Saiba como a Axé
Music e o Olodum deram nova cor para a capital baiana
As
cores de uma cidade traduzem o que há de mais subjetivo nela. A riqueza, a
pobreza, a época, as modernidades, um modal de transporte, mudanças na
arquitetura: tudo retira cor, tudo imprime cor. Em Salvador, foram necessárias
sete décadas para diversificar uma paisagem cromática que só conhecia os tons
pastéis. Tinta era luxo.
Até
meados do século 19, Salvador tinha 14 mil habitantes (hoje, são 4 milhões) e
era pintada à base de cal, no máximo por tonalidades mais claras nas fachadas,
portas e janelas - nuances pálidas. As fotografias da época estão em preto e
branco, mas fotógrafos, arquitetos, historiadores e a memória oral confirmam
que a diversidade de cores vibrantes é mais jovem que 8% da população
soteropolitana – porcentual de pessoas com mais de 70 anos*.
É
o caso do aposentado Nival Marinho, 94 anos, que lembra em minúcias a juventude
e as cores que o cercavam. Ao sair de casa, na Liberdade, para trabalhar na Rua
Chile, ele via diferenças sutis na coloração.
O
endereço mais chique da época, assim como a vizinhança do centro, era um
emaranhado bege de prédios - hoje, a restrição ao bege é o amarelo do
recém-restaurado Palacete Tira Chapéu. Até os homens vestiam ternos brancos.
Na
Liberdade, onde Nival morava com os pais e oito irmãos, as fachadas eram mais
coloridas, mas também "contidas".
"O
povo daquela época era muito contido, não se expressava em tudo. Me lembro que
minha casa era amarela, mas era mais apagada, e dentro, tudo branco. Todas as
casas eram brancas por dentro", diz o aposentado.
Enquanto
crescia e migrava pelo mapa, Nival testemunhou as transformações coloridas
locais. Quando chegou, há 40 anos, para morar com a família no bairro do
Canela, a cidade já estava maior em tamanho, população e, consequentemente, variação
cromática.
A
sobriedade das ruas, vista pelo aposentado, respondia a restrições da
indústria. Do período colonial aos anos 20, as tintas chegavam a Salvador por
navio, importado da Europa.
Só
em 1960, o acréscimo de materiais como o látex na composição torna os pigmentos
mais vibrantes. A partir de então, e não só como resposta às novas tintas,
Salvador vivenciou uma revolução de cores. A cidade crescia e cada região
imprimiria sua cor.
• As primeiras mudanças coloridas
Nos
anos 60, a população de Salvador vivenciou o primeiro salto. Os adensamentos
urbanos em encostas surgiram entre as décadas de 40 e 50 e só avançaram. Hoje,
40% da população da metrópole vive em favelas, aponta o Map Biomas, que
acompanha o uso do solo nacionalmente.
A
primeira favela da cidade, chamada Corta Braço, resultou no bairro de Pero Vaz.
A aposentada Sandra Reis, 65, lembra de um endereço marrom (do chão de terra e
dos tijolos das casas), mas, de certa forma, mais colorido.
“Tínhamos
tintas de saco. Me lembro de um amarelo, verde, mas ainda era mais apagado, cor
de burro quando foge [risos]. Apesar disso, era um bairro com cores”.
Colorir
as ruas era uma festa para Sandra e os irmãos - como para vizinhos do bairro e
de outras periferias. "As casas tinham o costume de pintar no natal e até
no são joão. Era um evento, uma animação muito grande. Pintar a casa era uma
festa".
As
favelas pintaram Salvador de marrom, mas também se firmam na paisagem urbana
como uma reserva de colorido.
“A
despeito da pobreza, tínhamos um dinamismo cultural, a exuberância do mar, do
Parque de São Bartolomeu”, conta José Ferreira, 49, morador do Subúrbio desde a
infância.
Cada
morador, a partir da sua perspectiva, viu a cidade ser colorida de diferentes
formas. “A perda do trem, por exemplo, foi terrível, perdemos em exuberância de
cor, e não sabemos como será o futuro”, conta José.
