O
relato de mães brasileiras de crianças atacadas em Portugal
Na
semana passada, o caso do menino brasileiro de 9 anos que teve dois dedos
mutilados durante um episódio de bullying em Portugal chocou o país. De acordo
com o relato feito por José à família, o ferimento ocorreu quando outras
crianças o trancaram no banheiro e fecharam a porta em sua mão. Mas segundo
organizações de apoio a imigrantes e combate ao bullying, episódios de
violência contra estrangeiros se tornaram cada vez mais comuns nas escolas do
país, em consonância com o sentimento anti-imigração que se amplia entre a
população e as políticas aplicadas pelo governo.
Em
entrevista à BBC News Brasil, Nívia Estevam, mãe de José, conta que o incidente
que mutilou os dedos do filho não foi o primeiro de bullying relatado pelo
menino, e que ela procurou diversas vezes a escola em Cinfães, no norte do
país, para alertar sobre o problema: "A minha sensação é de muita
impunidade e descaso. Eu expus o caso na internet em um ato de socorro". Outras
duas famílias brasileiras também denunciaram um padrão que inclui agressões,
estigmatização por nacionalidade, racismo e negligência em diferentes regiões
de Portugal. "Por conta de tudo que o meu filho passou, ele tem muita
dificuldade para dormir e tem que tomar medicamento", diz Michelly Soares,
que trocou o filho Miguel de escola após ele ser vítima de perseguição por
colegas portugueses e ser insultado com palavras xenofóbicas por uma das mães.
Em um
dos episódios de bullying, o menino também teve os dedos da mão presos na porta
do banheiro, mas que por sorte não resultou em ferimentos graves. "Tive
vontade de pegar meu filho, colocar numa caixinha e nunca mais mandar ele para
a escola", desabafa. "Eu me senti uma inútil por não poder proteger
mais ele." Outra mãe conta que o filho quebrou a clavícula após ser
empurrado. "Atravessei um oceano para dar uma vida melhor para ele e me
frustrei", diz ela, que decidiu mandar o filho de volta para o Brasil para
viver com o pai após repetidas agressões e falta de apoio da escola. "Achava
que Portugal era um país muito mais desenvolvido, onde meu filho receberia mais
assistência. Mas não, eu percebi que lá no Brasil ele estava muito mais bem
assistido. Ele gostava de ir para escola no Brasil. E aqui foi um completo
pesadelo para ele já nos primeiros meses."
O
Ministério da Educação, Ciência e Inovação de Portugal foi contactado pela
reportagem para prestar esclarecimentos sobre os casos relatados, mas não
respondeu ao pedido de comentário.
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'Como assim o dedo dele não estava no lugar?'
Os três
casos reunidos pela reportagem envolvem meninos brasileiros entre 7 e 9 anos na
época dos ocorridos. Dois deles são negros. "Nós tínhamos acabado de
chegar na cidade, somos imigrantes, somos brasileiros, e o meu filho é gordo e
preto", diz Nívia, que atribui a forma como José foi tratado pelos colegas
e pela própria escola ao preconceito e à xenofobia.
Mãe e
filho se mudaram para Portugal em 2017 e 2018, respectivamente. Ao lado do
padrasto do menino, eles se fixaram na cidade de Cinfães, no distrito de Viseu,
no começo deste ano. Lá, José começou a cursar o 4º ano da Escola Básica de
Fonte Coberta. Em pouco tempo, diz Nívia, começaram os relatos de puxões de
cabelo e pontapés. No dia 5 de novembro, o menino chegou em casa com um
hematoma no pescoço e disse que havia sofrido uma tentativa de enforcamento por
um colega. A mãe procurou uma professora em busca de uma solução, mas afirma
não ter recebido resposta satisfatória. "Ela me disse que procuraria os
responsáveis dos alunos envolvidos, mas depois descobrimos que ela nunca
repassou as informações", diz.
O
episódio mais grave aconteceu em 10 de novembro. Nívia recebeu uma ligação da
escola e quando chegou ao local encontrou o filho chorando, com a mãe enfaixada
e as roupas ensanguentadas. Ainda sem entender exatamente o que havia
acontecido, ela entrou em uma ambulância com o filho para serem transportados
ao hospital mais próximo. Foi apenas no caminho que ela entendeu a gravidade
dos ferimentos.
Nívia
conta que o bombeiro colocou uma embalagem em sua mão e pediu que ela levasse
até o médico. Quando perguntou o que era, ouviu que era uma das pontas do dedo
do seu filho. "Eu fiquei em choque. Como assim o dedo dele não estava no
lugar?".
