‘Terror
impera’: Pressão no governo Tarcísio leva 1 diretor e 2 professores à morte;
aluna de 14 anos tenta suicídio
Maria
Irene de Carvalho, 64 anos, lecionou na rede estadual de ensino em São Paulo
por mais de 40 anos. Neste ano, não aguentou mais. “Eu pedi para sair da escola
para continuar vivendo”, ela me disse. “As condições de trabalho estavam
afetando a minha saúde. Passei a ter problemas emocionais e cardíacos”, conta a
professora de sociologia na Escola Estadual Professora Odila Bento Mirarchi, em
Mauá, na Grande São Paulo.
O
governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, implementou em 2024 um sistema
de metas agressivas baseado no desempenho dos estudantes, com a imposição do
uso de plataformas online de ensino.
Idealizado
pelo secretário de Educação Renato Feder, o sistema, na teoria, visa implantar
uma lógica agressiva de resultados e mercado para aumentar a eficiência e os
resultados da educação pública. Na prática, está provocando uma onda de
adoecimentos sem precedentes entre diretores, professores e alunos.
No ano
passado, 42 mil professores foram afastados por causa de transtornos mentais e
comportamentais, segundo o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de São
Paulo, conhecido como Apeoesp. O sindicato utiliza dados do Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, o Dieese, que assessora
o movimento sindical.
Professores,
alunos, supervisores e diretores disseram ao Intercept Brasil estar sob
constantes ameaças de demissão e afastamento. Eles são cobrados pelo desempenho
dos alunos em provas de avaliação. Quando a escola apresenta baixos índices,
diretores e professores são removidos.
Elísio
Fagundes Santos era professor de Filosofia na mesma escola onde Irene
lecionava. Morreu vítima de infarto em outubro. “Vão dizer que ele não morreu
por isso. Mas o Elísio estava muito pressionado”, me disse a professora.
“Passamos a trabalhar o dobro, com uma cobrança de metas absurda. Isso está
abalando emocionalmente os professores. Eu resolvi sair, fui embora. E com ele
aconteceu essa fatalidade”, lamenta.
O
Intercept apurou que ao menos outros dois educadores morreram após passar por
pressões semelhantes. Uma professora da Escola Estadual Maria Carolina, de
Diadema, no ABC, morreu também de infarto no dia 17 de março, enquanto
trabalhava. Segundo o professor Wagner, seu colega, a professora tinha outras
doenças e estava “alterada, muito machucada e insatisfeita com o trabalho”.
O
professor ainda denunciou o caso de um outro colega, diretor da Escola Pedro Madoglio, também de Diadema,
que faleceu no dia 19 de abril, após abandonar um tratamento contra a leucemia.
“Na
escola dele, nenhum diretor parava lá. Ele vinha sendo cobrado de forma muito
dura pelos dirigentes de ensino de Diadema. São ameaças fortes mesmo, do tipo
perder a função e, consequentemente, o salário”, diz Wagner . “Eles humilham as
pessoas. Estão enlouquecendo a gente. Trouxeram agora um modelo de fábrica para
as escolas, com muita pressão”.
A
Secretaria de Educação disse, em nota, acompanhar a situação de saúde dos
educadores, mas contesta o número apresentado pela Apeoesp. E afirma que seu serviço de
teleatendimento psicológico e psiquiátrico “está à disposição de todos os
servidores, com mais de 650 mil atendimentos realizados até 31 de outubro”.
As
pressões também começam a afetar os alunos, denunciam os educadores. Em
Ribeirão Preto, uma estudante de 14 anos do 9ª ano de uma escola estadual
tentou o suicídio duas vezes, em outubro e no final de novembro. O motivo,
segundo relatou ao Intercept o professor João, da rede estadual na cidade,
seriam as cobranças de um colega dele para a aluna conseguir melhores
resultados em avaliações.
O
Intercept apurou que a família confirmou que o professor “pegava no pé” da
estudante, e a “diretora falava que tinha metas”.
