Mídia entreguista,
Tio Sam e até acenos de possível volta do big stick
O
adiamento da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à China provocou
reações diferentes.
Mesmo
o motivo sendo dos mais justos, uma pneumonia, nem a chancelaria brasileira e
nem a chinesa esconderam a decepção. Já no Departamento de Estado dos Estados
Unidos, o Itamaraty de lá, houve até uma discreta comemoração.
Para
o Brasil, a viagem de Lula à China seria, sem dúvida, o ato mais importante
deste primeiro semestre do terceiro mandato e marcaria com muita ênfase a
“volta do país ao mundo”, após o apagão internacional patrocinado pelos
governos golpistas e entreguistas de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Estavam
previstas as assinaturas de mais de 20 acordos, com as autoridades brasileiras
convencidas de que a ampliação das parcerias com o gigante asiático seria um
importante fator a impulsionar a nossa economia.
A
China, por sua vez, ansiava pela adesão do Brasil à iniciativa da Nova Rota da
Seda (Belt and Road Initiative), que já envolve 145 países, sendo 20 na América
Latina e Caribe.
É
importante lembrar que Brasil e China são parceiros e fundadores do BRICS
(Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), bloco econômico que já
ultrapassou o G-7, integrado pelos Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino
Unido, França, Itália e Canadá, em se tratando do PIB mundial e está à frente
do nascente mundo multipolar.
A
Argentina, em 2022, foi o mais recente país latino-americano a ingressar na
Nova Rota da Seda, que conta ainda com 44 países africanos, 42 da Ásia, 29 da
Europa e 10 da Oceania.
O
ingresso do Brasil é considerado de suma importância, seja pelo peso
geopolítico, seja pela urgente necessidade de capitais para ampliar e
modernizar a infraestrutura de portos, ferrovias e transportes urbanos de alta
velocidade, essenciais para a retomada do desenvolvimento.
A
ida à China seria a terceira viagem internacional de Lula neste novo mandato,
que já esteve na Argentina (com um deslocamento rápido também ao Uruguai) e nos
Estados Unidos, deixando claro que suas prioridades externas envolvem tanto a
América Latina e o Caribe, quanto o bom relacionamento com os Estados Unidos e
a China.
Apesar
disso, o governo de Joe Biden não está satisfeito.
O
contínuo e acelerado desenvolvimento econômico chinês fez com que Washington
acendesse a luz vermelha, sobretudo diante da possibilidade – tida por muitos
como certa – de ainda nesta década a China superar os Estados Unidos em todos
os aspectos, se transformando na maior potência mundial.
O
que deveria ser óbvio em se tratando de um país soberano e que retorna à cena
internacional, como o Brasil, está se transformando em verdadeiro cavalo de
batalha.
A
chamada de capa do jornal O Globo, na quinta-feira (23/3) ao assinalar que “a
agenda de Lula na China pode gerar ruído com os Estados Unidos” aponta para
possíveis problemas com a Casa Branca e o governo Biden.
Notório
porta-voz dos interesses dos Estados Unidos, como de resto toda a mídia
corporativa brasileira, o jornal dos irmãos Marinho cumpre o lamentável e
subserviente papel de pressionar Lula a se manter restrito à esfera de
influência do Tio Sam.
O
que a mídia corporativa brasileira parece não ter se dado conta é de que, nessa
terceira década do século XXI, o mundo não guarda mais semelhança com aquele da
“guerra fria”, que emergiu no pós-Segunda Guerra Mundial.
Da
mesma forma que não tem mais semelhança com o que prevaleceu entre 1991 e 2010,
quando, após o fim da URSS, os Estados Unidos se transformaram em única
superpotência.
Foi
no governo Obama que a ficha dos Estados Unidos caiu. Tanto que, de lá para cá,
seus sucessores, Trump e Biden, não têm feito outra coisa a não ser procurar
recompor, não importando os meios, o poderio que tinham, em especial na América
Latina, que sempre consideraram seu quintal.
O
governo dos Estados Unidos – seja ele democrata ou republicano – não raciocina
em termos de efetivas parcerias.
Ele
se acostumou a mandar e a ser obedecido e tem muita dificuldade em
relacionar-se de outra forma com os integrantes da comunidade internacional, em
especial com os países ao sul do rio Grande.
