terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Christiany Fonseca: A faixa e a cela - o Brasil que transforma presidentes em réus

No Brasil, a Presidência da República é a única função em que o ocupante sobe a rampa como monarca imaginário e, ao final, desce as escadas da história como investigado ou até como preso. É um cargo que oferece pompa, aparato oficial e plateia permanente, mas que devolve, inevitavelmente, o espelho mais cruel do poder: aquilo que o presidente fez quando acreditou que o país dormia. Aqui, o poder não transforma. O poder revela.

Da redemocratização para cá, sete presidentes chegaram ao topo do sistema político. Quase a metade terminou descobrindo o Estado sob outra perspectiva, a de quem conhece a burocracia não pela liturgia do cargo, mas pelas engrenagens do processo penal. Isso não é coincidência, não é azar estatístico e não é acidente histórico. É um ritual brasileiro que se repete com precisão irritante. Celebramos a posse como se fosse um épico nacional e assistimos ao pós-mandato como um inevitável acerto de contas.

Collor se tornou sinônimo de corrupção em um país que ainda aprendia a respirar a democracia. Temer mergulhou em investigações que lembravam enredo improvisado de thriller político. Lula atravessou o turbilhão da Lava-Jato, foi condenado, preso, libertado e viu suas condenações desmoronarem junto com a credibilidade daqueles que usaram o Judiciário como palco. Bolsonaro levou o caos institucional ao limite. Tentou golpe, desafiou decisões judiciais, acumulou descumprimentos, enfrentou prisão preventiva e, agora, começa a cumprir sua pena definitiva após o trânsito em julgado da condenação pela trama golpista.

São histórias distintas, mas o padrão é o mesmo. Quando a cúpula desaba, cai levando junto a confiança do país inteiro. O Código Penal, tão rápido para punir os vulneráveis, chegou ao andar de cima empurrado pelas circunstâncias. Chegou tarde, com relutância, mas acabou chegando. E, quando chega, não importa o tamanho do aparato que cercava o ex-presidente. A queda iguala todos.

Ao longo desse enredo, o sistema de justiça assumiu o protagonismo. O Supremo Tribunal Federal (STF) pauta a semana. A Polícia Federal narra os fatos quase em tempo real. O Ministério Público produz capítulos dignos de série documental. A mídia repercute, dramatiza, interpreta e converte cada desdobramento em uma nova temporada desse ciclo político interminável. Nada muda, apenas se atualiza o escândalo.

É dessa dinâmica que nasce a polarização permanente. Para muitos, Lula foi vítima de perseguição disfarçada de moralidade judicial. Para outros, Bolsonaro é alvo de uma caçada institucional. E, para uma parcela crescente da população, nenhum deles tem credibilidade para reivindicar qualquer tipo de absolvição moral.

O país se transformou em um território em que a fidelidade importa mais do que a evidência. A narrativa virou arma política. A prova virou detalhe. A sentença virou termômetro de torcida. Quando a justiça passa a ser tratada como instrumento político, ela perde sua função de pacificar e ganha a capacidade de incendiar.

A primeira prisão presidencial provocou choque. A segunda dividiu o país. A terceira virou espetáculo absoluto. A quarta não surpreendeu ninguém. A prisão de ex-presidentes passou a compor o noticiário como se fosse previsão de chuva. O absurdo foi normalizado. Enquanto isso, quem não carrega sobrenome conhecido continua sendo preso em massa, sem destaque, sem defesa técnica, sem manchete e sem qualquer glamour de crise institucional.

Continuamos sendo um país que pune tarde. O sistema reage quando o golpe já foi tentado, quando o esquema já se consolidou, quando o prejuízo já é irreversível. É uma justiça que chega tarde demais para impedir e cedo demais para permitir que o país esqueça. A pergunta que evitamos fazer segue ecoando: por que tantos presidentes transitam tão perto da ilegalidade? Porque o poder ainda é visto como território livre. Porque quem chega ao topo acredita que o Brasil é tolerante demais para se indignar e lento demais para punir. A queda, por isso, deixa de ser apenas punição. Torna-se exposição pública, vexame nacional e lição torta de moralidade.

Até que o país decida impedir, em vez de remediar, vamos repetir essa coreografia desgastada. Presidente pela manhã, réu pelo entardecer, assunto do noticiário à noite. Tudo isso compõe a rotina política de um Brasil que conhece seus líderes por duas imagens opostas. A oficial, com faixa e sorriso calculado. E a verdadeira, registrada em processos, inquéritos e investigações.

