O
que 'nova' biografia de Marquês de Pombal revela sobre uma das figuras mais
controversas da História do Brasil
Figura
de destaque nos livros de História do Brasil, o diplomata e estadista Sebastião
José de Carvalho e Melo (1699-1782), conhecido como Marquês de Pombal, deixou
marcas no território brasileiro que acabaram moldando a organização do país
independente que haveria de se formar.
Marquês
de Pombal foi secretário de Estado do reino português entre 1750 e 1777,
durante o reinado de dom José 1º (1714-1777).
Ele era
adepto do "despotismo esclarecido", a combinação de princípios da
monarquia absolutista com o racionalismo iluminista.
Nessa
linha, monarcas e seus homens de confiança implementaram reformas como
limitações ao poder da Igreja Católica, desenvolvimento de indústrias e
aprimoramento do sistema judiciário, mas mantiveram o controle sobre a
sociedade, adaptando as ideias iluministas às suas necessidades.
Apesar
de controversa, sua gestão com mãos de ferro foi marcante e imprimiu mudanças
indeléveis na sociedade lusitana e brasileira — apesar de ele nunca ter pisado
no Brasil.
Pombal
colecionava admiradores e detratores.
Um de
seus grandes críticos contemporâneos, o cardeal dom José Francisco António de
Mendonça (1725-1808), patriarca de Lisboa, chegou ao ponto de escrever uma
minuciosa biografia — possivelmente a primeira escrita sobre Pombal — feita
para circular apenas em um grupo restrito.
Tudo
indica que ela foi escrita entre 1777 e 1786.
Descoberta
por dois pesquisadores brasileiros, uma das versões do inédito manuscrito
estava guardada na clausura do Mosteiro de São Bento de Salvador.
O texto
foi analisado, ganhou referências contextuais e agora saiu em livro: Primeira
Biografia do Marquês de Pombal (Bertrand, 2025).
Tudo
indica que o autor da biografia não visava à publicação.
"O
documento não circulou na época porque visivelmente não foi feito para ser
publicado, mas para ir para as mãos exatas. Era um relatório com feitos e fatos
com um tom pesadamente negativo em alguns pontos", comenta a paleógrafa
Alícia Duhá Lose, professora na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
coordenadora do projeto e do livro.
"Era
para ser entregue nas mãos da rainha, do príncipe, dos dirigentes da época,
para fazer o linchamento público da imagem do Pombal."
O fato
de a obra ter sido escrita pelo patriarca de Lisboa, dom Mendonça, é um fato
importante, ressalta Lose: "Não foi escrito por um 'zé ninguém', mas por
alguém de grande influência, uma pessoa muito ouvida nas instâncias de poder de
Portugal."
O
manuscrito com a biografia de Pombal inicialmente pertencia a uma coleção
particular no Rio de Janeiro e foi doado pelo então proprietário ao Mosteiro de
São Bento de Salvador.
Segundo
os pesquisadores, a intenção era que o material fosse melhor guardado e
estudado.
Mas o
manuscrito ficou arquivado sem que ninguém atentasse para seu valor histórico —
até que, em 2010, um princípio de incêndio causado por um desumidificador de ar
danificou algumas obras raras.
Especialistas
em livros antigos foram chamados para analisar o estrago e trabalharem na
recuperação.
Foi
quando Lose e o filólogo Rafael Magalhães se depararam com o manuscrito,
rubricado apenas como "códice 132", sem título ou autoria.
O
material foi pesquisado por Magalhães na iniciação científica, no mestrado e no
doutorado. Ao longo dos anos, foram descobertos a autoria, o ineditismo e a
relevância histórica do material — além de obras-irmãs.
Lose
conta que a Universidade de Coimbra, em Portugal, tem outra versão do documento
— "suja", ou seja, com emendas, observações e rasuras, como se fosse
o rascunho da versão definitiva.
A
Brasiliana, coleção que era do bibliófilo José Mindlin (1914-2010) e hoje fica
na Universidade de São Paulo (USP), tem outra cópia, um pouco mais avançada.