A
Secretaria de Educação disse que não havia recebido “denúncias sobre as
irregularidades mencionadas” até o momento na escola estadual em que a menina
estuda.
<><>
‘Todos agora são inimigos. O diretor é inimigo do professor, e o professor
inimigo do aluno’
Por
ocuparem o topo na escala hierárquica de cada escola, os diretores são os
primeiros a serem pressionados por resultados pela Secretaria de Educação de
São Paulo.
“A
gente mudou a lei aqui em São Paulo. Se o diretor não entrega resultado, ele
perde o cargo”, disse o secretário de Educação, Renato Feder, ao podcast Market
Makers em agosto. “Eles têm meta mínima. Tem de subir 0,2 a cada ano. Se não
subir, tchau!”.
Entre
janeiro e novembro de 2025, 294 diretores da rede estadual foram afastados pela
gestão de Tarcísio de Freitas por terem sido apontados como responsáveis pelo
mau desempenho de suas escolas em avaliações, segundo Chico Poli, presidente do
Sindicato dos Especialistas de Educação, a Udemo. O órgão coletou as
informações por meio de dados no Diário Oficial do Estado.
“A
lógica agora é a de uma empresa: se ela vai mal, muda o gerente. As questões
que levam a esse quadro na educação não são consideradas. O secretário de
Educação age como se a escola fosse um supermercado. É só mudar o gerente. Se a
escola não funciona do jeito que ele quer, ele manda embora”, afirma Poli.
No
modelo atual de ensino na rede estadual, a maioria das aulas é assistida por um
coordenador da área lecionada ou um coordenador pedagógico, ou ainda pelo
diretor e vice-diretor.
“Criou-se
uma situação de animosidade. Todos agora são inimigos. O diretor é inimigo do
professor, e o professor inimigo do aluno. É uma situação de total pressão,
constrangimento e coerção”, avalia Chico Poli.
Os
docentes consideram a situação insustentável. “Os professores estão ficando
malucos, sem saber o que fazer para os alunos atingirem o resultado. A gestão
cobra, porque é a cabeça da gestão que está na linha de tiro. A coordenação
cobra, porque também está na mesma linha. E nós, professores, acabamos cobrando
os alunos. Isso gera um adoecimento geral, de professores e alunos. Aqueles que
não conseguem atingir um resultado, ficam ansiosos e mal em todos os sentidos”,
avalia o professor Walter, da rede estadual na cidade de Salto, no interior
paulista.
Em um
manifesto, estudantes do ensino médio da rede pública no dia 11 de novembro,
revelaram que algumas escolas teriam facilitado a ocorrência de fraudes e colas
durante a Prova Paulista com o objetivo de elevar seus índices de desempenho,
beneficiando tanto a escola quanto as diretorias de ensino.
O
Intercept também teve acesso a mensagens e depoimentos que mostram que, diante
da pressão, escolas têm adotado diferentes estratégias para cumprir as metas –
elas vão de exposição vexatória de quem foi mal a driblar o sistema de faltas
para não contar os alunos com desempenho ruim.
Em
Ribeirão Preto, um professor da rede
estadual, João Carlos, afirmou ao Intercept que, na mesma escola em que a aluna
de 14 anos tentou o suicídio, outra solução estaria sendo adotada. “Tem alunos
que frequentam as aulas, mas recebem faltas para que, assim, saíam de uma vez
da escola e não piorem os índices”, revelou o professor.
O
Intercept teve acesso a mensagens da direção da escola determinando a
professores que alunos presentes à sala de aula fossem registrados como
ausentes.
O
professor diz também já ter presenciado alunos serem retirados de suas casas,
“à força”, segundo ele, para avaliações, como a chamada “prova paulista”, “que
é de sumo interesse, tanto para a diretora quanto para o governador do estado”.
