Cem dias –
imaginação ao poder
Para
abordar os cem dias do novo governo, há que situar os acontecimentos no tempo e
no espaço. Em Como as democracias morrem, Steven Levitsky & Daniel Ziblatt
listam quatro indicadores de comportamento autoritário em candidaturas que se
apresentam enquanto outsiders em eleições:
1. a rejeição ou relativização das regras
democráticas;
2. a negação da legitimidade dos
oposicionistas políticos;
3. a tolerância para com o encorajamento da
violência e;
4. a restrição às liberdades civis da
oposição, inclusive da mídia.
Características,
presentes nas campanhas de Donald Trump nos Estados Unidos (2016) e Jair
Bolsonaro no Brasil (2018), guardam semelhanças. Os cidadãos que votaram, num e
noutro, não levaram a sério o anúncio do espectro do Estado de exceção.
Regozijaram-se com as supostas bravatas. Os que não votaram, levaram ao pé da
letra as promessas despóticas de “prender, bater, matar”. Estavam certos. Nunca
se propagou tantas armas e tanto ódio. Não à toa, aumentou de forma vertiginosa
o número de feminicídios e de agressões aos grupos LGBTQIA+. As maiores nações
das Américas converteram-se em circos mambembes da meteórica ascensão
neofascista mundial.
A
derrota dos palhaços sociopatas para Joe Biden (2020) e Lula da Silva (2022)
evoca o episódio dos austríacos em apoio do postulante do Partido Verde, para
barrar a ascensão da extrema direita. A exemplo dos franceses que optaram pelo
arrivista Emmanuel Macron, inventor de um partido (Em Marcha!) para se lançar
na corrida para o Palais de l’Élysée. Temiam que a extremista de direita Marine
Le Pen galgasse o poder, e escondesse a chave. A direita moderada contemporânea
não reprisou as concessões que auxiliaram Benito Mussolini a virar
primeiro-ministro da Itália e Adolf Hitler chanceler da Alemanha. A experiência
desaconselha brincar com demônios. Em pleitos competitivos, de margens
estreitas, pequenos deslocamentos influem no resultado das urnas.
A
Europa teve juízo, desta vez. Entre nós, os políticos ditos liberais não foram
tão precavidos diante do perigo. Embarcaram na nau dos insensatos que destituiu
uma presidenta eleita, encarcerou o líder das intenções de voto na refrega
seguinte e empossou um mandatário vomitativo. Coube às centrais sindicais,
artistas e jornalistas o protagonismo no alerta à tragédia da reeleição de um
desqualificado na dimensão pública, moral e cognitiva. Dos políticos em
atividade, as adesões mais significativas ficaram a cargo de Marina Silva
(Rede) e Simone Tebet (MDB), cujo partido tem as digitais no golpismo de 2016 e
a incumbência pelos ataques torpes aos direitos trabalhistas e previdenciários.
Ciro Gomes (PDT) repetiu o erro cometido na disputa anterior, com uma idêntica
desinteligência emocional e soberba. Como na canção de Roberto Carlos, “sua
estupidez não lhe deixa ver”.
• A construção do autoritarismo
Executivo:
Para contornar a Suprema Corte, o governo de Viktor Orbán na Hungria aprovou
uma Constituição para ampliar o número total de membros do tribunal, com
apaniguados da agremiação governante. O ultradireitista Benjamin Netanyahu
pretende o mesmo em Israel, onde as massas têm ido às ruas de Tel Aviv para protestar
contra a redução das atribuições da Alta Corte. O genocida da Terra brasilis
não disfarçava o desejo de intervir no Judiciário para alterar a fotografia do
Superior Tribunal Federal (STF), blindar a impunidade da família e desmanchar
no ar o Estado de direito.
Parlamento:
O presidente Fernando Lugo do Paraguai, ex-padre progressista, sufragado nas
cabines de votação, pôs fim a um protetorado de 61 anos do Partido Colorado.
Era um estranho com poucos amigos no Congresso. Padeceu o lawfare para desgastar
a sua reputação pública nas periferias. Ao perder popularidade, sofreu o
impeachment. As classes dirigentes vingaram-se. A ex-presidenta Dilma Rousseff
não foi a primeira vítima de traição parlamentar; foi a única vítima de
misoginia.
