Christiany
Fonseca: A faixa e a cela - o Brasil que transforma presidentes em réus
No
Brasil, a Presidência da República é a única função em que o ocupante sobe a
rampa como monarca imaginário e, ao final, desce as escadas da história como
investigado ou até como preso. É um cargo que oferece pompa, aparato oficial e
plateia permanente, mas que devolve, inevitavelmente, o espelho mais cruel do
poder: aquilo que o presidente fez quando acreditou que o país dormia. Aqui, o
poder não transforma. O poder revela.
Da
redemocratização para cá, sete presidentes chegaram ao topo do sistema
político. Quase a metade terminou descobrindo o Estado sob outra perspectiva, a
de quem conhece a burocracia não pela liturgia do cargo, mas pelas engrenagens
do processo penal. Isso não é coincidência, não é azar estatístico e não é
acidente histórico. É um ritual brasileiro que se repete com precisão
irritante. Celebramos a posse como se fosse um épico nacional e assistimos ao
pós-mandato como um inevitável acerto de contas.
Collor
se tornou sinônimo de corrupção em um país que ainda aprendia a respirar a
democracia. Temer mergulhou em investigações que lembravam enredo improvisado
de thriller político. Lula atravessou o turbilhão da Lava-Jato, foi condenado,
preso, libertado e viu suas condenações desmoronarem junto com a credibilidade
daqueles que usaram o Judiciário como palco. Bolsonaro levou o caos
institucional ao limite. Tentou golpe, desafiou decisões judiciais, acumulou
descumprimentos, enfrentou prisão preventiva e, agora, começa a cumprir sua
pena definitiva após o trânsito em julgado da condenação pela trama golpista.
São
histórias distintas, mas o padrão é o mesmo. Quando a cúpula desaba, cai
levando junto a confiança do país inteiro. O Código Penal, tão rápido para
punir os vulneráveis, chegou ao andar de cima empurrado pelas circunstâncias.
Chegou tarde, com relutância, mas acabou chegando. E, quando chega, não importa
o tamanho do aparato que cercava o ex-presidente. A queda iguala todos.
Ao
longo desse enredo, o sistema de justiça assumiu o protagonismo. O Supremo
Tribunal Federal (STF) pauta a semana. A Polícia Federal narra os fatos quase
em tempo real. O Ministério Público produz capítulos dignos de série
documental. A mídia repercute, dramatiza, interpreta e converte cada
desdobramento em uma nova temporada desse ciclo político interminável. Nada
muda, apenas se atualiza o escândalo.
É dessa
dinâmica que nasce a polarização permanente. Para muitos, Lula foi vítima de
perseguição disfarçada de moralidade judicial. Para outros, Bolsonaro é alvo de
uma caçada institucional. E, para uma parcela crescente da população, nenhum
deles tem credibilidade para reivindicar qualquer tipo de absolvição moral.
O país
se transformou em um território em que a fidelidade importa mais do que a
evidência. A narrativa virou arma política. A prova virou detalhe. A sentença
virou termômetro de torcida. Quando a justiça passa a ser tratada como
instrumento político, ela perde sua função de pacificar e ganha a capacidade de
incendiar.
A
primeira prisão presidencial provocou choque. A segunda dividiu o país. A
terceira virou espetáculo absoluto. A quarta não surpreendeu ninguém. A prisão
de ex-presidentes passou a compor o noticiário como se fosse previsão de chuva.
O absurdo foi normalizado. Enquanto isso, quem não carrega sobrenome conhecido
continua sendo preso em massa, sem destaque, sem defesa técnica, sem manchete e
sem qualquer glamour de crise institucional.
Continuamos
sendo um país que pune tarde. O sistema reage quando o golpe já foi tentado,
quando o esquema já se consolidou, quando o prejuízo já é irreversível. É uma
justiça que chega tarde demais para impedir e cedo demais para permitir que o
país esqueça. A pergunta que evitamos fazer segue ecoando: por que tantos
presidentes transitam tão perto da ilegalidade? Porque o poder ainda é visto
como território livre. Porque quem chega ao topo acredita que o Brasil é
tolerante demais para se indignar e lento demais para punir. A queda, por isso,
deixa de ser apenas punição. Torna-se exposição pública, vexame nacional e
lição torta de moralidade.
Até que
o país decida impedir, em vez de remediar, vamos repetir essa coreografia
desgastada. Presidente pela manhã, réu pelo entardecer, assunto do noticiário à
noite. Tudo isso compõe a rotina política de um Brasil que conhece seus líderes
por duas imagens opostas. A oficial, com faixa e sorriso calculado. E a
verdadeira, registrada em processos, inquéritos e investigações.
