quarta-feira, 29 de março de 2023

Mídia entreguista, Tio Sam e até acenos de possível volta do big stick

O adiamento da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China provocou reações diferentes.

Mesmo o motivo sendo dos mais justos, uma pneumonia, nem a chancelaria brasileira e nem a chinesa esconderam a decepção. Já no Departamento de Estado dos Estados Unidos, o Itamaraty de lá, houve até uma discreta comemoração.

Para o Brasil, a viagem de Lula à China seria, sem dúvida, o ato mais importante deste primeiro semestre do terceiro mandato e marcaria com muita ênfase a “volta do país ao mundo”, após o apagão internacional patrocinado pelos governos golpistas e entreguistas de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Estavam previstas as assinaturas de mais de 20 acordos, com as autoridades brasileiras convencidas de que a ampliação das parcerias com o gigante asiático seria um importante fator a impulsionar a nossa economia.

A China, por sua vez, ansiava pela adesão do Brasil à iniciativa da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), que já envolve 145 países, sendo 20 na América Latina e Caribe.

É importante lembrar que Brasil e China são parceiros e fundadores do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), bloco econômico que já ultrapassou o G-7, integrado pelos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá, em se tratando do PIB mundial e está à frente do nascente mundo multipolar.

A Argentina, em 2022, foi o mais recente país latino-americano a ingressar na Nova Rota da Seda, que conta ainda com 44 países africanos, 42 da Ásia, 29 da Europa e 10 da Oceania.

O ingresso do Brasil é considerado de suma importância, seja pelo peso geopolítico, seja pela urgente necessidade de capitais para ampliar e modernizar a infraestrutura de portos, ferrovias e transportes urbanos de alta velocidade, essenciais para a retomada do desenvolvimento.

A ida à China seria a terceira viagem internacional de Lula neste novo mandato, que já esteve na Argentina (com um deslocamento rápido também ao Uruguai) e nos Estados Unidos, deixando claro que suas prioridades externas envolvem tanto a América Latina e o Caribe, quanto o bom relacionamento com os Estados Unidos e a China.

Apesar disso, o governo de Joe Biden não está satisfeito.

O contínuo e acelerado desenvolvimento econômico chinês fez com que Washington acendesse a luz vermelha, sobretudo diante da possibilidade – tida por muitos como certa – de ainda nesta década a China superar os Estados Unidos em todos os aspectos, se transformando na maior potência mundial.

O que deveria ser óbvio em se tratando de um país soberano e que retorna à cena internacional, como o Brasil, está se transformando em verdadeiro cavalo de batalha.

A chamada de capa do jornal O Globo, na quinta-feira (23/3) ao assinalar que “a agenda de Lula na China pode gerar ruído com os Estados Unidos” aponta para possíveis problemas com a Casa Branca e o governo Biden.

Notório porta-voz dos interesses dos Estados Unidos, como de resto toda a mídia corporativa brasileira, o jornal dos irmãos Marinho cumpre o lamentável e subserviente papel de pressionar Lula a se manter restrito à esfera de influência do Tio Sam.

O que a mídia corporativa brasileira parece não ter se dado conta é de que, nessa terceira década do século XXI, o mundo não guarda mais semelhança com aquele da “guerra fria”, que emergiu no pós-Segunda Guerra Mundial.

Da mesma forma que não tem mais semelhança com o que prevaleceu entre 1991 e 2010, quando, após o fim da URSS, os Estados Unidos se transformaram em única superpotência.

Foi no governo Obama que a ficha dos Estados Unidos caiu. Tanto que, de lá para cá, seus sucessores, Trump e Biden, não têm feito outra coisa a não ser procurar recompor, não importando os meios, o poderio que tinham, em especial na América Latina, que sempre consideraram seu quintal.

O governo dos Estados Unidos – seja ele democrata ou republicano – não raciocina em termos de efetivas parcerias.

Ele se acostumou a mandar e a ser obedecido e tem muita dificuldade em relacionar-se de outra forma com os integrantes da comunidade internacional, em especial com os países ao sul do rio Grande.