O
marrom de Salvador é seguido pelo cinza das avenidas que surgiram, substituindo
áreas verdes. Nos anos 60, são construídas algumas das maiores avenidas locais,
como a Centenário. As avenidas Suburbana (Afrânio Peixoto), Bonocô (Mário Leal
Ferreira), Paralela (Luís Viana Filho) viriam na década seguinte.
A
diversidade cromática, de fato, se expressava mais nas pessoas e na natureza: o
azul do mar, o verde dos biquínis, o amarelo dos carros. Criança, a
psicanalista e escritora Urânia Tourinho Peres, 79, lembra de uma Salvador que
a encantava pela praia e as amendoeiras na balaustrada do Porto da Barra. Hoje,
sente falta de mais verde das árvores na cidade.
“As
árvores foram desaparecendo. Me encantava esse colorido, o colorido do
anoitecer que transmite uma tranquilidade”, diz a psicanalista e escritora.
A
adolescência e início da vida adulta de Urânia coincidem com a verticalização
de Salvador. O bege dos casarões, aos poucos, perde espaço para as novas
tonalidades gravadas na paisagem pelos prédios e conjuntos habitacionais - como
Cajazeiras. Os primeiros edifícios ainda eram pintados em tons pastéis ou
brancos, mas já havia mais espaço para o laranja, verde, azul, como em faixas
laterais.
Como
os fenômenos sempre confluem, em 1972, foi realizada, pela Rede Globo, a
primeira transmissão televisiva coloridas.
“A
gente começa a ver a vida naquela telinha. Ela traz uma explosão de cores e o
mundo parece que virou outro. A lógica vira de mais cor”, metaforiza o
arquiteto André Lessinger, arquiteto urbanista, professor da Universidade
Federal da Bahia (Ufba) e artista visual e membro de um grupo que desenha
Salvador.
• A novidade, o retorno
Os
anos 70 antecedem duas mudanças urbanas que revolucionaram as cores locais: a
construção dos prédios do Cidadela e a revitalização no Pelourinho.
O
primeiro é herança da década de 80 e imprime na capital paletas mais fortes:
vermelho, verde, preto e branco. O arquiteto Fernando Peixoto, responsável pelo
conjunto arquitetônico, dialoga com um período efervescente, marcado pelo
surgimento do Axé Music, e a popularização do Olodum, bloco afro que reverencia
os pan-africanistas verde, vermelho e preta.
A
influência do arquiteto se expande pela capital. Por falar em Olodum, o
Pelourinho recebeu uma intervenção urbanística, nos anos 90, que transformou a
imagem de Salvador.
Entre
1992 e 1999, o governo de Antônio Carlos Magalhães iniciou a requalificação do
Pelourinho, dividida em duas fases.
“Ele
resolve pintar as casas com aquele amarelão gema, aquele verde forte, aquilo
não existia. Isso foi muito polêmico, mas virou um símbolo da cor da cidade”,
explica Nivaldo Andrade, professor de História da Arquitetura da Ufba.
Quando
retornou para a casa, depois das intervenções no endereço, a família Santana
encontrou a casa nº 6, da Rua do Seminário, vermelha. Até então, era rosinha.
Como as cores traduzem ideias, a matriarca, Rute, entrou em desespero.
"Minha
avó se queixava. O Pelourinho tinha o estigma de ser chamado de 'brega'
e ser uma casa vermelha, podia soar mal", lembra, com bom humor, a
escritora.
Mas
ela, adolescente, gostou da novidade. "Era legal ver a aparência nova. As
casas, aquele amarelo ovo", recorda.
A
casa onde Monica morou até 2006 continua vermelha. Pouco depois da reforma, a
mãe dela chegou a reintroduzir o rosa claro na fachada. "Mas em 2020 a
casa foi vendida e o novo proprietário pintou de vermelho de novo",
atualizou a ex-moradora.
• O retorno de um passado
Nessa
época, as cores da cidade também eram sortidas elos carros. Desde os anos 70,
eles estampavam tons mais psicodélicos, como o laranja. Mas essa intensidade,
segundo os proprietários, desvalorizava o veículo na hora da venda. Nos anos
2000, tem início a fase, que não acabou, do cinza, preto e branco.