Mesmo
quando fala em democracia, nunca abre mão de deixar à postos o big stick,
aquele grande porrete lançado pela “diplomacia” do presidente Theodore
Roosevelt Jr.
Presidente
dos Estados Unidos entre 1901 e 1909, Roosevelt Jr. apregoava que o seu país
deveria exercer a política externa como forma de deter as intervenções
europeias no continente americano. Era a maneira que encontrou para garantir a
“América para os americanos”, essência da Doutrina Monroe, de 1823.
O
termo big stick foi tomado emprestado por Roosevelt Jr de um provérbio
africano: “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete”, deixando claro
que o poder para retaliar estava sempre disponível, caso seja necessário.
Enquanto
isso, a China, que possui trajetória histórica diferente, vem se revelando um
país voltado para a cooperação e o desenvolvimento no que se refere às relações
comerciais.
Apesar
de todo o interesse demonstrado por Biden em receber Lula até antes da posse, a
ida do presidente brasileiro aos Estados Unidos, no início de fevereiro, não
resultou em atos concretos.
Mesmo
colocando-se como defensor do meio ambiente e ao lado dos que luta pela
preservação da floresta Amazônica, o valor de UR$ 50 milhões, destinado pela
Casa Branca ao Fundo Amazônico, chegou a causar vergonha. Tanto que diplomatas
brasileiros prefeririam que ele não constasse do documento final entre os dois
países.
Basta
lembrar que só a Ucrânia, neste um ano de guerra, já recebeu 200 vezes mais
recursos em ajuda das potências ocidentais.
Foram
muitas, no passado, as tentativas do Brasil sensibilizar a Casa Branca para a
necessidade de parcerias visando o desenvolvimento do continente.
Dentre
elas se destaca a Operação Pan-Americana, proposta por Juscelino Kubitschek, no
final dos anos 1950, que tentou buscar o apoio dos Estados Unidos para o
combate ao atraso na região.
Formalmente
a Casa Branca aderiu, mas transformou a proposta de JK em outro projeto, a
Aliança para o Progresso, que visava apenas o combate ao comunismo.
É
importante lembrar que, após a vitória da Revolução Cubana, em 1959, a política
dos Estados Unidos para a América Latina pautou-se apenas pelo obsessivo
combate ao comunismo.
Mais
recentemente, em meados dos anos 1990, a Casa Branca tentou, outra vez,
submeter a América Latina aos seus interesses, com a proposta da criação da
Área de Livre Comercia das Américas (ALCA), que foi rejeitada pela maioria
esmagadora dos países.
Se
tivesse sido aceita, ela simplesmente eliminaria a indústria local, com os
países latino-americanos sendo transformados em mercados cativos para os
produtos do “grande irmão do Norte”.
É
por isso que a Nova Rota da Seda tem feito sucesso.
Ao
entender as relações internacionais como uma fórmula em que todos devem ganhar,
a China tem conseguido que a maioria dos países adira ao seu projeto de
desenvolvimento global.
Os
Estados Unidos poderiam fazer algo semelhante, mas, pelo visto, querem apenas
manter o mando que historicamente os caracteriza.
Foi
nos governos petistas que a relação do Brasil no mundo mudou de patamar.
Além
do apoio à criação da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), visando
integrar a América do Sul, o Brasil esteve na linha de frente da criação do
BRICS, deixando nítido que pretendia também influir na cena global.
Como
se sabe, a descoberta do pré-sal, possivelmente a maior reserva de petróleo do
século XXI, e o ingresso no BRICS estão na raiz do golpe patrocinado pelos
Estados Unidos, que derrubou a então presidenta Dilma Rousseff, criou a
fraudulenta Operação Lava Jato, e colocou Lula na prisão, por 580 dias, sem
quaisquer provas de que tenha cometido crime.
O
que a Casa Branca não imaginava é que Lula conseguiria dar a volta por cima e
retornar à presidência da República.
O
contexto mundial neste início de terceiro governo Lula, no entanto, não deixa
de ser bastante desafiador. Se, por um lado, o mundo multipolar já é realidade,
não se pode perder de vista que nenhuma potência aceitou o declínio de forma
pacífica.
