quinta-feira, 30 de março de 2023

Saiba como a Axé Music e o Olodum deram nova cor para a capital baiana

As cores de uma cidade traduzem o que há de mais subjetivo nela. A riqueza, a pobreza, a época, as modernidades, um modal de transporte, mudanças na arquitetura: tudo retira cor, tudo imprime cor. Em Salvador, foram necessárias sete décadas para diversificar uma paisagem cromática que só conhecia os tons pastéis. Tinta era luxo.

Até meados do século 19, Salvador tinha 14 mil habitantes (hoje, são 4 milhões) e era pintada à base de cal, no máximo por tonalidades mais claras nas fachadas, portas e janelas - nuances pálidas. As fotografias da época estão em preto e branco, mas fotógrafos, arquitetos, historiadores e a memória oral confirmam que a diversidade de cores vibrantes é mais jovem que 8% da população soteropolitana – porcentual de pessoas com mais de 70 anos*.

É o caso do aposentado Nival Marinho, 94 anos, que lembra em minúcias a juventude e as cores que o cercavam. Ao sair de casa, na Liberdade, para trabalhar na Rua Chile, ele via diferenças sutis na coloração.

O endereço mais chique da época, assim como a vizinhança do centro, era um emaranhado bege de prédios - hoje, a restrição ao bege é o amarelo do recém-restaurado Palacete Tira Chapéu. Até os homens vestiam ternos brancos.

Na Liberdade, onde Nival morava com os pais e oito irmãos, as fachadas eram mais coloridas, mas também "contidas".

"O povo daquela época era muito contido, não se expressava em tudo. Me lembro que minha casa era amarela, mas era mais apagada, e dentro, tudo branco. Todas as casas eram brancas por dentro", diz o aposentado.

Enquanto crescia e migrava pelo mapa, Nival testemunhou as transformações coloridas locais. Quando chegou, há 40 anos, para morar com a família no bairro do Canela, a cidade já estava maior em tamanho, população e, consequentemente, variação cromática.

A sobriedade das ruas, vista pelo aposentado, respondia a restrições da indústria. Do período colonial aos anos 20, as tintas chegavam a Salvador por navio, importado da Europa.

Só em 1960, o acréscimo de materiais como o látex na composição torna os pigmentos mais vibrantes. A partir de então, e não só como resposta às novas tintas, Salvador vivenciou uma revolução de cores. A cidade crescia e cada região imprimiria sua cor.

•        As primeiras mudanças coloridas

Nos anos 60, a população de Salvador vivenciou o primeiro salto. Os adensamentos urbanos em encostas surgiram entre as décadas de 40 e 50 e só avançaram. Hoje, 40% da população da metrópole vive em favelas, aponta o Map Biomas, que acompanha o uso do solo nacionalmente. 

A primeira favela da cidade, chamada Corta Braço, resultou no bairro de Pero Vaz. A aposentada Sandra Reis, 65, lembra de um endereço marrom (do chão de terra e dos tijolos das casas), mas, de certa forma, mais colorido.

“Tínhamos tintas de saco. Me lembro de um amarelo, verde, mas ainda era mais apagado, cor de burro quando foge [risos]. Apesar disso, era um bairro com cores”.

Colorir as ruas era uma festa para Sandra e os irmãos - como para vizinhos do bairro e de outras periferias. "As casas tinham o costume de pintar no natal e até no são joão. Era um evento, uma animação muito grande. Pintar a casa era uma festa".

As favelas pintaram Salvador de marrom, mas também se firmam na paisagem urbana como uma reserva de colorido.

“A despeito da pobreza, tínhamos um dinamismo cultural, a exuberância do mar, do Parque de São Bartolomeu”, conta José Ferreira, 49, morador do Subúrbio desde a infância.

Cada morador, a partir da sua perspectiva, viu a cidade ser colorida de diferentes formas. “A perda do trem, por exemplo, foi terrível, perdemos em exuberância de cor, e não sabemos como será o futuro”, conta José.

