Familiares de
mortos e desaparecidos na ditadura pedem a retomada de Comissão
Passadas
12 semanas da posse do novo governo, ainda não foi reinstalada a CEMDP
(Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) extinta pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro no penúltimo dia de seu mandato, em 30 de
dezembro. Hoje (28) familiares de mortos e desaparecidos na ditadura militar
(1964-1985) deverão se reunir em Brasília com o ministro Silvio Almeida
(Direitos Humanos e Cidadania) para pedir o retorno das atividades da CEMDP, a
retomada das buscas pelos corpos dos desaparecidos e a conclusão de casos
considerados pendentes, entre outras medidas.
São
esperados para o encontro com Almeida cerca de 150 familiares dos mortos e
desaparecidos, incluindo mais de 40 parentes de camponeses. Procurado pela
Agência Pública, o ministério afirmou que a reunião não será aberta à imprensa.
Disse que “tem trabalhado intensamente para a reinstalação da CEMDP, tomando
todas as medidas cabíveis para que isso ocorra e tratando o caso com máxima
prioridade” e que o “processo está, neste momento, na Presidência para decisão”
(leia ao final a íntegra das respostas do ministério).
A
CCV (Comissão Camponesa da Verdade), criada em 2012 por diversas organizações
não governamentais, como a Contag, a CPT, o MBA e o MST, também solicitou uma
audiência com Almeida para reforçar “o reconhecimento dos direitos à Justiça de
Transição das comunidades camponesas”.
A
CCV pede a revisão da lei que criou a CEMDP (nº 9.140/95) a fim de “reabrir o
prazo para requerimentos dos familiares de mortos e desaparecidos, inclusive
camponeses e indígenas” e explicitar esses dois grupos como “elegíveis aos
direitos” que a lei concedeu “por ação ou por omissão dos agentes do Estado”.
O
ex-preso político na ditadura, ex-deputado federal pelo PT de Mato Grosso e
membro da CCV Gilney Viana, um especialista no tema da violência da ditadura
contra os camponeses, disse à Pública que “o diagnóstico hoje é que houve quase
que uma exclusão dos camponeses e indígenas” na Justiça de Transição até aqui.
Ele menciona que, desde 1995, a CEMDP não recepcionou nenhum caso de indígena e
dos 50 casos de camponeses, 27 foram deferidos e 23, indeferidos. Na Comissão
de Anistia, apenas 15 casos de indígenas foram deferidos, em um total geral de
78.887 protocolos até outubro de 2020. A CCV aponta que esse “é o retrato da
exclusão total dos indígenas e quase total dos camponeses da Justiça de
Transição nos processos administrativos”.
Para
Viana, a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) cumpriu “apenas parcialmente
seu mandato de ‘efetivar o direito à memória e à verdade histórica’”. Em artigo
publicado neste mês na revista “Xapuri Socioambiental”, Viana escreveu que, por
um lado, a CNV teve “o mérito de provar que as prisões ilegais, torturas,
estupros, assassinatos de opositores políticos e ativistas sociais, e ainda
ocultação de cadáveres, foram responsabilidade do Estado e não de agentes
isolados do sistema repressivo”. Por outro, “ao não reconhecer nenhum,
literalmente nenhum indígena, como morto e ou desaparecido forçado, quando
tinha conhecimento de que pelo menos 8.350 casos de assassinatos de indígenas
com participação e responsabilidade do Estado, no período estudado, reproduziu
a lógica da exclusão da exclusão: exclusão histórica dos direitos da cidadania
e exclusão dos direitos à memória, verdade, justiça e não repetição”.
“Ao reconhecer apenas 41 camponeses mortos e
desaparecidos”, continuou Viana, “quando tinha em mãos uma relação de 1.196
camponeses mortos e desaparecidos (incluindo 14 advogados e 7 religiosos
apoiadores das causas camponesa e indígena) reproduziu o preconceito de classe,
rendeu-se à cultura colonial da casa grande e do latifúndio que não reconhece a
resistência camponesa como luta política, como exercício de direito formalmente
estabelecido e politicamente conquistado”.
Criada
em 1995 sob pressão dos familiares e ex-presos políticos no primeiro ano do
governo FHC (1995-2002), a CEMDP tinha por objetivo “proceder ao reconhecimento
das pessoas” mortas e desaparecidas “em razão de participação, ou acusação de
participação, em atividades políticas” de 1961 a 1979 (depois, em 2002, a data
final foi estendida para 1988). Outras tarefas da comissão eram “envidar
esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas” e “emitir
parecer sobre os requerimentos relativos a indenização que venham a ser
formulados” pelas famílias abarcadas pela lei.
A
comissão ficou, ao longo do governo Bolsonaro, vinculada ao Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob comando da pastora evangélica,
bolsonarista e hoje senadora Damares Alves. Na maior parte do tempo foi
presidida por um assessor de Damares, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, até
então um completo desconhecido no tema da ditadura militar e que já disse que o
golpe militar de 1964 evitou “uma ditadura comunista” no Brasil. O governo
Bolsonaro trocou quatro, dos sete membros, e assim garantiu a maioria no
colegiado.