Mesmo quando fala em democracia, nunca abre mão de deixar à postos o big stick, aquele grande porrete lançado pela “diplomacia” do presidente Theodore Roosevelt Jr.

Presidente dos Estados Unidos entre 1901 e 1909, Roosevelt Jr. apregoava que o seu país deveria exercer a política externa como forma de deter as intervenções europeias no continente americano. Era a maneira que encontrou para garantir a “América para os americanos”, essência da Doutrina Monroe, de 1823.

O termo big stick foi tomado emprestado por Roosevelt Jr de um provérbio africano: “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete”, deixando claro que o poder para retaliar estava sempre disponível, caso seja necessário.

Enquanto isso, a China, que possui trajetória histórica diferente, vem se revelando um país voltado para a cooperação e o desenvolvimento no que se refere às relações comerciais.

Apesar de todo o interesse demonstrado por Biden em receber Lula até antes da posse, a ida do presidente brasileiro aos Estados Unidos, no início de fevereiro, não resultou em atos concretos.

Mesmo colocando-se como defensor do meio ambiente e ao lado dos que luta pela preservação da floresta Amazônica, o valor de UR$ 50 milhões, destinado pela Casa Branca ao Fundo Amazônico, chegou a causar vergonha. Tanto que diplomatas brasileiros prefeririam que ele não constasse do documento final entre os dois países.

Basta lembrar que só a Ucrânia, neste um ano de guerra, já recebeu 200 vezes mais recursos em ajuda das potências ocidentais.

Foram muitas, no passado, as tentativas do Brasil sensibilizar a Casa Branca para a necessidade de parcerias visando o desenvolvimento do continente.

Dentre elas se destaca a Operação Pan-Americana, proposta por Juscelino Kubitschek, no final dos anos 1950, que tentou buscar o apoio dos Estados Unidos para o combate ao atraso na região.

Formalmente a Casa Branca aderiu, mas transformou a proposta de JK em outro projeto, a Aliança para o Progresso, que visava apenas o combate ao comunismo.

É importante lembrar que, após a vitória da Revolução Cubana, em 1959, a política dos Estados Unidos para a América Latina pautou-se apenas pelo obsessivo combate ao comunismo.

Mais recentemente, em meados dos anos 1990, a Casa Branca tentou, outra vez, submeter a América Latina aos seus interesses, com a proposta da criação da Área de Livre Comercia das Américas (ALCA), que foi rejeitada pela maioria esmagadora dos países.

Se tivesse sido aceita, ela simplesmente eliminaria a indústria local, com os países latino-americanos sendo transformados em mercados cativos para os produtos do “grande irmão do Norte”.

É por isso que a Nova Rota da Seda tem feito sucesso.

Ao entender as relações internacionais como uma fórmula em que todos devem ganhar, a China tem conseguido que a maioria dos países adira ao seu projeto de desenvolvimento global.

Os Estados Unidos poderiam fazer algo semelhante, mas, pelo visto, querem apenas manter o mando que historicamente os caracteriza.

Foi nos governos petistas que a relação do Brasil no mundo mudou de patamar.

Além do apoio à criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), visando integrar a América do Sul, o Brasil esteve na linha de frente da criação do BRICS, deixando nítido que pretendia também influir na cena global.

Como se sabe, a descoberta do pré-sal, possivelmente a maior reserva de petróleo do século XXI, e o ingresso no BRICS estão na raiz do golpe patrocinado pelos Estados Unidos, que derrubou a então presidenta Dilma Rousseff, criou a fraudulenta Operação Lava Jato, e colocou Lula na prisão, por 580 dias, sem quaisquer provas de que tenha cometido crime.

O que a Casa Branca não imaginava é que Lula conseguiria dar a volta por cima e retornar à presidência da República.

O contexto mundial neste início de terceiro governo Lula, no entanto, não deixa de ser bastante desafiador. Se, por um lado, o mundo multipolar já é realidade, não se pode perder de vista que nenhuma potência aceitou o declínio de forma pacífica.