O marrom de Salvador é seguido pelo cinza das avenidas que surgiram, substituindo áreas verdes. Nos anos 60, são construídas algumas das maiores avenidas locais, como a Centenário. As avenidas Suburbana (Afrânio Peixoto), Bonocô (Mário Leal Ferreira), Paralela (Luís Viana Filho) viriam na década seguinte.

A diversidade cromática, de fato, se expressava mais nas pessoas e na natureza: o azul do mar, o verde dos biquínis, o amarelo dos carros. Criança, a psicanalista e escritora Urânia Tourinho Peres, 79, lembra de uma Salvador que a encantava pela praia e as amendoeiras na balaustrada do Porto da Barra. Hoje, sente falta de mais verde das árvores na cidade.

“As árvores foram desaparecendo. Me encantava esse colorido, o colorido do anoitecer que transmite uma tranquilidade”, diz a psicanalista e escritora.

A adolescência e início da vida adulta de Urânia coincidem com a verticalização de Salvador. O bege dos casarões, aos poucos, perde espaço para as novas tonalidades gravadas na paisagem pelos prédios e conjuntos habitacionais - como Cajazeiras. Os primeiros edifícios ainda eram pintados em tons pastéis ou brancos, mas já havia mais espaço para o laranja, verde, azul, como em faixas laterais.

Como os fenômenos sempre confluem, em 1972, foi realizada, pela Rede Globo, a primeira transmissão televisiva coloridas.

“A gente começa a ver a vida naquela telinha. Ela traz uma explosão de cores e o mundo parece que virou outro. A lógica vira de mais cor”, metaforiza o arquiteto André Lessinger, arquiteto urbanista, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e artista visual e membro de um grupo que desenha Salvador.

•        A novidade, o retorno

Os anos 70 antecedem duas mudanças urbanas que revolucionaram as cores locais: a construção dos prédios do Cidadela e a revitalização no Pelourinho.

O primeiro é herança da década de 80 e imprime na capital paletas mais fortes: vermelho, verde, preto e branco. O arquiteto Fernando Peixoto, responsável pelo conjunto arquitetônico, dialoga com um período efervescente, marcado pelo surgimento do Axé Music, e a popularização do Olodum, bloco afro que reverencia os pan-africanistas verde, vermelho e preta.

A influência do arquiteto se expande pela capital. Por falar em Olodum, o Pelourinho recebeu uma intervenção urbanística, nos anos 90, que transformou a imagem de Salvador.

Entre 1992 e 1999, o governo de Antônio Carlos Magalhães iniciou a requalificação do Pelourinho, dividida em duas fases.

“Ele resolve pintar as casas com aquele amarelão gema, aquele verde forte, aquilo não existia. Isso foi muito polêmico, mas virou um símbolo da cor da cidade”, explica Nivaldo Andrade, professor de História da Arquitetura da Ufba.

Quando retornou para a casa, depois das intervenções no endereço, a família Santana encontrou a casa nº 6, da Rua do Seminário, vermelha. Até então, era rosinha. Como as cores traduzem ideias, a matriarca, Rute, entrou em desespero.

"Minha avó se queixava. O Pelourinho tinha o estigma de ser chamado de  'brega'  e ser uma casa vermelha, podia soar mal", lembra, com bom humor, a escritora.

Mas ela, adolescente, gostou da novidade. "Era legal ver a aparência nova. As casas, aquele amarelo ovo", recorda.

A casa onde Monica morou até 2006 continua vermelha. Pouco depois da reforma, a mãe dela chegou a reintroduzir o rosa claro na fachada. "Mas em 2020 a casa foi vendida e o novo proprietário pintou de vermelho de novo", atualizou a ex-moradora.

•        O retorno de um passado

Nessa época, as cores da cidade também eram sortidas elos carros. Desde os anos 70, eles estampavam tons mais psicodélicos, como o laranja. Mas essa intensidade, segundo os proprietários, desvalorizava o veículo na hora da venda. Nos anos 2000, tem início a fase, que não acabou, do cinza, preto e branco.