Antes
da derrocada, por exemplo, o Império Romano patrocinou inúmeras guerras. O
mesmo pode ser dito em relação à França, Inglaterra e, agora, aos Estados
Unidos.
A
guerra na Ucrânia, na realidade um conflito por procuração entre os Estados
Unidos/OTAN e a Rússia, talvez seja, nos dias atuais, o melhor exemplo.
A
Casa Branca não aceitou que a Rússia se transformasse em principal fornecedor
de petróleo e gás para a Europa, através do oleoduto Nord Stream.
Considerava
que seria ampliar demais o poder da Rússia sobre o velho continente, sem falar
que queria substituir a Rússia na venda desse petróleo e gás.
Como
sempre, o interesse do Tio Sam falava mais alto.
O
resultado é conhecido: a Europa foi jogada numa guerra, cujos objetivos são
tentar derrotar a Rússia, submeter a própria Europa aos seus interesses e abrir
caminho para o enfrentamento direto com a China.
Vale
observar que a mídia brasileira, tão preocupada em servir aos seus senhores em
Washington, continua omitindo do seu “respeitável público” que um dos mais
importantes jornalistas investigativos dos Estados Unidos, Seymour Hersh, em
reportagem independente publicada em 8 de fevereiro, responsabilizou Biden e os
serviços secretos dos Estados Unidos pela sabotagem que destruiu o gasoduto
Nord Strem2.
Destruição
que obrigou os europeus, em especial a Alemanha, a comprar gás dos Estados
Unidos, pagando cinco vezes mais caro.
Os
Estados Unidos se valem de todo tipo de ação quando consideram que seus
interesses estão em jogo.
Detalhe:
até o momento Biden não refutou, com dados, o minucioso relato apresentado por
Hersh.
Não
é novidade para ninguém que a guerra híbrida dos Estados Unidos contra a China
já é realidade.
É
neste delicado cenário que o governo Lula precisa se mover.
Não
é mais possível que um país que, há 50 anos, apresentava um grau de
desenvolvimento superior ao da China, tenha ficado tão para trás.
Mais
ainda: em 2010, no final do segundo governo Lula, a pauta de exportação do
Brasil para a China incluía a venda de aeronaves da Embraer.
Pauta
que, nos últimos anos, regrediu ao mero fornecimento de commodities, nome
pomposo para a exportação de produtos primários como soja e minério de ferro.
Para
se desenvolver e enfrentar as desigualdades que marcam o Brasil, as parcerias
com a China são muito bem-vindas.
Se
os Estados Unidos quiserem disputar o Brasil, ótimo! Basta oferecer parcerias
que atendam aos nossos interesses, como a China está fazendo.
Mas
não. Os Estados Unidos não têm interesse no nosso desenvolvimento — não querem
nenhum país lhes fazendo sombra no continente — e ainda tentam sabotar.
A
notícia/advertência dos irmãos Marinho sobre agenda do Brasil com a China gerar
ruído nos Estados Unidos foi antecedida por reportagem publicada pela britânica
BBC, na terça-feira (21/3).
Sob
o pretexto de abordar a preocupação do governo Biden com a ida de Lula à China,
a publicação informa que a comissão de relações exteriores do Senado dos
Estados Unidos convidou autoridades da Casa Branca para uma discussão sobre o
“futuro das relações entre os Estados Unidos e o Brasil”.
Curiosamente,
é a primeira vez em anos que o Legislativo estadunidense toma tal iniciativa.
Na
audiência, congressistas republicanos e democratas, além de membros do
Executivo, expressaram “mal-estar” com a aproximação entre Brasil e China.
Em
outra reportagem, a BBC revelou “estranheza” com o fato de empresários que
foram denunciados pela Operação Lava Jato integrarem a comitiva do presidente
Lula na viagem à China.
Sem
Lula, que viajaria no dia seguinte, parte da comitiva de 230 pessoas seguiu
para a China no último sábado e as agendas envolvendo questões ligadas ao
agronegócio foram mantidas.
Elas
estão sob a responsabilidade do ministro da Agricultura, Carlos Fávero, que, ao
discursar na abertura do encontro, deixou claro a importância da China para o
Brasil: “a China é o principal destino das exportações agropecuárias
brasileiras”.