No
hospital, José passou por três horas de cirurgia, mas não foi possível
reconstituir as pontas dos dois dedos amputados. Apenas após acordar, o menino
conseguiu relatar à família o que havia acontecido. Segundo José, duas crianças
o encurralaram no banheiro e fecharam a porta de uma das cabines em sua mão.
Preso, ele teve que passar pelo vão abaixo da porta para pedir socorro. Quando
chegou à escola para socorrer o filho, Nívia encontrou o local do incidente já
limpo, sem nenhum sinal de sangue. Segundo ela, os funcionários da escola
afirmaram que os alunos estavam apenas brincando quando tudo aconteceu e que
José não havia sangrado muito. A mãe disse não saber a nacionalidade das
crianças que agrediram o filho. "Eu não consigo explicação quando as
pessoas me perguntam: 'Você acha que isso foi xenofobia, foi racismo?' Eu não
consigo outra explicação", diz ela, que afirma que o caso foi minimizado
pelos professores.
Nívia
está grávida e tem dupla cidadania brasileira e portuguesa. Ela está no
processo para que José também se torne cidadão de Portugal. "O país também
é meu, porque eu também sou portuguesa. Mas nós nunca vamos ser bem-vindos
aqui", lamenta.
Com
receio após a repercussão do caso, a família decidiu se mudar de casa e de
cidade. Ela agora considera voltar a morar no Brasil. "Eu quero me sentir
em casa. Não quero me sentir coagida, sabe?" José, que completou 10 anos
na última quinta-feira (20/11), está recebendo ajuda psicológica voluntária de
pessoas que se solidarizaram com o caso. A família também recebeu a assistência
jurídica de um grupo de advogados, que acionou o Ministério Público. A
Inspeção-Geral da Educação confirmou a abertura de um processo formal para
apurar o que aconteceu no dia 10 de novembro. O Agrupamento de Escolas de
Souselo, do qual a escola em que José estudava faz parte, também instaurou um
inquérito interno. O departamento de educação do município de Cinfães e o
agrupamento não responderam aos pedidos de comentário enviados pela reportagem.
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'Prefiro viver na pobreza no Brasil'
Em
Mira, no centro do país, Michelly relata que seu filho Miguel, hoje com 9 anos,
sofreu agressões físicas, também foi trancado no banheiro por colegas e chegou
a ter o rosto apertado pela professora. O menino, que recebeu um diagnóstico de
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no Brasil, estava no
2º ano da Escola Básica de Portomar quando os fatos aconteceram. A criança tem
cicatrizes nos braços que foram consequência, segundo a mãe, de um empurrão que
o fez cair em uma cerca.
Michelly
também foi chamada a escola depois que Miguel machucou os dedos da mão. Segundo
o relato da criança, os colegas tentaram prendê-lo no banheiro e acabaram
prendendo sua mão na porta. "No centro de saúde, o médico falou: 'Mãe, foi
por pouco'. Foi por pouco porque pegou no ossinho dele, mas não quebrou",
conta a brasileira que deixou Natal, no Rio Grande no Norte, para viver em
Portugal em 2022.
O
episódio mais traumático, porém, envolveu outras mães portuguesas. Numa
apresentação escolar, uma delas se aproximou de Miguel e sussurrou: "Volta
para a tua terra". Quando Michelly tentou tirar satisfação sobre o
ocorrido, ela afirma que outros pais se juntaram para apoiar a agressora e
repetiram os insultos xenofóbicos para mãe e filho. "A professora estava
do meu lado, eu olhei para ela pedindo socorro, para me tirar dali, mas em
nenhum momento fez nada", conta, chorando. Ainda segundo a mãe, os funcionários
da escola nunca prestaram a assistência que Miguel necessitava e não sabiam
lidar com o transtorno diagnosticado.
O
menino diz ter passado a maior parte do ano letivo isolado, sendo repetidamente
retirado da sala para "não atrapalhar os colegas". Em vez de
acompanhar aulas, ele era enviado para ajudar os auxiliares em atividades da
escola, afirma a mãe. Um dia, a criança chegou em casa com um arranhão na
bochecha, que disse ter sido causado pela própria professora. "Quando eu
vi perguntei o que tinha acontecido e ele falou que a professora apertou a
bochecha dele para ele parar de conversar e tirar a atenção dos outros
alunos", relata Michelly. "Mandei mensagem para a professora na hora
e ela me pediu desculpa. Disse 'Me desculpa, mas eu tô sem paciência com o
Miguel'." Segundo a brasileira, esse foi o episódio que a fez querer parar
de mandar o filho para escola. "Eu me senti uma inútil, porque eu não fiz
nada. Eu não pude proteger ele", diz a mãe, se culpando.
