão. A
história de Mariana é terrível, não há nada de bom para dizer sobre o que
aconteceu na sequência da tragédia. Mas houve algumas melhoras desde então. A
governança do Renova, algumas das disposições relacionadas às indenizações
melhoraram desde 2016. A forma como o acordo em Brumadinho foi colocado, apesar
de muitas coisas ruins terem acontecido, algo foi feito. Algo aconteceu. Há
processos criminais contra os diretores. De novo, houve atrasos, mas foram mais
rápidos do que em Mariana. Eu espero que o caso na Inglaterra provoque mudanças
positivas no Brasil. Acho que importante ressaltar o que falei na Câmara sobre
os crimes. O colapso da barragem foi um crime. Acho que se descreve como
assassinato, destruição do ecossistema ao longo da bacia do Rio Doce. Mas e o
que aconteceu depois? Há inúmeros diferentes tipos de corrupção no Renova e
pelas empresas que pagam seus impostos à fundação, usando-o, basicamente, como
um esquema para limitar suas responsabilidades fiscais, a falta de auditoria e
sensibilidade, a maneira como o dinheiro foi usado. Houve fraudes entre
advogados individuais em relação às vítimas em termos de indenizações. Não
apenas o crime do rompimento da barragem, mas depois apenas a continuação da
violação de direitos das vítimas oito anos após o acontecido. Isso precisa acabar.
Fonte: The Intercept
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