A
mudança também refletia um apelo por "sofisticação". As cores,
afinal, refletem emoção e simbolismo, como escreve o arquiteto gaúcho Simão
Goldman.
O
passado puxado para o tom pastel ressurge na cidade. As ruas coloridas onde a
aposentada Sandra cresceu, no Pero Vaz, estão tomadas por azulejos amarronzados
nas fachadas. Ela acredita que a mudança é motivada pela durabilidade do
azulejo, mas também cita a elegância. As cores pastéis são, historicamente,
associadas à "elegância".
"A
obra de Niemeyer, por exemplo, não é minimalista, é extravagante do ponto de vista volumétrico, mas do ponto
de vista da cor é discreta. A estética minimalista acaba sendo entendida como
mais classuda, mais elegante", compara Nivaldo Andrade.
Nos
últimos 15 anos, os vidros esverdeados trouxeram um novo aspecto de cor às
ruas. A desculpa também é a suposta elegância.
No
entanto, a cidade para o futuro precisa mais do colorido que do bege, o que inclui gente, acredita Tânia Scofield,
presidente da Fundação Mário Leal Ferreira, responsável pelo planejamento
urbano de Salvador.
A
reforma da Orla marítima, iniciada em novembro de 2013, foi um dos pontos de
virada para a cor de Salvador, porque teria levado mais gente para as ruas.
"O colorido também está nas pessoas, no andar, no encontro. O colorido é
uma cidade em movimento".
Depois
das grandes avenidas de vale, a inauguração do metrô, em 2014, e do BRT, em
novembro do ano passado, retomam a discussão sobre o lugar do verde em uma
metrópole que precisa circular. O primeiro modal substituiu um jardim montado
com espécies nativas pelo nome do paisagismo do Brasil: Burle Marx. O segundo
surgiu no lugar de árvores centenárias da Avenida Juracy Magalhães.
"Os
grandes edifícios e projetos mais recentes tem apostado em jardins verticais,
como o prédio da secretaria de meio ambiente de salvador, no Comércio. Esse
tipo de intervenção vai reintroduzindo o verde na cidade", pontua o
arquiteto André Lessinger.
As cores do futuro começam a ser gravadas nas
paisagens locais. Da sua janela, é possível ver.
Baía de Todos os Tons: as cores originais
da Salvador antiga
“Que
poderá haver de mais lindo que essas longas fileiras coleantes de casas
alvacentas, uma ao alto, outra à beira d’água – sempre separadas por uma larga
faixa de vegetação verde-escuro, no meio da qual se distingue, de vez em
quando, uma casinha branca.” Essa foi a vista do reverendo americano Kidder ao
chegar a Salvador, pelo porto, entre 1837 e 1840. São descrições assim, de
viajantes e cronistas da época, que dão uma pista sobre a cor (ou melhor, as
cores) da nossa capital até meados do século XIX.
De
acordo com as arquitetas e pesquisadoras Anna Beatriz Ayroza Galvão e Gina
Veiga Pinheiro Marocci, de cujos trabalhos os relatos são transcritos, o termo
‘alvacenta’ não significa, necessariamente, que seja branco. Caiadas também não
– a cal feita a partir da queima das cascas de ostras encontradas na Ilha de
Itaparica, especialmente, era a base da pintura e, a depender das tintas
naturais misturadas a ela, não dava o branco ao final.
O
imperador do México Maximiliano de Habsburgo foi além da descrição do
frontispício e deu uma ideia mais precisa sobre o colorido das fachadas: “As
inúmeras casas possuem cores alegres, claras, fazendo com que tudo ria e
brilhe”.
É
dele também o relato sobre o extinto teatro São João (1812), na Praça Castro
Alves, consumido pelo fogo em 1923: “Nesse terraço, ergue-se o enorme edifício
do teatro, com suas paredes amarelo-laranja e suas inúmeras janelas”. Sobre a
igreja Nossa Senhora da Saúde, ele escreve: “Naquela ocasião, as paredes
estavam apenas caiadas; em 1844, já se pintavam de azul”.