O
impacto emocional também levou o menino a pedir para voltar ao Brasil. A mãe
ainda considera a possibilidade de se mudar novamente, mas diz que por enquanto
vai insistir no sonho português. "Por eles eu abri mão de muita coisa e
vim para cá. Mas por eles eu volto também, sem pensar duas vezes", diz
sobre Miguel e o filho mais novo, de 4 anos. "É difícil a nossa vida lá
[no Brasil]? É difícil, mas lá ele não sofreu o que ele sofreu aqui. [...] Vim
para Portugal para dar uma qualidade de vida melhor para eles. Mas eu prefiro
viver na pobreza lá do que ver meu filho passando por tudo isso de novo."
Desde o
ano passado, Miguel estuda em outra escola em Mira e faz acompanhamento
psicológico particular. A mãe o matriculou em um treino de futebol, que diz
estar ajudando na sua adaptação ao novo país. "Quando vi a reportagem
sobre o que aconteceu com o José, foi a mesma coisa de ver meu filho", diz
Michelly emocionada. "Eu queria abraçar aquele menino, abraçar aquela mãe,
para falar que ela não está sozinha. Eu achava que era uma situação que só
tinha acontecido comigo, eu não sabia que tinha mais casos desse".
A
reportagem procurou a Escola Básica de Portomar e o Agrupamento de Escolas de
Mira para esclarecimentos, mas não obteve resposta.
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'País não está preparado para receber uma criança imigrante'
*Mariana
também acreditava que a mudança para Portugal representaria uma vida melhor
para o filho, Lucas*. Mas em poucos meses, os relatos de agressão trazidos pelo
menino da escola a fizeram desistir da ideia a ponto de enviar a criança de
volta para o Brasil, para viver com o pai.
*Os
nomes foram alterados pela reportagem, por motivos de segurança não
relacionados aos episódios de bullying.
Eles se
instalaram em uma cidade próxima a Lisboa, onde passaram a viver com a mãe de
Mariana, que já morava em Portugal. Lucas foi matriculado no 1º ano da Escola
Básica (corresponde ao Ensino Fundamental no Brasil). Com o tempo, o menino
passou a relatar perseguições de colegas. A mãe diz que os episódios envolviam
sempre os mesmos alunos portugueses. Lucas é negro e Mariana afirma que esse
foi um marcador para o preconceito: "Foi dali que começou com o meu
filho", contou.
Ela
lembra que, no grupo de pais da escola, crianças eram frequentemente
identificadas não pelos nomes, mas pelas nacionalidades: "a
venezuelana", "o indiano", "o brasileiro". O momento
crítico veio quando Lucas fraturou a clavícula. Segundo ele, um colega o
empurrou. Nas semanas após o incidente, o menino precisou de auxílio da família
para se levantar da cama, ir ao banheiro e comer. "Na escola ninguém me
explicou nada direito. Falaram: 'Foi só brincadeira de criança.' A
palavra-chave deles para isso é brincadeira de criança", queixa-se a mãe.
Mariana
chegou a procurar os pais dos alunos responsáveis pelas agressões, mas suas
alegações foram descartadas. Segundo ela, todas as crianças envolvidas nos
episódios de bullying eram portuguesas. Quando o menino finalmente retornou à
escola, a situação continuou, com insultos e palavrões vindos dos colegas.
"Eu passei semanas indo na porta da escola, pedindo uma reunião com a
professora ou com a diretora, e ninguém me atendia", relata a mãe.
Quando
finalmente foi atendida, Mariana diz ter ouvido de uma professora que o próprio
filho seria culpado pelo que vivia: era "calado demais", "não se
enturmava" e "não dava abertura para os colegas". Segundo ela, a
educadora sugeriu que a família procurasse diagnóstico para um possível
transtorno do espectro autista. Temendo danos irreversíveis à saúde emocional
do menino — que passou a falar em "muita raiva" —, Mariana e o pai de
Lucas decidiram enviá-lo de volta ao Brasil. A mãe diz que tomou a decisão também
por preocupação com o futuro do filho em um país que não o aceita como ele é. "Eu
sabia que a minha vida não ia ser fácil como imigrante, mas eu pensei que
enquanto eu tivesse trabalhando para conquistar um futuro para o meu filho, ele
estaria seguro na escola", diz. "O país não está preparado para
receber uma criança imigrante." Hoje Lucas foi reintroduzido na antiga
escola e, segundo a família, está melhor. Mas Juliana lamenta a distância do
filho.
