Parente próximo
comete 8 em cada 10 casos de violência contra crianças de até 6 anos no Brasil,
diz pesquisa
O
Brasil registra 673 casos de violência contra crianças de até 6 anos por dia ou
28 a cada hora, e 84% dessas agressões têm pais, padrastos, madrastas ou avós como
suspeitos, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, analisados
em estudo produzido pelo comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância
(NCPI).
Ainda
segundo o estudo, crianças até 13 anos representam a maior parte das vítimas de
estupro no Brasil (61,3% do total de casos), segundo dados do Anuário
Brasileiros de Segurança Pública. E a maior parte das crianças vítimas de morte
violenta intencional são meninos (59%) e crianças negras de ambos os gêneros
(66%).
“A
violência contra a criança no ambiente familiar tem impacto negativo a curto,
médio e longo prazos na saúde física e mental das vítimas e pode levar a um
ciclo intergeracional de violência — quando a vítima de violência na infância
repete com os filhos os abusos que vivenciou”, alerta Maria Beatriz Linhares,
professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo (FMRP-USP) e coordenadora do estudo.
Para
a pesquisadora, a solução do problema exige uma estratégia integrada de
políticas públicas, envolvendo as áreas de saúde, educação, proteção social e
Justiça.
“Não
podemos esperar chegar aos casos extremados para tomar providências. É preciso
acabar com a naturalização da violência contra a criança, temos que progredir”,
diz Linhares, que defende ainda a adoção de programas voltados para a formação
dos pais contra a violência na infância.
Responsável
pelo estudo, o NCPI é composto por sete organizações: Center on the Developing
Child e David Rockefeller Center for Latin American Studies (ambos da Universidade
Harvard), Faculdade de Medicina da USP, Fundação Bernard van Leer, Fundação
Maria Cecilia Souto Vidigal, Insper e Porticus América Latina.
·
A violência na primeira infância em números
A
primeira infância vai do nascimento aos 6 anos da criança, uma fase
determinante para definir habilidades afetivas, sociais e cognitivas – que
dizem respeito à nossa capacidade de compreender o mundo ao redor e responder
adequadamente aos estímulos recebidos.
Assim,
a violência nessa fase tem impactos no desenvolvimento e comportamento presente
e futuro das crianças, destacam os pesquisadores do NCPI.
Para
mapear essa violência, eles analisaram dados do canal de denúncias Disque 100,
compilados pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, atualmente ligada ao
Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Também olharam para números do
Anuário Brasileiros de Segurança Pública 2022, produzidos pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública.
Segundo
os dados do Disque 100, em 2021, foram registradas 118.710 violações de direitos
de crianças de 0 a 6 anos no Brasil. Em 2022, apenas no primeiro semestre,
foram 122.823 casos — uma média de 673 violências registradas por dia, ou 28
casos a cada hora.
Para
os pesquisadores, o salto no número de casos registrados em 2022 pode ser um sintoma
da subnotificação que marcou o período da pandemia de covid-19.
“Durante
a pandemia, ocorreram mais violências, mas não houve notificação compatível.
Isso porque muitos serviços foram fechados e muitas das notificações são feitas
pelos serviços de saúde, pelas escolas. Então o isolamento das crianças em casa
pode ter impactado nessa subnotificação”, diz Linhares.
Na
maioria dos casos, os agressores eram familiares das crianças. No primeiro
semestre de 2022, os suspeitos de violência em 57% dos casos eram as mães,
seguidas pelos pais (18%), padrastos e madrastas (5%), além de avôs e avós
(4%).
A
professora da USP observa, porém, que é preciso olhar com cautela para o fato
de que as mães costumam ser as principais suspeitas de agressão contra crianças
pequenas.
Isso
porque as crianças costumam passar mais tempo sob o cuidado delas e os pais
muitas vezes são figuras ausentes. Então é preciso ponderar os dados
considerando essa disparidade no tempo de cuidado.
“A
violência intrafamiliar é um fato”, afirma Linhares. “Temos um grande fator de
risco e ameaça ao desenvolvimento [da criança], que é o próprio cuidador, que
deveria proteger, estimular, cuidar física e afetivamente, ser muitas vezes o
perpetrador da violência”, observa a pesquisadora
“Às
vezes você têm famílias com uma série de fatores de risco, desde o desemprego,
abuso de drogas, psicopatologias, depressão materna, questões de estresse.