•        As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro. Por Caio Vasconcellos

Na última parte de seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin inverte o tom deslocadamente otimista de seu diagnóstico sobre o potencial político revolucionário da experiência cultural mediada por aparatos tecnológicos, alertando para os perigos da chamada “estetização da política” gestada pelo fascismo histórico – a apoteose fascista da guerra permitiria às massas desfrutar sua própria destruição como uma experiência estética.

Transformado em denominador comum do mainstream político das democracias de massa, o entrelaçamento entre política e entretenimento se tornou elemento-chave para a compreensão da ascensão da direita radical contemporânea mundo afora. Em Trump: an american serial melodrama, Linda Williams analisa a figura do mandatário estadunidense como a personificação carismática do poder neoliberal.

Se, no início dos anos 1980, Ronald Reagan já havia mobilizado categorias do melodrama para classificar a URSS como império do mal e conceber a Guerra Fria de maneira maniqueísta, Trump aprofundaria a instrumentalização do gênero hegemônico da exploração industrial de cultura como forma de comunicação e mobilização política.

Prelúdio de sua presidência, a série O Aprendiz não apenas o tornou uma figura nacionalmente conhecida. Enquanto na tradição clássica vitoriana o chefe que se disfarça de trabalhador para vigiar seus funcionários se torna alguém melhor ao descobrir a dureza das condições de vida de seus empregados, Donald Trump compõe uma nova personagem na imaginação melodramática contemporânea, qual seja, o vilão-herói, cujas expectativas irracionais e muitas vezes inescrutáveis não são explicadas nem questionadas, mas devem ser aceitas pelo medo.

Assim, se o encantamento fetichista do entretenimento constitui um caminho profícuo para compreender a dinâmica de sedução da direita radical contemporânea, as personagens e os enredos se atualizam ao sabor das conjunturas políticas. O melodrama trumpista cristalizou um tipo de liderança fundada na virilidade e na brutalidade, mas o cenário brasileiro parece ensaiar uma inflexão significativa.

Em contraste com esse modelo do vilão-herói, a figura de Michelle Bolsonaro deslinda uma nova configuração de carisma autoritário. Sustentado pela emoção devocional e por suas dores pessoais, seu discurso pode ser capaz de reconfigurar as formas de mobilização afetiva do bolsonarismo – se o encantamento autoritário se afirmava pelo grito e pela grosseria de seu marido, agora Michelle Bolsonaro parece buscar seduzir pelas lágrimas e pela fé.

Se é certo que a misoginia é um elemento estruturante da direita radical contemporânea, o grosso de sua crítica também revela um persistente pendor masculino. A princípio, tal viés espelharia a objetividade de quem conduz o celerado trote da cavalgadura. Ora, os principais expoentes da direita radical mundo afora são homens – tal como, majoritariamente, entre os grupos progressistas –; as mulheres, por seu turno, constituem o grupo social menos afeito à dinâmica de sedução de seus discursos, bandeiras e promessas políticas.

Conquanto os atores e os enredos possam ser replicados no pleito presidencial do próximo ano, Michelle Bolsonaro dá a impressão de embaralhar as cartas do jogo. Embora as disputas – entre os aliados e, claro, dentro da família – sejam imprevisíveis e encarniçadas, seus movimentos são audaciosos e revelam potencial de forte tração eleitoral.

Na mesma semana em que dinamitou o acordo costurado por Bolsonaro e Ciro Gomes, seu nome emergiu tecnicamente empatado com Lula na projeção de segundo turno da última pesquisa Atlas-Intel – com os mesmos 47 pontos que Bolsonaro e Tarcísio, ante 49 do líder petista.

Presidenta do PL Mulher desde março de 2023, Michelle Bolsonaro desempenhou um papel relativamente ativo durante o mandato de Jair Bolsonaro. Oriunda da periferia de Ceilândia, a possível candidata foi a primeira e única esposa de um presidente da República a discursar – e o fez em Libras – durante a sua cerimônia de posse.

Além da repercussão pública de seu transe em línguas após a aprovação de André Mendonça ao STF, Michelle Bolsonaro buscou construir uma imagem – por óbvio, demagógica – de defensora dos direitos de pessoas com deficiência, com doenças raras e de conscientização sobre o autismo.

Contudo, em vez de projetar o futuro por suas movimentações de bastidores, convém trazer à cena aspectos da personagem que Michelle Bolsonaro ensaia representar. Para tanto, seu discurso na manifestação de 7 de setembro de 2025, na Avenida Paulista, reúne elementos importantes dos apelos emocionais de sua figura de liderança e do enredo de sua trama política.

