Viração
e redes sociais: seria o Instagram uma plataforma de trabalho?
As
redes sociais se consolidaram como o novo espaço do debate público e a vitrine
de exposição da vida privada. Esse espaço, longe de ser neutro, é configurado
por donos de Big Techs que possuem o monopólio das mídias digitais e determinam
a nossa comunicação. A dialética entre forma e conteúdo nos revela que as redes
sociais impõem uma determinada forma a partir da qual podemos nos comunicar
que, em última medida, determina o próprio conteúdo da nossa comunicação.
Essa
discussão, entretanto, já é realizada de forma mais ampla na sociedade. Um
ponto que talvez passe mais despercebido é que milhões de trabalhadores e
trabalhadoras — formais ou informais — possuem uma dependência cada vez maior
das redes para captarem clientes, venderem produtos ou divulgarem seus
serviços. Assim, quando falamos em plataformização do trabalho não podemos
olhar apenas para empresas como Uber e iFood, mas devemos considerar mídias
sociais como Instagram e TikTok.
Rosana
Pinheiro Machado e outras pesquisadoras mapearam milhares de trabalhadores e
trabalhadoras informais de baixa renda que dependem do Instagram para a
divulgação e venda de seus serviços, como manicures, empregadas domésticas,
comerciantes. Os resultados indicam que o mercado informal está migrando
progressivamente para as redes sociais, e essas plataformas estão se tornando
importantes agentes da economia informal no Brasil. Essa análise dialoga com a
ideia de “platform dependent”, pois há uma necessidade cada vez maior de alguns
profissionais estarem presentes nas redes sociais como forma de inserção no
mercado, ainda mais quando atuam por conta própria.
Essa
dependência ocorre para pessoas com diferentes graus de escolaridade. É comum
vermos advogados, psicólogas e outros profissionais liberais criando perfis no
Instagram para venderem seus serviços e captarem clientes. Mais do que uma
ferramenta de exposição, as redes viraram uma forma de inserção profissional
para milhares de jovens que, ao conquistarem um diploma universitário,
encontram um mercado precarizado e com portas nem sempre abertas em sua área de
formação. Já são outros tempos: se há duas décadas um recém-formado imprimia
currículos para distribuir em escritórios ou clínicas, hoje é muito provável
que ele crie um perfil no Instagram e assista a alguns vídeos sobre marketing
digital. Não se trata de um desejo de ser influencer, mas sim, dos novos
contornos da viração em uma sociedade subordinada às plataformas digitais. Isso
não significa, obviamente, que apenas recém-formados utilizem essa estratégia
de trabalho. Há profissionais com alta remuneração e décadas de experiência que
utilizam as redes para amplificar sua influência e seus rendimentos.
Esse
quadro nos coloca algumas questões. Se as redes sociais também devem ser
incluídas na análise da plataformização do trabalho, quais são as determinações
laborais que elas criam para milhões de indivíduos que as utilizam de forma
profissional? O controle algorítmico e a confusão entre o que é ou não tempo de
trabalho também entram nessa análise? A atuação nas mídias digitais seria mais
uma maneira de informalização do trabalho?
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“Eu não achei que teria que estudar marketing digital para ser psicóloga”
Nas
entrevistas que realizamos em nossa pesquisa de doutorado com psicólogas e
advogados que utilizam o Instagram profissionalmente, algumas questões aparecem
com maior frequência. A primeira é a dificuldade para descobrir como agradar o
algoritmo da plataforma e, consequentemente, ter maior engajamento. Um dos
psicólogos relatou o seguinte: “Nunca é 100% claro né. Parte da dinâmica do
algoritmo é essa, sempre deixar você nessa constante tensão: ‘o que eu preciso
fazer pra agradar?’”
O
problema é que as regras do jogo não são explícitas, ou seja, não está claro
quais conteúdos postar ou não para ter maior alcance, e esse é um conhecimento
que vai se descobrindo no dia a dia. Esse processo cria uma adequação dos
trabalhadores e trabalhadoras à forma e à estética imposta pelo Instagram, pois
o conteúdo terá mais engajamento na medida em que cumpra os requisitos da
plataforma. Desse modo, diferentes empregos passam por um processo de
homogeneização, na tentativa de cumprir os parâmetros da rede social.
Não
podemos cair em um fetichismo da tecnologia e apagarmos o trabalho humano que
permitiu a criação do algoritmo e suas posteriores reconfigurações. Partindo de
Marx, compreendemos que a interação entre trabalhadores e algoritmos não é uma
relação entre um sujeito e uma coisa, mas uma relação social entre pessoas,
pois os comandos dos algoritmos são configurados por programadores que, em
última análise, obedecem às diretrizes dos donos dessas empresas-plataformas.
Outra
determinação do Instagram é a necessidade de produção frequente de conteúdo.