"Quando
aqui para mim é horário do almoço, ele está acabando de acordar [no Brasil]. Eu
consigo falar com ele por volta de 1 hora por dia", conta. "Eu
consigo mandar dinheiro, prover brinquedos, mas estou perdendo muitos momentos.
Perdi ele nadando pela primeira vez sem boia, perdi ele andando de bicicleta.
Qualquer mãe quer passar por isso do lado do filho".
A BBC
Brasil procurou a escola e o departamento de Educação responsável pelo ensino
na região onde Lucas morava. Em nota, subdiretora do agrupamento afirmou que a
encarregada de educação do aluno envolvido era a sua avó, e não a mãe,
"que poderá não estar na posse de todas as informações relativas ao
processo educativo do seu filho. No decorrer do ano em que o aluno esteve na
nossa escola, não houve qualquer registo de bullying ou xenofobia", disse
ainda, acrescentando que o episódio que levou à fratura da clavícula de Lucas
foi um acidente, que "ocorreu num brinquedo, sem interferência de qualquer
outro aluno, conforme os registos arquivados".
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Problema não é novidade
Helena
Schmitz, da associação Diásporas, afirma que relatos de violência e bullying
envolvendo crianças imigrantes em escolas portuguesas não são novidade para
quem trabalha no movimento associativo. A especialista destaca que o maior
problema é a negação por parte das instituições: não reconhecer que há um
problema de xenofobia impede qualquer ação efetiva, diz. E segundo Schmitz,
muitos imigrantes se tornam ainda mais afetados diante do contexto de
vulnerabilidade. "Muitas famílias ficam sem respostas e sem compreender
como é que se dá o processo, tanto de registro, mas também como de investigação
e responsabilização [pelos atos]", diz. Tudo isso em um contexto de
crescente sentimento anti-imigração. Para Inês Freire de Andrade, presidente da
organização No Bully Portugal, o que acontece nas escolas é um reflexo da
sociedade portuguesa como um todo. "As crianças estão repetindo
comportamentos que vem dos pais ou de outras pessoas adultas", aponta. "Essas
violências não estão descoladas de um contexto social e político português
marcado pelo aumento da direita populista que diz quem deve ou não viver nesse
país, quem pode ou não ser monitorado, quem tem direito ou não de circular na
rua sem ter os seus documentos verificados, quem fala ou não corretamente um
idioma", diz ainda Helena Schmitz, da associação Diásporas.
Segundo
relatório do Conselho Europeu, em 2023 foram registradas 347 queixas por crimes
de ódio e incitação à violência em Portugal — mais de cinco vezes o número de
2018, quando haviam sido contabilizadas 63. Uma pesquisa realizada pela
Fundação Francisco Manuel dos Santos mostrou ainda que cinco em cada 10
portugueses — 51% — dizem que a presença de brasileiros em Portugal deveria
diminuir, ainda que reconheçam a importância econômica dos imigrantes para o país
A
rejeição aos brasileiros só é menor do que a demonstrada em relação a cidadãos
do subcontinente indiano (Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh), que chegou a
60,8%.
A
comunidade brasileira é a maior entre os estrangeiros que residem em território
português: são mais de 510 mil brasileiros vivendo no país atualmente, segundo
o Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Não há pesquisas que meçam o impacto da rejeição e da xenofobia nas
escolas portuguesas. Sabe-se, porém, que a violência e os crimes estão
aumentando nas escolas portuguesas. Segundo dados do Programa Escola Segura
(PES), da Polícia de Segurança Pública (PSP), o total de ocorrências registadas
subiu de 3.824 no ano letivo de 2022/23, para 4.107 em 2023/24 – um aumento de
7,4%. Para as especialistas ouvidas pela BBC Brasil, a falta de dados
específicos evidencia a seriedade do problema e quanto o país ainda precisa
avançar sobre o tema. Elas também apontam para o problema da precarização
enfrentada por muitos profissionais da educação em Portugal, com falta de
formação adequada para lidar com diversidade, conflitos e discriminação.
Inês
Freire de Andrade explica que não existe em Portugal uma legislação específica
ou orientação geral sobre como lidar com crimes de bullying. As escolas do país
são incentivadas a participar de um programa ligado à Direção-Geral da
Educação, que oferece atividades e ferramentas para prevenção do bullying, mas
que não é obrigatório. A presidente da organização No Bully Portugal afirma,
porém, que famílias cujos filhos estejam enfrentando bullying ou agressões de
qualquer tipo na escola devem sempre dar apoio à criança em casa e contactar a
escola, de preferência por e-mail, para que haja registros escritos dos
ocorridos. Em casos mais graves, pode-se fazer queixa à polícia ou ao
Ministério Público.
Fonte:
BBC News Brasil

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