Destoando do caráter espalhafatoso, abertamente belicista, e do humor chulo típicos de Jair Bolsonaro, sua oratória e seus gestuais são mais contidos, devocionais, e patentemente emocionados. Pontuando suas frases com expressões e referências religiosas, Michelle Bolsonaro pode oferecer uma roupagem mais dócil e palatável ao autoritarismo do campo bolsonarista – o trote áspero da cavalgadura a ser destronado pela melodia de uma cavalgada pretensamente mansa. Senão, vejamos.

Com o louvor “Bênçãos que não têm fim” ao fundo, Michelle Bolsonaro assume o microfone no palanque vestindo uma camiseta nas formas e cores da bandeira nacional – um estilizado “ore pelo Brasil” substituía o “ordem e progresso” –, um blazer bege e um boné de um time de beisebol da Califórnia.

Antes de começar sua fala, há um breve momento para o registro de um choro mais demarcado por expressões faciais do que por lágrimas visíveis ou alterações no timbre da voz.

Em tom melosamente monocórdico, o discurso se desdobra ressaltando o momento difícil que atravessava, o tortuoso acúmulo de funções – “como mãe, esposa, presidente do PL e, antes de tudo, como amiga” –, o zelo com a alimentação de seu marido, com seu bem-estar, e o peso dilacerante de todo esse processo – “dói na pele, dói na alma sentir toda essa injustiça”.

Referindo-se à sua audiência como “meus amados”, Michelle Bolsonaro articula habilmente temas e bandeiras do bolsonarismo – a vida antes da concepção, um país sem drogas, anistia ampla, geral e irrestrita, a defesa do Estado genocida de Israel – com dramas e dores de sua vida pessoal e familiar.

Espécie de paródia do slogan feminista “o pessoal é político”, sua retórica torna a intimidade de seu lar no epicentro das batalhas políticas das quais Michelle pretende ser protagonista.

Assim, no trecho mais carregado emocionalmente: “Ali [o 5o artigo da Constituição] fala que a casa [com ênfase] é um asilo inviolável. Ali fala que ninguém vai sofrer tortura. Que ninguém vai sofrer a violação dos seus direitos. A pessoa não vai sofrer a degradação, e eu vejo todos os dias acontecer na porta da minha casa. Eu vejo policiais na outra esquina vigiando os policiais que estão vigiando a minha casa. A minha casa sendo violada. A imagem da minha família, que está na Constituição que garante a proteção, sendo violada. A minha filha de 14 anos tendo que ir para escola e todos os dias ter que abrir o carro para a polícia verificar se tem alguém escondido dentro. [frase termina em uma crescente emocional]”

A religiosidade de Michelle Bolsonaro é outro elemento fundamental. A prisão domiciliar de Bolsonaro se transubstancia em perseguição religiosa – “eu sempre fiz culto doméstico na minha casa. (…). Eu não posso fazer um culto religioso porque ele [Alexandre de Moraes] não permitiu, e eu pedi. Libera a petição, libera os meus irmãos estarem comigo nesse momento.”.

Ao mesmo tempo, sua missão política se reveste da sacralidade de uma redenção. Insuflado pelo Messias amordaçado e, à época, de tornozeleira, o exército de homens e mulheres de bem irá concluir sua obra. Tão logo abandonem o pecado e as iniquidades, os artífices da “ditadura judicial” – Alexandre de Moraes é citado nominalmente – experimentarão a misericórdia e o perdão divinos. Abençoadas por quem está sentado no trono dos céus, as promessas de uma pátria de homens e mulheres cristãos realizarão a verdadeira democracia de uma “dupla honra”, livrando-os do comunismo e do socialismo – o tom ora manso da cavalgada não abandona o coice e a ferradura”.

Em certo sentido, o casal Jair Messias e Michelle Bolsonaro parece representar personagens complementares de uma mesma trama melodramática. Enquanto o primeiro encarnaria o modelo trumpista do “vilão-herói” que impõe seus objetivos pelo medo e pela ameaça, suscitando ódio e se alimentando de ressentimentos; Michelle se assemelha mais à figura de uma vítima indefesa e piedosa, cujo sofrimento é capaz de lançar uma missão redentora. Quiçá pelo excesso de lágrimas e de orações, o cortejo autoritário nacional ameaça seguir o seu curso com a cavalgadura trocando o açoite pela unção – tal como sempre, a providência divina não terá misericórdia de nós.

 

Fonte: Correio Braziliense/A Terra é Redonda

 

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