A mudança também refletia um apelo por "sofisticação". As cores, afinal, refletem emoção e simbolismo, como escreve o arquiteto gaúcho Simão Goldman.

O passado puxado para o tom pastel ressurge na cidade. As ruas coloridas onde a aposentada Sandra cresceu, no Pero Vaz, estão tomadas por azulejos amarronzados nas fachadas. Ela acredita que a mudança é motivada pela durabilidade do azulejo, mas também cita a elegância. As cores pastéis são, historicamente, associadas à "elegância".

"A obra de Niemeyer, por exemplo, não é minimalista, é extravagante  do ponto de vista volumétrico, mas do ponto de vista da cor é discreta. A estética minimalista acaba sendo entendida como mais classuda, mais elegante", compara Nivaldo Andrade.

Nos últimos 15 anos, os vidros esverdeados trouxeram um novo aspecto de cor às ruas. A desculpa também é a suposta elegância.

No entanto, a cidade para o futuro precisa mais do colorido que do bege,  o que inclui gente, acredita Tânia Scofield, presidente da Fundação Mário Leal Ferreira, responsável pelo planejamento urbano de Salvador.

A reforma da Orla marítima, iniciada em novembro de 2013, foi um dos pontos de virada para a cor de Salvador, porque teria levado mais gente para as ruas. "O colorido também está nas pessoas, no andar, no encontro. O colorido é uma cidade em movimento".  

Depois das grandes avenidas de vale, a inauguração do metrô, em 2014, e do BRT, em novembro do ano passado, retomam a discussão sobre o lugar do verde em uma metrópole que precisa circular. O primeiro modal substituiu um jardim montado com espécies nativas pelo nome do paisagismo do Brasil: Burle Marx. O segundo surgiu no lugar de árvores centenárias da Avenida Juracy Magalhães.

"Os grandes edifícios e projetos mais recentes tem apostado em jardins verticais, como o prédio da secretaria de meio ambiente de salvador, no Comércio. Esse tipo de intervenção vai reintroduzindo o verde na cidade", pontua o arquiteto André Lessinger.

 As cores do futuro começam a ser gravadas nas paisagens locais. Da sua janela, é possível ver.

 

       Baía de Todos os Tons: as cores originais da Salvador antiga

 

“Que poderá haver de mais lindo que essas longas fileiras coleantes de casas alvacentas, uma ao alto, outra à beira d’água – sempre separadas por uma larga faixa de vegetação verde-escuro, no meio da qual se distingue, de vez em quando, uma casinha branca.” Essa foi a vista do reverendo americano Kidder ao chegar a Salvador, pelo porto, entre 1837 e 1840. São descrições assim, de viajantes e cronistas da época, que dão uma pista sobre a cor (ou melhor, as cores) da nossa capital até meados do século XIX.

De acordo com as arquitetas e pesquisadoras Anna Beatriz Ayroza Galvão e Gina Veiga Pinheiro Marocci, de cujos trabalhos os relatos são transcritos, o termo ‘alvacenta’ não significa, necessariamente, que seja branco. Caiadas também não – a cal feita a partir da queima das cascas de ostras encontradas na Ilha de Itaparica, especialmente, era a base da pintura e, a depender das tintas naturais misturadas a ela, não dava o branco ao final.

O imperador do México Maximiliano de Habsburgo foi além da descrição do frontispício e deu uma ideia mais precisa sobre o colorido das fachadas: “As inúmeras casas possuem cores alegres, claras, fazendo com que tudo ria e brilhe”.

É dele também o relato sobre o extinto teatro São João (1812), na Praça Castro Alves, consumido pelo fogo em 1923: “Nesse terraço, ergue-se o enorme edifício do teatro, com suas paredes amarelo-laranja e suas inúmeras janelas”. Sobre a igreja Nossa Senhora da Saúde, ele escreve: “Naquela ocasião, as paredes estavam apenas caiadas; em 1844, já se pintavam de azul”.