E o
manuscrito encontrado no Mosteiro de São Bento foi avaliado, pelos
pesquisadores, como a obra finalizada.
Nos dez
anos de pesquisa, descobriu-se que o texto não foi redigido por uma só pessoa.
Muito provavelmente, como era comum naquela época, o cardeal português incumbiu
uma equipe de redigir o material, sob sua supervisão.
Lose
explica que é possível identificar a "mão da autoridade" — uma
caligrafia menos apurada esteticamente mas que sinaliza, na versão primária, as
alterações que depois são seguidas nas versões seguintes. Seria a caneta de dom
Mendonça.
O
historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual
Paulista (Unesp), comenta que a descoberta, agora publicada em livro,
"enriquece o conhecimento e pode elucidar questões pontuais" a
respeito de Pombal e do período em que ele esteve no poder.
Martinez
não fez parte da equipe responsável pelo livro.
"Chama
a atenção para a importância da preservação da documentação histórica e para o
incentivo à pesquisa em arquivos brasileiros e portugueses", comenta,
acrescentando que as políticas públicas para arquivos e documentação estão
"defasadas e sucateadas" no Brasil.
Mais do
que curiosidades históricas — como o fato de que, até então, não se sabia o
local de nascimento de Pombal, que segundo o livro foi em Sernancelhe, no
Douro, em uma família de posses —, a biografia detalha o papel do então
secretário de Estado em um momento importante para a Coroa portuguesa e para a
formação do Brasil.
Pombal
implementou medidas que racionalizaram a administração colonial, transferiu a
capital de Salvador para o Rio, criou um departamento real para tratar a
questão indígena e determinou a obrigatoriedade do uso do português na vida
cotidiana da colônia.
Ao fim
do reinado de Dom José 1º, ele passou a acumular tanto poder que muitos o
definem, nesta fase, como ditador.
Oponentes
do regime passaram a ser perseguidos e presos no Forte de São João da
Junqueira, nos arredores de Lisboa.
Quando
o rei morreu, em 1777, e assumiu o trono sua herdeira Dona Maria 1º
(1734-1816), a Coroa mudou de rumo, instituindo a política que ficaria
conhecida como "viradeira": uma verdadeira gestão antipombalina.
Os
detratores do Marquês foram soltos e ele acabou se tornando uma carta fora do
baralho da nova administração. A nova rainha decidiu abrir um inquérito contra
Pombal, acusando-o de abuso de poder, enriquecimento ilícito e diversas outras
ilegalidades.
Ele
acabou condenado a "castigos corporais" — mas a rainha, por
clemência, decidiu comutar a pena para "desterro perpétuo",
obrigando-o a ficar longe da corte.
No
ostracismo, Pombal passaria o fim da vida na sua propriedade, na província da
Beira Litoral.
Mas
Martinez destaca que o legado do marquês ultrapassou esta derrocada.
"A
política pombalina, que sobreviveu à queda política do próprio Pombal, buscou
assegurar a sobrevivência do reino e da monarquia em Portugal, diante da
crescente agressividade de potências como França e a Inglaterra", afirma o
historiador.
Luiz
Eduardo Oliveira, coordenador da cátedra Marquês de Pombal na Universidade
Federal de Sergipe (UFS), chama a atenção também para a "influência
decisiva" do português no que "viria a ser o Estado brasileiro".
"Ele
foi o primeiro a projetar a colônia como um espaço único, homogêneo e rentável,
antecipando em parte o que depois seria a estrutura do Estado imperial
brasileiro."
Ao
mesmo tempo, a gestão de Pombal tornou a sociedade colonial no Brasil
"mais lusitana", diz Martinez — por exemplo, com a expansão de órgãos
administrativos e da presença militar, além de pesquisas, já baseadas na
ciência moderna, sobre as potencialidades do território e da força de trabalho.
