Como CLT e
agroecologia viraram propaganda do 'made in Brazil' na Europa
Movimentos
sociais no campo, democracia, legislação trabalhista. Esses foram os elementos
que atraíram, em 2003, os franceses François-Ghislain Morillion e Sébastien
Kopp a produzirem seus calçados da marca Vert no Brasil.
"A
gente estava procurando um lugar para fazer tênis que respeitasse o ser humano
e a natureza, e a gente encontrou todos esses ingredientes", diz
Morillion.
Naquele
ano, a dupla dava a volta ao mundo passando por quatro países diferentes, três
meses em cada um deles: China, África do Sul, Índia e Brasil. Foram parar em
Rondônia, onde se depararam com um plantio de palmito pupunha em sistema de
agrofloresta exportado para a França, onde era vendido por uma marca de
comércio justo.
"Foi
ali que a ficha caiu. Era 2003, e eles estavam já muito à frente naquela época.
Foi o único projeto que a gente realmente achou que tivesse um impacto social e
ambiental bom", relata.
Duas
décadas depois, a marca da dupla - batizada de Veja no exterior e vendida como
Vert no Brasil - produz 4 milhões de calçados por ano. São quatro fábricas
parceiras, duas no Rio Grande do Sul, duas no Ceará. A borracha vem da
Amazônia; o algodão, do Nordeste; o couro, do Sul.
• 'Fairly made in Brazil'
O
Brasil não costuma ser a primeira opção de marcas de calçados que querem
produzir para o mundo. Uma das razões é o custo da mão de obra, mais caro do
que em países como China e Vietnã, que se tornaram grandes fabricantes globais
do setor. Além dos salários mais altos, a legislação trabalhista, de forma
geral, confere um grau de proteção maior do que na Ásia - o que geralmente
também significa custos maiores.
Em
uma época em que consumidores olham cada vez mais para valores como
sustentabilidade, contudo, são características como essas que têm atraído
algumas marcas para o país e repaginado o valor do "made in Brazil".
O
caso da brasileira Undo For Tomorrow é exemplar nesse sentido. Depois de alguns
meses operando no Brasil, a empresa de calçados se lançou no mercado europeu em
junho de 2021 com um crowdfunding (financiamento coletivo) em que apresentava
um tênis feito com borracha da Amazônia, garrafas recicladas e balões de festa
descartados, entre outros materiais.
No
vídeo de apresentação, o narrador destaca: "Nuven is sustainable,
vegan-friendly and fairly made in Brazil." (Nuven é sustentável,
vegan-friendly e feito de forma justa no Brasil, em tradução literal)
Na
pré-venda, a marca conseguiu arrecadar 110 mil euros em um mês e meio. Hoje, as
vendas para o mercado europeu respondem por algo entre 60% e 65% da receita
total.
"Existe
um valor maior por trás disso - e acho que aqui na Europa isso é muito
reconhecido", diz Patrick Dohmann, que mora em Portugal e é fundador da
marca, referindo-se ao fato de produzir no Brasil.
Formado
em design, o carioca cresceu no mundo do calçado. Trabalhou no negócio do pai,
que foi dono da marca Andarella, com dezenas de lojas no país, e empreendeu no
setor antes de se voltar para a sustentabilidade.
• Jornada de 8 horas e acesso à Justiça
A
fábrica que produz para a marca está localizada no polo calçadista de Franca,
em São Paulo. É chefiada por uma mulher e, segundo Dohmann, tem muitos
empregados com longo tempo de casa, uma combinação que contribui para que o
ambiente seja "quase familiar".
O
Brasil é, para o empresário, um lugar onde a atmosfera do local de trabalho e
as condições físicas das unidades fabris têm um equilíbrio positivo de forma
geral. Após ter conhecido mais de 30 fábricas, ele diz que, embora a estrutura
"nem sempre seja a melhor", predomina "um ar muito amigável
entre as pessoas".
Não
foi essa a impressão que ele teve das fábricas do Vietnã. O país asiático tem
ganhado protagonismo no setor calçadista nos últimos anos, à medida em que o
custo da mão de obra aumenta na China, com a expansão da indústria de
tecnologia no país.
Depois
de ter visitado cerca de 15 fábricas vietnamitas, entre unidades de pequeno,
médio e grande porte, Dohmann saiu com a impressão de que muitas das grandes
fábricas têm boa estrutura, são "grandes e bem iluminadas", mas que o
balanço entre trabalho e qualidade de vida dos colaboradores talvez não seja o
melhor.
Chamaram-lhe
atenção a semana de trabalho de 6 dias, de segunda a sábado, e o fato de muitos
dos funcionários morarem em alojamentos montados pela própria empresa, já que
algumas das plantas de maior porte ficam afastadas dos centros urbanos.
"Algumas
pareciam verdadeiras cidades."
Morillion
chama atenção para um ponto parecido.
"Para
nós, o que era muito importante era a questão das condições de trabalho. No
Brasil, não existe essa coisa de dormir na fábrica. Parece bobo para um
brasileiro, mas, quando você vai olhar para as fábricas de tênis do outro lado
do planeta, as pessoas dormem em dormitórios nas fábricas", diz.
Nesse
sentido, ele cita como pontos positivos da legislação brasileira a jornada
estabelecida em 8 horas por dia, com pagamento de hora extra caso se trabalhe
mais que isso.
"A
gente comparou o Brasil com o que tinha visto na Ásia, e não é que o Brasil
tenha uma legislação incrível, mas tem uma legislação", pontua.