O que predominou nas fachadas de casas, sobrados e palácios da antiga Salvador, a partir do observado nesses relatos e em fotografias, mesmo em preto e branco, foram os tons pastéis, as cores claras, o branco aí incluído. Essas cores primárias, muitas vezes confundidas com o branco, eram claras também pela ação do tempo e das intempéries que descascavam, manchavam e descoloriam a tintura. Então, havia o azul, o amarelo, o laranja, o verde, o vermelho, o rosa claro, o branco...

Nos anos 50 do século XIX, o estudo das fotos do Pelourinho mostra a presença da policromia, edifícios geminados e sem recuo frontal e fachadas que se diferenciavam umas das outras pelas cores. Cada casa, uma cor. Isso permaneceu com a reforma do casario dos anos 1980 e 1990, mas o colorido tornou-se exuberante, se valendo da tecnologia e do desenvolvimento da indústria química no século XX.

“Não tinha roxos, lilases, rosas de todas as intensidades, fúcsia, vermelhões vivos, amarelo-ouro... Com a reforma, o padrão cromático foi alterado”, explica o professor Luiz Alberto Freire, doutor em História da Arte e que ensina a disciplina na Escola de Belas Artes da Ufba.

Já o Elevador Lacerda (quem sabe essa?), um monumento do início dos anos 1870, era branco. Em 1930, ele passa por uma modernização, de duas para quatro cabines e ganha a torre na frente. Sai do estilo antigo para o art déco (aquele que combina o desenho moderno com elementos tradicionais). Com a pós-modernização, no decorrer do século XX, ele se torna amarelo.

E o que dizer dos outros bairros? Gina e Anna Beatriz destacam: “Nos registros encontrados dos bairros mais afastados do centro de Salvador, pôde ser observado que as casas dos núcleos mais pobres eram, num primeiro momento, pintadas de branco, mas à medida que tais núcleos se adensavam, inclusive com casas de veraneio, aumentava o número das fachadas principais pintadas com outras cores, coincidindo com a introdução de elementos decorativos nas mesmas. É o caso dos bairros do Rio Vermelho e da Barra, onde se comparou fotos de 1870 com fotos de 1885”.

•        Destaque

Entre as igrejas e alguns fortes da capital baiana, há uma coisa em comum: eram brancos. “Atrás do farol [Santo Antônio da Barra], na ponta mais extrema, rodeada de palmeiras (...) uma das igrejas mais antigas da Bahia, com duas torres graciosas, paredes de um branco reluzente”, relatou Maximiliano de Habsburgo.

E no caso das fortificações, a alvura não foi à toa, como explica o capitão de fragata Ricardo Magalhães Valois, encarregado do Serviço de Sinalização Náutica do Leste, na Marinha: era para contrastar com o fundo verde, da vegetação, e das outras construções que começavam a ser erguidas, além de facilitar a visualização dos navegadores.

Só em 1969 o Farol da Barra ganhou listras pretas e um pouco antes disso, de 1939 a 1950, o de Itapuã, que originalmente era cor de terra, vermelho escuro, se tornou branco com listras laranjas, ganhando as listras vermelhas de hoje em 1950.

Se as fachadas eram brancas, o mesmo não se pode dizer das portas das casas de Deus. O historiador Rafael Dantas, estudioso da iconografia da cidade nos séculos XVIII e XIX, afirma que, em algum momento, se chegou a pintar as portas de acordo com o santo de devoção. Depois, elas foram padronizadas com o chamado verde-patrimônio, com algumas exceções, como a Igreja do Passo, que tem sua porta na cor azul, fazendo referência, provavelmente, ao Santíssimo Sacramento.

Só mais um detalhe. Ao realizar suas prospecções, que são as pesquisas para descobrir as cores e texturas originais, o restaurador José Dirson Argolo já se deparou com mais de dez camadas de tintas. A coisa vai mudando de acordo com o gosto da época. Nas paredes do Palácio Rio Branco, na Praça Municipal, tem um cantinho onde estão expostas as seis camadas de tinta encontradas por Argolo e sua equipe. Porque funciona(va) assim: cai de moda, e alguém manda pintar de novo de outra cor.

 

Fonte: Correio

 

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