Desde
o começo, o governo Bolsonaro deu indicações de que pretendia extinguir a
CEMDP. Por duas vezes, em 2022, o Ministério Público Federal manifestou-se
contrariamente a essa possibilidade. Em recomendação de dezembro último, o MPF
mencionou que a CEMDP é necessária para “a perfeita execução das condenações”
impostas ao Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada à
OEA (Organização dos Estados Americanos).
O
MPF citou os casos “’Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia)’, julgado em
2010, ocasião na qual o Estado brasileiro foi obrigado a ‘realizar esforços
para determinar o paradeiro das vítimas, e identificar e entregar os restos
mortais a seus familiares’ e a ‘indenizar as vítimas (reparação pecuniária por
dano moral, material e por restituição de custas e gastos)’ (trechos da
sentença); e do caso ‘Vladmir Herzog’, em que foi estabelecido que o Brasil
deve ‘adotar as medidas mais idôneas, conforme suas instituições, para que se
reconheça, sem exceção, a imprescritibilidade das ações emergentes de crimes
contra a humanidade e internacionais, em atenção à presente Sentença e às
normas internacionais na matéria’”.
“A
extinção da CEMDP”, alertou o MPF, “é ainda prematura, considerando a
existência de casos pendentes, que demandam providências administrativas, como
o reconhecimento de vítimas, busca de corpos/restos mortais e registros de
óbito, os quais ainda não foram objeto de requerimentos individuais, tais como
os relacionados a desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, na Vala Perus e no Cemitério
Ricardo Albuquerque”.
No
governo Lula, a comissão deverá ficar na pasta de Silvio Almeida, junto com a
Comissão de Anistia. Mas a demora para o preenchimento dos cargos e para o
retorno das atividades da Comissão tem gerado dúvidas entre os familiares. Na
página oficial do “quem é quem” do ministério, atualizada no último dia 22 de
março, a única referência à CEMDP é um cargo, vago, de coordenação-geral de
Memória e Verdade e de apoio à CEMDP. Essa indefinição contrasta com a situação
da Comissão de Anistia, cujos novos membros foram anunciados ainda no dia 17 de
janeiro.
Os
familiares lembram que há muitos casos pendentes, por exemplo as inúmeras obras
e ações da ditadura que vitimaram povos indígenas apontados pela CNV – o
trabalho fala em mais de 8.350 mortos – e de camponeses. São citados ainda
diversos casos no contexto urbano, como o assassinato, após sequestro, do
diplomata José Jobim (1909-1979), já reconhecidos pela CNV como uma ação
praticada por agentes do Estado.
Na
quarta-feira (29), as famílias deverão se reunir novamente com o ministério
para falar sobre a lei e a Comissão de Anistia.
• Ministério diz que busca de corpos é
atribuição do Estado brasileiro
Em
resposta às perguntas da Agência Pública, o MDHC (Ministério de Direitos Humanos
e Cidadania) afirmou que a reinstalação da CEMDP é “máxima prioridade” e que o
assunto está na Presidência da República. Sobre a retomada de buscas por corpos
dos desaparecidos políticos, o ministério afirmou que “as buscas para a
localização e identificação de pessoas desaparecidas é uma atribuição do Estado
brasileiro, já que o Brasil foi sentenciado em alguns casos, como o referente à
Corte Interamericana de Direitos Humanos e à 1ª Vara Federal de Brasília, ambos
relativos à Guerrilha do Araguaia”.
“Além
disso, com a restituição da CEMDP, revalida-se também sua função de ‘envidar
esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de
existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados’”,
respondeu a pasta.
Sobre
a busca de corpos de camponeses e indígenas vítimas da ditadura, o ministério
disse que “o caso tem recebido notória atenção deste Ministério em reuniões e
planejamentos, mas ainda não há uma definição sobre a agenda”.
A
respeito do pedido de revisão do prazo e outras mudanças da lei da CEMDP, o
MDHC disse que “o tema ainda não foi debatido”. Sobre a proposta da Comissão
Camponesa da Verdade de criar uma “uma diretoria ou equivalente” destinada “ao
apoio à memória camponesa, indígena e quilombola”, o ministério respondeu que o
tema “ainda não foi debatido a fundo, mas foi sinalizado, durante reunião com o
Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), sobre o caso Gabriel
Salles Pimenta que há interesse por parte deste Ministério em instituir um instrumento
de levantamento e apuração de fatos relacionados a violações de direitos
humanos no campo”.
A
Pública solicitou acesso, para cobertura jornalística, ao encontro do ministro
com os familiares, mas o pedido foi vetado. De acordo com a pasta, “trata-se de
um encontro que foi requisitado pelos próprios familiares de mortos e
desaparecidos na ditadura. Como forma de deixá-los mais à vontade para que eles
apresentem suas reivindicações e necessidades, a audiência não será aberta ao
público. Após a reunião, contudo, divulgaremos matéria para divulgar os
principais pontos do encontro”.
Fonte:
Por Rubens Valente, da Agencia Pública
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