O
professor conta que dirigentes da escola costumam colocar nas paredes dos
corredores os resultados de avaliações de alunos que tiveram resultados pífios.
Para ele, essa atitude expõe os alunos a situações vexatórias e geram problemas
emocionais.
<><> Educação como mercadoria: a estratégia de
Feder
O
modelo empresarial de gestão nas escolas implantado por Tarcísio de Freitas foi
importado do Paraná, onde o empresário Renato Feder foi secretário de Educação
na gestão de Ratinho Júnior, do PSD, entre 2019 a 2022.
Embora
professor de formação, Feder é empresário, com longa carreira no setor privado,
principalmente como CEO da Multilaser, empresa de tecnologia, entre 2003 e
2018.
No
Paraná, sua gestão marcada pela implementação das escolas cívico-militares e
pela privatização encantou Tarcísio de Freitas, que o chamou para a secretaria
estadual paulista – ao mesmo tempo em que fazia negócios milionários com a
Multilaser.
Ao
assumir o cargo em São Paulo em janeiro de 2023, Renato Feder afirmou que
pretendia transformar São Paulo em uma “potência educacional”.
Em
2024, o novo secretário decidiu avaliar os alunos da rede escolar a partir da
frequência nas aulas e de resultados em provas bimestrais e desempenhos como a
do Saresp e do Sistema de Avaliação da Educação Básica, o Saeb.
O
Saresp avalia o desempenho da escolaridade básica no estado; e o Saeb, por meio
de testes e questionários a estudantes, professores e gestores escolares, é
utilizado para o cálculo do Índice de Desenvolvimento de Educação Básica, o
Ideb.
A
Secretaria de Educação nega que haja afastamento automático de professores e
diretores e diz que “nenhum diretor ou professor é afastado exclusivamente por
resultados de avaliações externas”.
Segundo
o governo, a avaliação considera múltiplos critérios, como frequência,
participação em formações, acompanhamento pedagógico”, além das provas do
Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, o Saresp, e
indicadores de desigualdade.
<><>
Plataformas digitais não melhoraram resultados escolares
Além
das metas agressivas, outra aposta de Tarcísio e Feder para turbinar os índices
de qualidade do ensino na rede estadual de São Paulo foi a adoção massiva de
plataformas digitais de ensino na rede pública.
O uso
desses sistemas começou na gestão do governador João Doria, ex-PSDB, entre 2019
e 2022, e foi intensificado – e se tornou um dos pontos de maior tensão entre
os educadores e o governo.
O
sistema utilizado, chamado Bussiness
Intelligence, ou BI, serve para monitorar as atividades em várias plataformas
educacionais, entre elas a Leia SP (para incentivar a leitura), Speak (idiomas)
e Alura (tecnologia). Diversas empresas desenvolvem essas ferramentas e
plataformas de BI, que é um conjunto de processos e tecnologias
O
governo Tarcísio gastou R$ 471 milhões somente em 2024 nessas plataformas – e a iniciativa não
melhorou o desempenho das escolas estaduais no sistema de avaliação de
rendimento, o Saresp, segundo um estudo da Rede Escola Pública e Universidade,
que reúne pesquisadores de universidades paulistas.
Mesmo
as escolas que atingiram as metas de uso das plataformas definidas pelo governo
não registraram melhora de fato, de acordo com o estudo. Para chegar a essa
conclusão, os pesquisadores analisaram os dados da própria Secretaria de
Educação.
O
governo de São Paulo, porém, ao divulgar os resultados do Saresp de 2024, em
fevereiro, anunciou que houve uma melhora no desempenho dos alunos da rede
estadual, principalmente em Português e Matemática. Os educadores contestaram.
“Não
melhorou o ensino. A Secretaria de Educação alterou a métrica utilizada para
avaliar o ensino de Português e Matemática. Antes, era um total de pontos
acumulados. Agora, mudou para notas. Disseram que melhorou, mas apenas
falsearam os dados”, critica Chico Poli.