Antes da derrocada, por exemplo, o Império Romano patrocinou inúmeras guerras. O mesmo pode ser dito em relação à França, Inglaterra e, agora, aos Estados Unidos.

A guerra na Ucrânia, na realidade um conflito por procuração entre os Estados Unidos/OTAN e a Rússia, talvez seja, nos dias atuais, o melhor exemplo.

A Casa Branca não aceitou que a Rússia se transformasse em principal fornecedor de petróleo e gás para a Europa, através do oleoduto Nord Stream.

Considerava que seria ampliar demais o poder da Rússia sobre o velho continente, sem falar que queria substituir a Rússia na venda desse petróleo e gás.

Como sempre, o interesse do Tio Sam falava mais alto.

O resultado é conhecido: a Europa foi jogada numa guerra, cujos objetivos são tentar derrotar a Rússia, submeter a própria Europa aos seus interesses e abrir caminho para o enfrentamento direto com a China.

Vale observar que a mídia brasileira, tão preocupada em servir aos seus senhores em Washington, continua omitindo do seu “respeitável público” que um dos mais importantes jornalistas investigativos dos Estados Unidos, Seymour Hersh, em reportagem independente publicada em 8 de fevereiro, responsabilizou Biden e os serviços secretos dos Estados Unidos pela sabotagem que destruiu o gasoduto Nord Strem2.

Destruição que obrigou os europeus, em especial a Alemanha, a comprar gás dos Estados Unidos, pagando cinco vezes mais caro.

Os Estados Unidos se valem de todo tipo de ação quando consideram que seus interesses estão em jogo.

Detalhe: até o momento Biden não refutou, com dados, o minucioso relato apresentado por Hersh.

Não é novidade para ninguém que a guerra híbrida dos Estados Unidos contra a China já é realidade.

É neste delicado cenário que o governo Lula precisa se mover.

Não é mais possível que um país que, há 50 anos, apresentava um grau de desenvolvimento superior ao da China, tenha ficado tão para trás.

Mais ainda: em 2010, no final do segundo governo Lula, a pauta de exportação do Brasil para a China incluía a venda de aeronaves da Embraer.

Pauta que, nos últimos anos, regrediu ao mero fornecimento de commodities, nome pomposo para a exportação de produtos primários como soja e minério de ferro.

Para se desenvolver e enfrentar as desigualdades que marcam o Brasil, as parcerias com a China são muito bem-vindas.

Se os Estados Unidos quiserem disputar o Brasil, ótimo! Basta oferecer parcerias que atendam aos nossos interesses, como a China está fazendo.

Mas não. Os Estados Unidos não têm interesse no nosso desenvolvimento — não querem nenhum país lhes fazendo sombra no continente — e ainda tentam sabotar.

A notícia/advertência dos irmãos Marinho sobre agenda do Brasil com a China gerar ruído nos Estados Unidos foi antecedida por reportagem publicada pela britânica BBC, na terça-feira (21/3).

Sob o pretexto de abordar a preocupação do governo Biden com a ida de Lula à China, a publicação informa que a comissão de relações exteriores do Senado dos Estados Unidos convidou autoridades da Casa Branca para uma discussão sobre o “futuro das relações entre os Estados Unidos e o Brasil”.

Curiosamente, é a primeira vez em anos que o Legislativo estadunidense toma tal iniciativa.

Na audiência, congressistas republicanos e democratas, além de membros do Executivo, expressaram “mal-estar” com a aproximação entre Brasil e China.

Em outra reportagem, a BBC revelou “estranheza” com o fato de empresários que foram denunciados pela Operação Lava Jato integrarem a comitiva do presidente Lula na viagem à China.

Sem Lula, que viajaria no dia seguinte, parte da comitiva de 230 pessoas seguiu para a China no último sábado e as agendas envolvendo questões ligadas ao agronegócio foram mantidas.

Elas estão sob a responsabilidade do ministro da Agricultura, Carlos Fávero, que, ao discursar na abertura do encontro, deixou claro a importância da China para o Brasil: “a China é o principal destino das exportações agropecuárias brasileiras”.