Essa regra impõe um ritmo de trabalho aos indivíduos, pois suas postagens terão
maior alcance se sua produção for constante. Não é raro encontrarmos relatos de
trabalhadores que se sentem pressionados para produzirem posts e vídeos com
maior frequência. Foi dialogando sobre essa questão que uma das entrevistadas
relatou: “Eu não achei que teria que estudar marketing digital para ser
psicóloga, nem pensei que teria que ficar me expondo nas redes para conseguir
pacientes.” A dinâmica das mídias sociais cria a aparência de que um bom
psicólogo ou advogado não será, necessariamente, aquele que se aprofundar nos
estudos da sua área, mas quem dominar as técnicas de marketing nas redes e
compreender as regras da economia da atenção. Ao mesmo tempo, se cada
trabalhador é uma empresa de si mesmo, é preciso explicitar a produtividade da
sua marca.
Talvez
um dos imperativos do nosso tempo seja que não basta trabalhar, mas é
necessário mostrar que estamos trabalhando. Nas palavras de uma psicóloga
entrevistada: “Se você tem que tá ali mostrando seu trabalho, não basta estar
trabalhando, você precisa mostrar seu trabalho, e isso é um outro trabalho.
Então você acaba trabalhando mais, porque isso é uma atividade extra.”
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Redes sociais e a perda de formas estáveis do trabalho
A
desregulamentação laboral, a flexibilização e o advento de plataformas como
Uber e Ifood aprofundaram uma dinâmica que já estava presente há décadas no
Brasil, conhecida como perda de formas estáveis do trabalho. Esse fenômeno
significa que há uma “dificuldade em mapear e discernir quais são os custos do
trabalho e quem arca com eles; o que é e não é tempo de trabalho; e o que é e
não é trabalho pago e não pago; o que são meios de produção e instrumentos do
trabalho”. Essa perda de formas estáveis pode ser compreendida como um processo
de informalização, pois há uma tendência a trazer para dentro de trabalhos
formais elementos típicos da informalidade. A flexibilidade e a instabilidade,
reconhecidas como elementos próprios da atividade informal, são progressivamente
encontradas como uma característica de empregos formais.
O fato
de que o Instagram se tornou um importante agente do mercado informal pode ser
compreendido como um aprofundamento da perda de formas do trabalho. O indivíduo
gastará dezenas de horas produzindo conteúdo sem ter a mínima garantia de que
isso lhe trará algum retorno financeiro. Além disso, as horas gastas com
produção de vídeos e carrosséis frequentemente não serão sequer reconhecidas
como tempo de trabalho. Não é o Instagram que irá remunerar o trabalhador, mas
o trabalhador que pagará para que seu perfil seja impulsionado. Isso sem falar
nos dados pessoais que a plataforma extrairá do trabalhador e transformará em
ativos econômicos.
Segundo
Pinheiro Machado et al., o mercado de trabalho nas plataformas é estruturado
como um esquema de pirâmide, com alguns influenciadores no topo e milhões de
indivíduos aspirando ao crescimento digital. Assim, “os influenciadores no topo
da pirâmide são mentores de influenciadores de médio e pequeno porte, criando
uma linha de sucessão”, de modo que vender cursos ou mentorias se torna o
principal negócio de diferentes tipos de profissionais que atuam nas redes.
Essa dinâmica cria a prática de pessoas que vendem cursos ensinando como vender
cursos. A contradição fundamental é que, embora as plataformas preguem a plena
liberdade e a chance de ficar milionário, apenas uma parcela ínfima consegue
sucesso na atuação pelas plataformas, enquanto milhões de trabalhadores não
ultrapassam os 5 mil seguidores e são incapazes de vender cursos ou ampliar
seus rendimentos. Obviamente, questões relacionadas a raça e gênero serão
determinantes para o aprofundamento dessas desigualdades.
Gramsci
demonstrou, ao analisar o surgimento do fordismo nos EUA, que a forma de
organizar o trabalho é um instrumento de subjetivação e uma arma utilizada na
disputa de hegemonia. Não se trata de uma ideologia externa que opera na
consciência dos indivíduos, mas, sim, que os diferentes métodos de organização
laboral são mecanismos concretos de subjetivação. Pois bem, se as redes sociais
estão se tornando determinantes para uma parcela do mundo do trabalho, podemos
nos perguntar quais os impactos dessa organização laboral nas disputas
políticas.
Ao
mesmo tempo, as dinâmicas que reorganizam o trabalho também reconfiguram as
formas de luta, algo demonstrado amplamente pela mobilização dos entregadores
no Breque dos Apps, a organização dos trabalhadores e trabalhadoras do Mercado
Livre e até a greve dos streamers. Se as redes sociais amplificaram a diluição
entre vida privada e profissional, entre trabalho e descanso, nomear os
fenômenos pelo seu nome e reconhecer exploração onde aparentemente só há lazer
pode ser um primeiro passo para seguir construindo as lutas do presente.
Fonte:
Por Matheus Silveira de Souza, no Blog da Boitempo

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