• As lágrimas amargas de Michelle
Bolsonaro. Por Caio Vasconcellos
Na
última parte de seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”, Walter Benjamin inverte o tom deslocadamente otimista de seu
diagnóstico sobre o potencial político revolucionário da experiência cultural
mediada por aparatos tecnológicos, alertando para os perigos da chamada
“estetização da política” gestada pelo fascismo histórico – a apoteose fascista
da guerra permitiria às massas desfrutar sua própria destruição como uma
experiência estética.
Transformado
em denominador comum do mainstream político das democracias de massa, o
entrelaçamento entre política e entretenimento se tornou elemento-chave para a
compreensão da ascensão da direita radical contemporânea mundo afora. Em Trump:
an american serial melodrama, Linda Williams analisa a figura do mandatário
estadunidense como a personificação carismática do poder neoliberal.
Se, no
início dos anos 1980, Ronald Reagan já havia mobilizado categorias do melodrama
para classificar a URSS como império do mal e conceber a Guerra Fria de maneira
maniqueísta, Trump aprofundaria a instrumentalização do gênero hegemônico da
exploração industrial de cultura como forma de comunicação e mobilização
política.
Prelúdio
de sua presidência, a série O Aprendiz não apenas o tornou uma figura
nacionalmente conhecida. Enquanto na tradição clássica vitoriana o chefe que se
disfarça de trabalhador para vigiar seus funcionários se torna alguém melhor ao
descobrir a dureza das condições de vida de seus empregados, Donald Trump
compõe uma nova personagem na imaginação melodramática contemporânea, qual
seja, o vilão-herói, cujas expectativas irracionais e muitas vezes
inescrutáveis não são explicadas nem questionadas, mas devem ser aceitas pelo
medo.
Assim,
se o encantamento fetichista do entretenimento constitui um caminho profícuo
para compreender a dinâmica de sedução da direita radical contemporânea, as
personagens e os enredos se atualizam ao sabor das conjunturas políticas. O
melodrama trumpista cristalizou um tipo de liderança fundada na virilidade e na
brutalidade, mas o cenário brasileiro parece ensaiar uma inflexão
significativa.
Em
contraste com esse modelo do vilão-herói, a figura de Michelle Bolsonaro
deslinda uma nova configuração de carisma autoritário. Sustentado pela emoção
devocional e por suas dores pessoais, seu discurso pode ser capaz de
reconfigurar as formas de mobilização afetiva do bolsonarismo – se o
encantamento autoritário se afirmava pelo grito e pela grosseria de seu marido,
agora Michelle Bolsonaro parece buscar seduzir pelas lágrimas e pela fé.
Se é
certo que a misoginia é um elemento estruturante da direita radical
contemporânea, o grosso de sua crítica também revela um persistente pendor
masculino. A princípio, tal viés espelharia a objetividade de quem conduz o
celerado trote da cavalgadura. Ora, os principais expoentes da direita radical
mundo afora são homens – tal como, majoritariamente, entre os grupos
progressistas –; as mulheres, por seu turno, constituem o grupo social menos
afeito à dinâmica de sedução de seus discursos, bandeiras e promessas
políticas.
Conquanto
os atores e os enredos possam ser replicados no pleito presidencial do próximo
ano, Michelle Bolsonaro dá a impressão de embaralhar as cartas do jogo. Embora
as disputas – entre os aliados e, claro, dentro da família – sejam
imprevisíveis e encarniçadas, seus movimentos são audaciosos e revelam
potencial de forte tração eleitoral.
Na
mesma semana em que dinamitou o acordo costurado por Bolsonaro e Ciro Gomes,
seu nome emergiu tecnicamente empatado com Lula na projeção de segundo turno da
última pesquisa Atlas-Intel – com os mesmos 47 pontos que Bolsonaro e Tarcísio,
ante 49 do líder petista.
Presidenta
do PL Mulher desde março de 2023, Michelle Bolsonaro desempenhou um papel
relativamente ativo durante o mandato de Jair Bolsonaro. Oriunda da periferia
de Ceilândia, a possível candidata foi a primeira e única esposa de um
presidente da República a discursar – e o fez em Libras – durante a sua
cerimônia de posse.
Além da
repercussão pública de seu transe em línguas após a aprovação de André Mendonça
ao STF, Michelle Bolsonaro buscou construir uma imagem – por óbvio, demagógica
– de defensora dos direitos de pessoas com deficiência, com doenças raras e de
conscientização sobre o autismo.
Contudo,
em vez de projetar o futuro por suas movimentações de bastidores, convém trazer
à cena aspectos da personagem que Michelle Bolsonaro ensaia representar. Para
tanto, seu discurso na manifestação de 7 de setembro de 2025, na Avenida
Paulista, reúne elementos importantes dos apelos emocionais de sua figura de
liderança e do enredo de sua trama política.