Indo além, Fávero enfatizou a importância de Brasil e China reatarem relações amistosas, principalmente depois do esfriamento patrocinado pelo governo Bolsonaro e por seu chanceler, Ernesto Araújo.

O governo dos Estados Unidos, como se sabe, não pensa da mesma forma.

Para Biden, um governo como Bolsonaro, aliado de Trump, não é bom, mas em termos de economia, um presidente entreguista e subserviente aos ditames de Washington tinha total vantagem.

De pouco tem adiantado as explicações do assessor especial da presidência da República, Celso Amorim, ex-chanceler de Lula nos mandatos anteriores, de que o Brasil não vê o mundo dividido entre Estados Unidos e China e que por isso não tem vetos para negociar com os chineses, especialmente sobre semicondutores, um dos motivos do conflito entre os dois países.

Amorim enfatiza que o Brasil não tem nenhuma preferência por uma fábrica de semicondutores chinesa, argumentando, por outro lado, que se os chineses oferecerem boas condições, não há por que recusar.

Indo além afirma que se os Estados Unidos oferecerem melhores condições do que os chineses, a escolha do Brasil será pelos Estados Unidos.

A fala de Amorim retrata, com exatidão, o posicionamento do governo Lula. Mas, como no passado, os Estados Unidos não queriam e continuam não admitindo um país grande, forte e desenvolvido na região.

Dito de outra forma está de volta a velha e manjada tentativa de ingerência dos Estados Unidos na vida do governo brasileiro.

Inglaterra e Estados Unidos, como se sabe, são irmãos siameses em termos de política externa e o que um não quer dizer diretamente, o outro diz.

Na citada reportagem da BBC, é perguntado se “o governo Biden está fazendo o suficiente para desencorajar países como Brasil a buscarem investimentos e comércio com a China”.

A tal reportagem menciona ainda um senador republicano que teria lembrado a Doutrina Monroe para “alertar a China contra interferência no Hemisfério Ocidental”.

Diante desse quadro, começa a fazer sentido aquela aparentemente estapafúrdia pergunta, na pesquisa IPEC, divulgada na semana que passou, sobre o temor do comunismo no Brasil. Para 44% dos ouvidos, o presidente Lula pode implementar um regime comunista no país.

Isso mesmo o país não estando vivendo nenhuma revolução e Lula ser um conciliador e líder socialdemocrata! Detalhe: a esmagadora maioria dos ouvidos não sabe sequer o que é comunismo.

O discurso sobre a existência do inimigo comunista sempre foi utilizado pelos Estados Unidos e aliados para impedir o desenvolvimento do Brasil.

Foi por causa de um suposto comunismo que o Tio Sam apoiou o golpe militar de 1964, que mergulhou o país numa noite que durou 21 anos.

Foi temendo o desenvolvimento brasileiro que a Operação Lava Jato, apoiada pela CIA, FBI, Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) e “deep state” destruíram as empreiteiras brasileiras, a indústria naval e jogaram o país na crise em que ainda se encontra.

Há poucos meses, uma das mais altas autoridades militares dos Estados Unidos, se referindo à América Latina, disse, com todas as letras, que os recursos minerais na região são considerados estratégicos para o seu país. Fala que, obviamente, diz muito sobre a maneira que o Tio Sam pensa e continua agindo em relação a estes países.

A viagem que Lula desmarcou obviamente desagradava em muito ao governo Biden, como igualmente desagradou o fato de Dilma Rousseff ter assumido a presidência do Banco dos BRICS, o NBD.

A expectativa é de que essa viagem seja remarcada o mais rápido possível, apesar das complicadas agendas que tanto Lula quanto Xi Jinping têm pela frente nos próximos meses.

Afinal, se Lula precisa recuperar o tempo perdido, a mídia entreguista e seus patrões nos Estados Unidos e na Inglaterra já enviam recados, advertências e até acenos de uma possível volta do big stick.

Haja canalhice!

 

Fonte: Por Angela Carrato, em Viomundo

 

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