Além de
questões educacionais, a plataformização do ensino levanta questões de
privacidade e de segurança. Em julho, a Folha de S.Paulo denunciou que alunos
das escolas estaduais hackearam as plataformas para realizar as tarefas em
segundos. Alguns deles cobravam entre R$ 2,50 e R$ 10 para realizarem as
tarefas de colegas. No Discord, em um grupo com mais de 200 mil usuários, eram
compartilhados os métodos para burlar as plataformas.
No início de outubro, o Ministério Público de
São Paulo após um pedido do deputado estadual Carlos Giannazi, do Psol,
recomendou que a gestão de Tarcísio deixe de obrigar o uso de plataformas nas
escolas, e deu um prazo de 30 dias. Se o governo não acatar o pedido, o MP
prometeu adotar “as medidas cabíveis”. A Secretaria diz que “analisa” a
recomendação.
Giannazi
pediu ao MP e ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo para que sejam
apurados os valores gastos com as plataformas digitais nas escolas e os
contratos firmados com esse objetivo com a Secretaria de Educação.
Para
diretores e professores da rede estadual de ensino, as plataformas estão muito
distantes das necessidades para a aprendizagem dos alunos.
“O
projeto de educação é baseado num sistema absurdo de plataformização, que
afronta inclusive a liberdade de cátedra dos professores”, critica Fábio de
Moraes, primeiro-presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do
Estado de São Paulo, a Apeoesp. “O professor é obrigado a seguir as
plataformas. Não somos contra a implementação de tecnologia, mas o protagonista
não é o professor”.
“Agora,
vive-se num clima de terrorismo. O terror impera. Houve uma mudança radical no
sistema educacional para impor o uso dessas plataformas”, diz Moraes. “Isso foi
feito por meio de contratos milionários, para as empresas que geram essas
plataformas. Toda a rede de ensino está linkada nela. Somos 645 municípios com
características totalmente diferentes, e há uma padronização nas plataformas, o
que é errado. As próprias avaliações do governo já deixaram claro que não tem
dado resultado, mas o governo continua insistindo”, protesta Moraes.
“Já
está provado que esse tipo de material não funciona. A tecnologia é importante,
mas para outra finalidade”, corrobora o diretor Chico Poli, da Udemo. “É um
material de segunda categoria. Tem vários erros e virou motivo de piada. Como
apareceu em uma das plataformas que quem libertou os escravos no Brasil foi dom
Pedro 1º, e não a Princesa Isabel. E mais recentemente, outro erro grave: foi
dito que Segunda Guerra Mundial ocorreu nos anos 1950 e 1960, quando foi entre
1939 e 1945”, lembra.
O
governo do estado, ainda assim, defende o uso das plataformas e contesta as
críticas. Segundo a Secretaria da Educação, “análises preliminares indicam que
as unidades escolares que integram os recursos digitais à rotina pedagógica
tendem a apresentar melhores níveis de engajamento e avanços no processo de
ensino-aprendizagem ao longo do tempo”.
A
Secretaria afirma que elas não substituem o professor e nem impõem metodologias
“e são ferramentas complementares de apoio, diagnóstico e organização de
dados”.
Enquanto
isso, alunos da rede pública têm que lidar com um problema muito mais
rudimentar: eles não têm computador para usar as plataformas. “Há um para cada
três alunos e a Secretaria reconhece isso. Isso faz com que os estudantes não
consigam dar conta dos exercícios e questionários propostos em salas de aula”,
diz Poli. “Eles também não têm computador em casa. Para que consigam cumprir o
que é solicitado, os professores precisam ajudá-los a concluir as tarefas em
salas de aula”.
“Não há
equipamento tecnológico para todos os alunos usarem ao mesmo tempo. Não há como
concluir tudo”, confirma o professor Walter, da cidade de Salto.
Fonte:
Por Gilberto Nascimento, em The Intercept

Nenhum comentário:
Postar um comentário