O
que predominou nas fachadas de casas, sobrados e palácios da antiga Salvador, a
partir do observado nesses relatos e em fotografias, mesmo em preto e branco,
foram os tons pastéis, as cores claras, o branco aí incluído. Essas cores
primárias, muitas vezes confundidas com o branco, eram claras também pela ação
do tempo e das intempéries que descascavam, manchavam e descoloriam a tintura.
Então, havia o azul, o amarelo, o laranja, o verde, o vermelho, o rosa claro, o
branco...
Nos
anos 50 do século XIX, o estudo das fotos do Pelourinho mostra a presença da
policromia, edifícios geminados e sem recuo frontal e fachadas que se
diferenciavam umas das outras pelas cores. Cada casa, uma cor. Isso permaneceu
com a reforma do casario dos anos 1980 e 1990, mas o colorido tornou-se
exuberante, se valendo da tecnologia e do desenvolvimento da indústria química
no século XX.
“Não
tinha roxos, lilases, rosas de todas as intensidades, fúcsia, vermelhões vivos,
amarelo-ouro... Com a reforma, o padrão cromático foi alterado”, explica o
professor Luiz Alberto Freire, doutor em História da Arte e que ensina a
disciplina na Escola de Belas Artes da Ufba.
Já
o Elevador Lacerda (quem sabe essa?), um monumento do início dos anos 1870, era
branco. Em 1930, ele passa por uma modernização, de duas para quatro cabines e
ganha a torre na frente. Sai do estilo antigo para o art déco (aquele que
combina o desenho moderno com elementos tradicionais). Com a pós-modernização,
no decorrer do século XX, ele se torna amarelo.
E
o que dizer dos outros bairros? Gina e Anna Beatriz destacam: “Nos registros
encontrados dos bairros mais afastados do centro de Salvador, pôde ser
observado que as casas dos núcleos mais pobres eram, num primeiro momento,
pintadas de branco, mas à medida que tais núcleos se adensavam, inclusive com
casas de veraneio, aumentava o número das fachadas principais pintadas com
outras cores, coincidindo com a introdução de elementos decorativos nas mesmas.
É o caso dos bairros do Rio Vermelho e da Barra, onde se comparou fotos de 1870
com fotos de 1885”.
• Destaque
Entre
as igrejas e alguns fortes da capital baiana, há uma coisa em comum: eram
brancos. “Atrás do farol [Santo Antônio da Barra], na ponta mais extrema,
rodeada de palmeiras (...) uma das igrejas mais antigas da Bahia, com duas
torres graciosas, paredes de um branco reluzente”, relatou Maximiliano de
Habsburgo.
E
no caso das fortificações, a alvura não foi à toa, como explica o capitão de fragata
Ricardo Magalhães Valois, encarregado do Serviço de Sinalização Náutica do
Leste, na Marinha: era para contrastar com o fundo verde, da vegetação, e das
outras construções que começavam a ser erguidas, além de facilitar a
visualização dos navegadores.
Só
em 1969 o Farol da Barra ganhou listras pretas e um pouco antes disso, de 1939
a 1950, o de Itapuã, que originalmente era cor de terra, vermelho escuro, se
tornou branco com listras laranjas, ganhando as listras vermelhas de hoje em
1950.
Se
as fachadas eram brancas, o mesmo não se pode dizer das portas das casas de
Deus. O historiador Rafael Dantas, estudioso da iconografia da cidade nos
séculos XVIII e XIX, afirma que, em algum momento, se chegou a pintar as portas
de acordo com o santo de devoção. Depois, elas foram padronizadas com o chamado
verde-patrimônio, com algumas exceções, como a Igreja do Passo, que tem sua
porta na cor azul, fazendo referência, provavelmente, ao Santíssimo Sacramento.
Só
mais um detalhe. Ao realizar suas prospecções, que são as pesquisas para
descobrir as cores e texturas originais, o restaurador José Dirson Argolo já se
deparou com mais de dez camadas de tintas. A coisa vai mudando de acordo com o
gosto da época. Nas paredes do Palácio Rio Branco, na Praça Municipal, tem um
cantinho onde estão expostas as seis camadas de tinta encontradas por Argolo e
sua equipe. Porque funciona(va) assim: cai de moda, e alguém manda pintar de
novo de outra cor.
Fonte:
Correio
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