Destoando
do caráter espalhafatoso, abertamente belicista, e do humor chulo típicos de
Jair Bolsonaro, sua oratória e seus gestuais são mais contidos, devocionais, e
patentemente emocionados. Pontuando suas frases com expressões e referências
religiosas, Michelle Bolsonaro pode oferecer uma roupagem mais dócil e
palatável ao autoritarismo do campo bolsonarista – o trote áspero da
cavalgadura a ser destronado pela melodia de uma cavalgada pretensamente mansa.
Senão, vejamos.
Com o
louvor “Bênçãos que não têm fim” ao fundo, Michelle Bolsonaro assume o
microfone no palanque vestindo uma camiseta nas formas e cores da bandeira
nacional – um estilizado “ore pelo Brasil” substituía o “ordem e progresso” –,
um blazer bege e um boné de um time de beisebol da Califórnia.
Antes
de começar sua fala, há um breve momento para o registro de um choro mais
demarcado por expressões faciais do que por lágrimas visíveis ou alterações no
timbre da voz.
Em tom
melosamente monocórdico, o discurso se desdobra ressaltando o momento difícil
que atravessava, o tortuoso acúmulo de funções – “como mãe, esposa, presidente
do PL e, antes de tudo, como amiga” –, o zelo com a alimentação de seu marido,
com seu bem-estar, e o peso dilacerante de todo esse processo – “dói na pele,
dói na alma sentir toda essa injustiça”.
Referindo-se
à sua audiência como “meus amados”, Michelle Bolsonaro articula habilmente
temas e bandeiras do bolsonarismo – a vida antes da concepção, um país sem
drogas, anistia ampla, geral e irrestrita, a defesa do Estado genocida de
Israel – com dramas e dores de sua vida pessoal e familiar.
Espécie
de paródia do slogan feminista “o pessoal é político”, sua retórica torna a
intimidade de seu lar no epicentro das batalhas políticas das quais Michelle
pretende ser protagonista.
Assim,
no trecho mais carregado emocionalmente: “Ali [o 5o artigo da Constituição]
fala que a casa [com ênfase] é um asilo inviolável. Ali fala que ninguém vai
sofrer tortura. Que ninguém vai sofrer a violação dos seus direitos. A pessoa
não vai sofrer a degradação, e eu vejo todos os dias acontecer na porta da
minha casa. Eu vejo policiais na outra esquina vigiando os policiais que estão
vigiando a minha casa. A minha casa sendo violada. A imagem da minha família,
que está na Constituição que garante a proteção, sendo violada. A minha filha
de 14 anos tendo que ir para escola e todos os dias ter que abrir o carro para
a polícia verificar se tem alguém escondido dentro. [frase termina em uma
crescente emocional]”
A
religiosidade de Michelle Bolsonaro é outro elemento fundamental. A prisão
domiciliar de Bolsonaro se transubstancia em perseguição religiosa – “eu sempre
fiz culto doméstico na minha casa. (…). Eu não posso fazer um culto religioso
porque ele [Alexandre de Moraes] não permitiu, e eu pedi. Libera a petição,
libera os meus irmãos estarem comigo nesse momento.”.
Ao
mesmo tempo, sua missão política se reveste da sacralidade de uma redenção.
Insuflado pelo Messias amordaçado e, à época, de tornozeleira, o exército de
homens e mulheres de bem irá concluir sua obra. Tão logo abandonem o pecado e
as iniquidades, os artífices da “ditadura judicial” – Alexandre de Moraes é
citado nominalmente – experimentarão a misericórdia e o perdão divinos.
Abençoadas por quem está sentado no trono dos céus, as promessas de uma pátria
de homens e mulheres cristãos realizarão a verdadeira democracia de uma “dupla
honra”, livrando-os do comunismo e do socialismo – o tom ora manso da cavalgada
não abandona o coice e a ferradura”.
Em
certo sentido, o casal Jair Messias e Michelle Bolsonaro parece representar
personagens complementares de uma mesma trama melodramática. Enquanto o
primeiro encarnaria o modelo trumpista do “vilão-herói” que impõe seus
objetivos pelo medo e pela ameaça, suscitando ódio e se alimentando de
ressentimentos; Michelle se assemelha mais à figura de uma vítima indefesa e
piedosa, cujo sofrimento é capaz de lançar uma missão redentora. Quiçá pelo
excesso de lágrimas e de orações, o cortejo autoritário nacional ameaça seguir
o seu curso com a cavalgadura trocando o açoite pela unção – tal como sempre, a
providência divina não terá misericórdia de nós.
Fonte:
Correio Braziliense/A Terra é Redonda

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