Controle
da mídia: A censura faz parte do modus operandi do Estado de exceção. Na
Turquia, o tirânico Recep Erdogan brandiu a lei com eficácia contra o
conglomerado Dogan Yayin, que detinha 50% do mercado midiático turco. Uma multa
de quase 2,5 bilhões de dólares arrasou a corporação e forçou a venda de
parcelas de seu patrimônio, Na Rússia, o autocrata Vladimir Putin calou uma
rede de televisão independente. O proprietário foi preso sob a acusação de uma
“apropriação financeira indébita”. Em troca da liberdade, cedeu a NTV para a
gigante de energia, a Gazprom, e se exilou.
Para
Patricia Campos Mello, em A Máquina do Ódio, as tiranias do século XXI “sabem
que a mainstream media é o maior obstáculo para a hegemonia dos populistas
fatofóbicos”. Devagar com o andor, porém. Se a pós-verdade incubada nas bolhas
digitais encontra um contraditório nas mídias convencionais, daí não se conclui
que os meios de comunicação ocidentais sejam imparciais ou que se abstenham de
apadrinhar as instituições. Ou que não procurem exercer a censura sobre
terceiros.
Função
do politicamente incorreto: A linguagem acompanha investidas para a
desmoralização dos adversários. O Tea Party recomenda em cartilhas adjetivos
para colar nos Democratas (“patéticos, doentes, mentirosos, desleais com a
bandeira e à família”). Olavo de Carvalho prefere palavrões: “a polidez é a
camisa de força que prende as pessoas e as obriga a respeitar o que não merece
respeito – vãotodostomarnocu”. O objetivo é privar de reconhecimento pretos,
mulheres, gays e intelectuais, e se dirigir aos que interagem por via de
ressentimentos, não pela via da articulação de argumentos racionais. “A fala
poderia nos agredir, se não fôssemos seres linguísticos?”, pergunta Judith
Butler.
• Desconstrução do autoritarismo
A
árdua conquista contra a campanha eletiva mais desonesta da história, com o
uso, o abuso da máquina funcional pelo candidato situacionista (calcula-se em
R$ 300 bilhões o prejuízo para o Erário), distribuição de dinheiro público para
os caminhoneiros, os taxistas, os motoristas de Apps, ingerência no ICMS das
unidades federativas, aportes privados do agronegócio, das megalojas de
varejos, das finanças e do garimpo de ouro, diamantes e cassiterita em
território Yanomami – com faturamento de bilhões sonegados anualmente – tudo
somado e multiplicado não conseguiu apagar o brilho da estrela no coração
rebelde dos eleitores. A resiliência do povo foi maior que a canalhice.
Mas
o tecido social brasileiro fora rasgado. A sociedade não se enxerga unificada.
Não há consenso sobre os rumos do país. O neoliberalismo pressiona pela
retirada de direitos. O rentismo se deleita nos dividendos da Petrobras. O
Brasil virou um entreposto comercial, proibido de almejar o projeto de nação
com responsabilidade pelo bem-estar geral. A concertação dos três poderes
republicanos em torno da democracia, no quebra-quebra de 8 de janeiro, foi um
marco auspicioso. Reavivou o “Estado-movimento” para defender e avançar na
socialização dos valores civilizatórios. Em uma conjuntura defensivista,
trata-se de subverter a lógica autoritária com a pedagogia libertadora para:
1. enaltecer as regras democráticas do jogo,
em negociações nem sempre ideais;
2. aceitar a legitimidade dos opositores
políticos, de acordo com a Constituição;
3. desestimular a intolerância e a violência,
com fortalecimento do debate público;
4. garantir as liberdades civis, na condição
de não afrontarem os direitos coletivos.
A
âncora dialógica para a harmonia social reside no estímulo ao desenvolvimento
endógeno e em uma recuperação do papel ativo e altivo nas relações exteriores.
As propostas governamentais precisam salientar a coerência com tais vetores
ideológicos de ação. Instituir o novo senso comum.
A
intensidade das atividades igualitaristas depende da evolução da luta de
classes, da capacidade de organização, mobilização e consciência dos movimentos
sociais e do desdobramento do cenário internacional na direção da
multipolaridade, ao revés dos interesses do imperialismo estadunidense. Paira
no mundo a ameaça da guerra nuclear, a crise climática e o risco às
democracias. Preteou o olho da gateada. Gramscianamente, o otimismo da vontade
empatou com o pessimismo da razão.