"Novas
áreas de expansão foram abertas, como a lavoura canavieira em São Paulo,
posteriormente sucedida pela cafeicultura", ressalta.
Para o
pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros de História do Brasil, a
marca de Pombal foi impor uma "centralização do poder" que perdura
até hoje.
"Na
contemporaneidade você tem mais ou menos isso como legado: o governo federal
influencia as demais partes da federação, os Estados federados que compõem o
Brasil".
Outra
semelhança com os tempos atuais é a "polarização" causada por Pombal,
segundo os pesquisadores que descobriram o manuscrito.
"Uma
das principais descobertas que fiz [durante meus estudos] é que, se uma pessoa
procurar bem, encontrará alguém que falará exatamente o oposto daquilo que essa
pessoa sabe ou acredita saber sobre Pombal", afirma Magalhães.
Afinal,
o que o Marquês de Pombal fez para ser tão controverso?
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'Quinto dos infernos'
Magalhães
aponta que as "reformas pombalinas" buscaram otimizar a máquina
estatal portuguesa — e, para o Brasil, isso significava ter que ser uma colônia
mais produtiva em benefício da Coroa.
"Isso
implicava necessariamente ir contra os interesses de quem estava se
beneficiando com o estado anterior das coisas. E essa é uma das principais
causas de divisões entre adoradores e detratores de Pombal", explica o
filólogo.
Uma das
mudanças lideradas pelo Marquês de Pombal foi a transferência da capital da
colônia para o Rio de Janeiro, oficializada em 1763.
Essa
decisão, no futuro, contribuiria para o protagonismo econômico da região
brasileira que viria a ser conhecida como Sudeste.
Martinez
explica que a transferência foi implementada em um contexto em que a mineração
crescia em importância econômica — e, com isso, a necessidade de maior controle
militar, combate ao contrabando e fiscalização para arrecadação de impostos.
"Daí
a abertura de novas estradas, trajetos obrigatórios e postos de vigilância nas
vias de acesso e de circulação no interior de Minas Gerais, São Paulo e Rio de
Janeiro", exemplifica.
Rezzutti
ratifica a importância do Rio nesse contexto.
"Colocar
a administração no Rio fortalecia o estabelecimento de cidades e povoações mais
ao sul, justamente a área de conflito maior com a fronteira com a América
Espanhola", pontua o pesquisador.
"Também
facilitava escoar a principal riqueza do Brasil, na época, que era o ouro e as
pedras preciosas, ao levar a administração do Brasil para próximo dessa
riqueza."
A
arrecadação de impostos também foi aprimorada.
Antes
de circular, o ouro minerado precisava passar por um reconhecimento
governamental. Então, ele era fundido e 20% do total — um quinto — já acabava
automaticamente retido com a cobrança de impostos.
Era o
chamado "quinto dos infernos", na expressão popular.
A
cobrança da taxa fiscal já existia desde o século 16, mas a logística se tornou
mais eficiente na segunda metade do século 18 — tudo para evitar sonegação e
contrabandos.
"Pombal
não criou o sistema, mas ele reforçou", ressalta Rezzutti.
Segundo
Martinez, o controle da circulação de mercadores, pessoas, traficantes de
escravos, roceiros e artesãos completavam "o cerco" ao contrabando de
minérios.
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Repressão a línguas indígenas
Outra
decisão bombástica de Pombal foi expulsar a Companhia de Jesus, a ordem dos
jesuítas, do reino português.
A
justificativa tinha como pano de fundo a ideia iluminista de separação entre
Igreja e Estado, mas, na prática, também havia o objetivo de diminuir o poder
dos católicos na colônia.
No
início da colonização, esses religiosos tiveram papel preponderante.
Missionários
desde a primeira leva, os jesuítas dominavam idiomas indígenas e acabaram
controlando o trato europeu junto a estes povos.
A
pretexto de catequese e uma suposta proteção, acabaram tendo a tutela inclusive
sobre a mão de obra dessas pessoas.