"E
tem uma democracia. A maioria dos tênis do mundo vem da China, do Vietnã, que
são dois países que não têm democracias - então um trabalhador não consegue acessar
a Justiça se ele quiser processar a empresa, por exemplo."
• Agricultura familiar e sustentável
A
produção das marcas Vert e Veja conta hoje com cerca de 4 mil funcionários,
sendo 500 de contratação direta da Vert/Veja. São 1.500 famílias envolvidas nas
associações e cooperativas que fornecem borracha e 1.200 nas que fornecem
algodão.
Em
relação aos fornecedores, Morillion diz ter se surpreendido com as iniciativas
de agroecologia com as quais se deparou no país, as quais ele associa
diretamente aos movimentos sociais no campo, que deixaram como legado
associações e cooperativas que há anos produzem com uma lógica da
sustentabilidade.
"A
gente estava muito pensando na ecologia [quando pesquisamos para começar o
negócio]. Quando a gente chega no Brasil, se dá conta de que a ecologia é um
movimento social. A agroecologia é uma luta pelos direitos dos povos
originários e das populações tradicionais do campo."
No
Acre, diz ele, parte das associações e cooperativas que fornecem borracha para
a marca são herdeiros dos "movimentos que nasceram com Chico Mendes".
"No
algodão, muitos são ligados aos movimentos de assentamento; muitos dos nossos
produtores são assentados", acrescenta.
• O preço da sustentabilidade
Tudo
isso custa mais caro do que produzir da forma como a indústria calçadista opera
normalmente. No caso da Veja/Vert, o modelo de negócio busca compensar o custo
maior com matéria-prima e mão de obra com gasto zero em publicidade, por
exemplo. Não há propaganda com celebridades usando as peças da marca ou posts
pagos em contas de influencers nas redes sociais.
"A
gente não queria criar uma marca de luxo, queríamos fazer um tênis acessível.
Não digo que ele é barato, mas pelo menos consegue ter um preço de aquisição
que é comparável aos outros [marcas multinacionais]", diz Morillion.
Dohmann,
da Undo For Tomorrow, ressalta que o custo mais alto de se produzir no Brasil
pode ser um problema com o qual terá que lidar em algum momento de expansão da
marca, que deve estrear no mercado americano nos próximos meses.
"Um
enorme percentual dos bens de consumo vendidos na Europa e nos Estados Unidos
são produzidos na Ásia. Então, se eu quero concorrer com essas empresas, talvez
chegue um momento em que vai ficar complicado, sabe?"
• Nicho, tendência ou realidade?
A
questão do custo também é algo que afeta a decisão dos consumidores, diz
Camille Le Gal, fundadora da Fairly Made, empresa que oferece soluções para
empresas do mundo da moda que querem rastrear e medir o impacto de seus
produtos.
"Sou
uma pessoa muito otimista, realmente acho que a indústria da moda está mudando
para melhor. Mas acredito que a sustentabilidade ainda é um nicho, no sentido
de que é pequena a porcentagem de pessoas que escolhe comprar produtos que
tenham rastreabilidade e sejam responsáveis", avalia.
Também
contribui para esse cenário, ela acrescenta, o fato de que não há uma definição
propriamente dita de sustentabilidade a nível internacional. Se não há um
padrão, é difícil saber o que exatamente cobrar das empresas - reciclabilidade?
durabilidade? uso de matérias-primas cuja extração não contribua para a
destruição de ecossistemas naturais?
Le
Gal coloca ainda um terceiro fator: a formulação de novas leis que balizem o
comportamento do mercado e das empresas caminha devagar.
Nesse
sentido, a engenheira ambiental Ligia Zottin, que é gerente de impacto e
compliance da Veja/Vert, acha que essa frente avança ainda mais lentamente no
Brasil.
"O
que vejo é que essa pauta de ESG (sigla em inglês para "environment",
"social" e "governance" - meio-ambiente, social e
governança, em tradução literal) no Brasil é um pouco atrasada", diz a
brasileira, que mora na Europa desde 2016.
"A
gente está vendo muitas legislações na Europa e Estados Unidos surgindo, no
âmbito do due diligence [diligência prévia, em tradução literal, que se refere
à investigação dos riscos e a análise da cadeia de fornecedores, por exemplo],
de greenwashing [o marketing enganoso de práticas de sustentabilidade que na
realidade não existem nas empresas], de trabalho escravo... E observo em
algumas discussões que a gente tem com fornecedores que o assunto ainda é muito
novo."
Mesmo
na ausência de legislações mais em linha com a economia sustentável,
entretanto, as empresas vêm sentindo cada vez mais pressão por mudanças, pontua
Rafael Benke, CEO da Proactiva, que presta consultoria na área de ESG.
De
um lado, pelos próprios clientes - ainda que o consumo da sustentabilidade
ainda não seja massificado -; de outro, pelos investidores.
"Alguns
clientes nossos no ano passado tiveram financiamento suspenso porque certos
quesitos ESG exigidos pelo financiador não estavam preenchidos. Isso é
revolucionário", diz o executivo, que já foi diretor da Vale e líder da
iniciativa de recursos naturais do Fórum Econômico Mundial.
Para
ele, as empresas com boa visão estratégica vão além das exigências da
legislação local e se guiam pelas boas práticas internacionais.
"Se
você relaxar agora, circunstancialmente, porque alguém está fazendo vista
grossa ou porque passou um decreto, por exemplo, a conta vai vir na
frente."
Fonte:
BBC News Brasil
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