Indo
além, Fávero enfatizou a importância de Brasil e China reatarem relações
amistosas, principalmente depois do esfriamento patrocinado pelo governo
Bolsonaro e por seu chanceler, Ernesto Araújo.
O
governo dos Estados Unidos, como se sabe, não pensa da mesma forma.
Para
Biden, um governo como Bolsonaro, aliado de Trump, não é bom, mas em termos de
economia, um presidente entreguista e subserviente aos ditames de Washington
tinha total vantagem.
De
pouco tem adiantado as explicações do assessor especial da presidência da
República, Celso Amorim, ex-chanceler de Lula nos mandatos anteriores, de que o
Brasil não vê o mundo dividido entre Estados Unidos e China e que por isso não
tem vetos para negociar com os chineses, especialmente sobre semicondutores, um
dos motivos do conflito entre os dois países.
Amorim
enfatiza que o Brasil não tem nenhuma preferência por uma fábrica de
semicondutores chinesa, argumentando, por outro lado, que se os chineses
oferecerem boas condições, não há por que recusar.
Indo
além afirma que se os Estados Unidos oferecerem melhores condições do que os
chineses, a escolha do Brasil será pelos Estados Unidos.
A
fala de Amorim retrata, com exatidão, o posicionamento do governo Lula. Mas,
como no passado, os Estados Unidos não queriam e continuam não admitindo um
país grande, forte e desenvolvido na região.
Dito
de outra forma está de volta a velha e manjada tentativa de ingerência dos
Estados Unidos na vida do governo brasileiro.
Inglaterra
e Estados Unidos, como se sabe, são irmãos siameses em termos de política externa
e o que um não quer dizer diretamente, o outro diz.
Na
citada reportagem da BBC, é perguntado se “o governo Biden está fazendo o
suficiente para desencorajar países como Brasil a buscarem investimentos e
comércio com a China”.
A
tal reportagem menciona ainda um senador republicano que teria lembrado a
Doutrina Monroe para “alertar a China contra interferência no Hemisfério
Ocidental”.
Diante
desse quadro, começa a fazer sentido aquela aparentemente estapafúrdia
pergunta, na pesquisa IPEC, divulgada na semana que passou, sobre o temor do
comunismo no Brasil. Para 44% dos ouvidos, o presidente Lula pode implementar
um regime comunista no país.
Isso
mesmo o país não estando vivendo nenhuma revolução e Lula ser um conciliador e
líder socialdemocrata! Detalhe: a esmagadora maioria dos ouvidos não sabe
sequer o que é comunismo.
O
discurso sobre a existência do inimigo comunista sempre foi utilizado pelos
Estados Unidos e aliados para impedir o desenvolvimento do Brasil.
Foi
por causa de um suposto comunismo que o Tio Sam apoiou o golpe militar de 1964,
que mergulhou o país numa noite que durou 21 anos.
Foi
temendo o desenvolvimento brasileiro que a Operação Lava Jato, apoiada pela
CIA, FBI, Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) e “deep state”
destruíram as empreiteiras brasileiras, a indústria naval e jogaram o país na
crise em que ainda se encontra.
Há
poucos meses, uma das mais altas autoridades militares dos Estados Unidos, se
referindo à América Latina, disse, com todas as letras, que os recursos minerais
na região são considerados estratégicos para o seu país. Fala que, obviamente,
diz muito sobre a maneira que o Tio Sam pensa e continua agindo em relação a
estes países.
A
viagem que Lula desmarcou obviamente desagradava em muito ao governo Biden, como
igualmente desagradou o fato de Dilma Rousseff ter assumido a presidência do
Banco dos BRICS, o NBD.
A
expectativa é de que essa viagem seja remarcada o mais rápido possível, apesar
das complicadas agendas que tanto Lula quanto Xi Jinping têm pela frente nos
próximos meses.
Afinal,
se Lula precisa recuperar o tempo perdido, a mídia entreguista e seus patrões
nos Estados Unidos e na Inglaterra já enviam recados, advertências e até acenos
de uma possível volta do big stick.
Haja
canalhice!
Fonte:
Por Angela Carrato, em Viomundo
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