Com a
expulsão dos jesuítas, Pombal criou o chamado Diretório dos Índios, para suprir
essa lacuna.
O órgão
promoveu o incentivo ao comércio entre nativos e colonos, além do casamento
entre indígenas e brancos.
Esse
tipo de "integração", muitas vezes forçada, acabou contribuindo para
o extermínio de alguns povos e culturas.
"Com
isso, as terras indígenas passaram a ser mais facilmente adentradas pelos
brancos", explica Rezzutti.
"De
certa forma, esse cenário criado por Pombal vai desaguar nos problemas que
temos hoje com questões de terras indígenas."
A
escravização dos indígenas também passou a ser proibida.
"Essa
integração tem um verniz iluminista: era algo como 'civilizar o selvagem'. Ao
mesmo tempo, tirava-se da mão dos fazendeiros os escravizados indígenas",
diz Rezzutti.
"Esses
indígenas vão trabalhar para o Estado português, como assalariados, mas não
deixavam de ter de trabalhar para o europeu. Eles serão mão de obra essencial
para a retirada dos produtos coloniais levados para a Europa."
Oliveira
pontua que, com o discurso de "civilizar" e "integrar" os
povos indígenas, o Diretório dos Índios acabou suprimindo as estruturas
comunitárias dos povos nativos.
"O
casamento misto foi estimulado como forma de 'miscigenação civilizadora', mas
acabou resultando em etnocídio e na destruição de muitos povos, pois os brancos
passaram a habitar as antigas aldeias, agora alçadas a vilas", diz o
professor.
"O
Diretório revela um paradoxo pombalino: um discurso iluminista de 'inclusão'
mascarando uma prática colonial de dominação."
Na
mesma toada de fortalecer o controle português, Pombal proibiu o uso de línguas
indígenas na colônia.
Na
época, a chamada língua geral, uma evolução do tupi antigo, era a mais
praticada no território.
Essa
medida acabou fazendo com que o Brasil deixasse de ser, ao menos na esfera
oficial, um país multilíngue — o que levou ao desaparecimento de centenas de
idiomas nativos.
Filólogos
contemporâneos acreditam que havia mais de mil línguas faladas no território há
500 anos — hoje, restam menos de 200.
A
expulsão dos jesuítas teve como efeito colateral uma lacuna educacional — nas
palavras de Rezzutti, houve "descontinuidade na educação", já que os
colégios que havia então eram mantidos pelos religiosos da Companhia de Jesus e
foram desativados em 1759.
Alguns
deles voltaram a funcionar a partir do século seguinte — os primeiros jesuítas
a retornarem ao Brasil chegaram em 1841.
No
mesmo ano que Pombal determinou a expulsão dos jesuítas no Reino, a Coroa criou
um instrumento chamado Aulas Régias. Foi o primeiro modelo a sistematizar um
ensino laico em Portugal — e, por extensão, em suas colônias.
Em
1759, foi nomeado um diretor de estudos na Bahia, mas os primeiros concursos
para professores só ocorreram em 1760 no Rio de Janeiro e no Recife. A primeira
nomeação, apenas cinco anos mais tarde.
Ao
trocar a roda do carro de bois com o veículo em movimento, foi inevitável que
houvesse uma lacuna sem aulas formais na colônia. Além disso, o sistema de
ensino capilarizado outrora comandado pelos religiosos se perdeu.
Mesmo
diante de uma figura histórica que trouxe tantos impactos para o Brasil e para
Portugal, Martinez afirma que as pesquisas contemporâneas têm acalmado os
ânimos nas opiniões sobre Pombal.
"O
desenvolvimento da pesquisa histórica, o debate e o conhecimento apurado da
época, do Estado colonial e da monarquia portuguesa têm ampliado as
perspectivas de análise e de interpretação dos significados do pombalismo e da
figura do próprio Pombal. Há menos maniqueísmo e menor monocausalidade nos
argumentos históricos."
Fonte:
BBC News Brasil

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