• Agora vale a verdade, a vida
Dois
problemas rondam o governo Lula. De um lado, o voluntarismo político estatal
por mudanças nas estruturas da dominação, sem o respaldo das ruas e das
injunções institucionais. Tendência que precipitaria frustrações, jorrando água
no moinho da tríade do atraso neoconservador, neoliberal e neofascista: os
“três tristes tigres” que foram enjaulados com a vitória da Frente da
Esperança, mas não subjugados ainda. De outro lado, a acomodação em postos
estratégicos de partidos que ontem estavam na base do governo derrotado é um
risco, numa conjuntura de areias movediças. Além de não assegurar a governabilidade,
a cultura fisiológica, clientelista e privatista das forças da direita gera um
campo gravitacional de atração e alienação sobre o conjunto do governo – um
fardo.
O
cerco se completa na Câmara dos Deputados e no Senado da República, nos quais
uma composição majoritária de personalidades tira vantagens, sem a intenção de
mudar o status quo. O arremate é feito pela pseudo independência do Banco
Central, no arranjo da política monetária a serviço das finanças. Para o prêmio
Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, “os juros altos da taxa Selic são uma pena
de morte para o país, não podem ser justificados pela realidade fiscal,
totalmente distorcida”.
O
contexto exige do presidente-estadista a perspicácia de um enxadrista para
evitar as ciladas e as chantagens, a par de lidar também com as inconformidades
das Forças Armadas metamorfoseadas em “mulas” para carregar drogas em aviões da
FAB e joias milionárias em mochilas, no quadriênio. Não obstante, neste início
de governo voltaram os programas de combate às abissais desigualdades, (Zé
Gotinha, Farmácia Popular, Mais Médicos, Minha Casa, Minha Vida; Bolsa Família,
etc) característicos dos mandatos precedentes. São programas de empatia social,
note-se. Com a identidade de classe reafirmada na sociedade brasileira (o
lulismo, na descrição de André Singer), o exercício da alteridade e a
solidariedade iluminam a estrada que leva ao futuro – com dignidade.
O
chamado “Desenrola” que buscará reintroduzir no mercado milhões de famílias
endividadas, fruto das políticas antissociais e antiindustrializantes do
governicho que já foi tarde, constitui-se num impulso para a frente. Uma
novidade para enfrentar a crise que fez o Brasil crescer tipo rabo de cavalo,
para baixo. A ampliação dos direitos políticos da população, através da
participação social, ajudará a desenhar o perfil progressista da nova
governança. Como no antigo ditado, o caminho é longo, mas a cada passo ficará
mais curto. Para tanto, é preciso ideias, criatividade.
O
desgoverno miliciano, corrupto, antipopular, pervertido, na última pesquisa
(Ipec) comparece nos 24% dos entrevistados que reputam “ruim ou péssimo” o
governo, ora em curso. A esse percentual reduziu-se o bolsonarismo raiz, no
transcorrer dos emblemáticos e alvissareiros cem primeiros dias. 41% consideram
o mandato reciclado do petista “bom ou ótimo”. O falso messias, em março de
2019, tinha um contingente favorável de 34%, para uma ligeira comparação. A
sociabilidade está sendo regenerada, com convicções e provas. No momento, o
desafio cobra-nos uma dialética de superação e emancipação. Tal qual no poema
de Thiago de Mello: “Fica decretado que agora vale a verdade, / que agora vale
a vida, / e que de mãos dadas, / trabalharemos todos pela vida verdadeira”.
Embora
importantes, fundantes, incontornáveis, não basta uma agenda de retomada das
iniciativas surgidas no alvorecer do século XXI. Fragilizada, a incipiente
democracia brasileira que luta para combinar as demandas políticas com as
demandas socioeconômicas necessita mais do que juras de amor eterno para se
consolidar. A herança do colonialismo (racismo) e do patriarcalismo (sexismo) é
pesada, forjou um capitalismo avesso às necessidades do povo e da própria
nação, baseado na superexploração da mão de obra e na relação predatória do
meio ambiente, com descaso pela juventude. Depois do temporal selvagem de
neoliberalismo, depois do rio de fake news, sandices, hipocrisias e destruição
que passaram em nossas portas, é chegada a hora urgente de desfraldar e
reatualizar a bandeira dos insurgentes do Maio de 1968. A saber, “a imaginação
ao poder”.
Fonte:
Por Luiz Marques, em Terapia Política
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