Então há uma série de fatores que levam ao que chamamos dessa ‘parentalidade
negativa’ — mas esses fatores não justificam as agressões. Nada justifica a
violência contra a crianças”, enfatiza a especialista.
·
Os principais tipos de violência contra crianças
Ainda
conforme os dados do Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos, maus-tratos
(15.127 casos), insubsistência afetiva (13.980 casos), exposição ao risco de
saúde (12.636 casos) e tortura psíquica (11.351 casos) foram os principais
tipos de violência registrados contra as crianças de 0 a 6 anos no primeiro
semestre de 2022.
Olhando
para os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, um outro número chama
a atenção: 61,3% dos estupros no Brasil são cometidos contra crianças de 0 a 13
anos – o que é considerado estupro de vulnerável, já que a criança não tem
maturidade para consentir.
Do
total de estupros de vulneráveis registrados no Brasil em 2021, 19,5% das
vítimas tinham entre 5 e 9 anos e 10,5%, entre 0 e 4 anos.
Ainda
conforme o Anuário, houve 2.555 mortes violentas intencionais de crianças e
adolescentes em 2021 — incluindo crimes de homicídio culposo, feminicídio,
latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte decorrente de intervenção
policial.
Entre
as crianças de 0 a 11 anos vítima de mortes violentas intencionais, 59% eram
meninos e 41%, meninas. Por raça ou cor, 66% das crianças eram negras (soma de
pretos e pardos) e 31% brancas.
·
Os efeitos da violência e como combatê-la
Maria
Beatriz Linhares explica que a violência na infância tem efeitos para a criança
e para a sociedade como um todo.
“Crianças
expostas à violência estão submetidas a situações de estresse tóxico. Isso
provoca alterações fisiológicas e psicológicas que podem interferir no
funcionamento do sistema nervoso central em áreas relacionadas à memória, ao
aprendizado, às emoções e ao sistema imunológico. Tais alterações podem trazer
prejuízos que persistem até a vida adulta, contribuindo, inclusive, para o
surgimento de doenças crônicas”, diz a professora da USP.
Além
disso, a exposição à violência pode gerar agressividade, problemas de atenção,
hipervigilância, ansiedade, depressão, problemas de adaptação escolar e
problemas psiquiátricos como fobia e estresse pós-traumático, destacam os
pesquisadores do NCPI.
Também
afeta o desempenho escolar e a sociabilidade e é um fator de risco para
criminalidade e delinquência na adolescência, observa Linhares.
Os
pesquisadores observam que não é por falta de leis que a violência contra
crianças se perpetua no Brasil. O país conta com marco regulatório extenso de
proteção à infância, que tem se renovado ao longo dos anos.
Vai
desde a Constituição de 1988, passando pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) de 1990, pela Lei da Palmada (2014), Marco Legal da Primeira
Infância (2016), Lei da Escuta Protegida (2017) e Lei Henry Borel (2021), que
tornou crime hediondo o homicídio contra menores de 14 anos.
Para
Linhares, um dos problemas no país é a morosidade da Justiça. Ela cita como
exemplo o caso do menino Bernardo Boldrini, assassinado aos 11 anos em 2014. O
autor do crime e pai da criança, Leandro Boldrini, foi condenado somente este
ano – nove anos depois do crime – a 31 anos e oito meses de prisão, após uma
primeira condenação (em 2019) ter sido anulada.
“Não
basta ter a lei, ela precisa ser aplicada”, diz Linhares.
Ela
destaca, porém, que a Justiça não basta e que o combate à violência na infância
exige uma estratégia interdisciplinar. “A assistência social, a educação, as
estratégias de saúde de família, todas têm papel importante no combate à
violência na infância”, diz a pesquisadora.
Ela
destaca ainda a importância dos chamados “programas de parentalidade”, que
ajudam a prevenir a violência aumentando “a compreensão dos cuidadores sobre o
desenvolvimento infantil” e incentivando estratégias de disciplina positiva —
isto é, não violenta ou punitiva.
Programas
do tipo, desenvolvidos em parceria com o poder público, já estão em aplicação
em 24 municípios do Ceará e em Pelotas (RS), cita a professora.
Ø
O
polêmico caso da adolescente britânica vítima de abuso acusada de terrorismo
O caso de uma adolescente que se suicidou após ser
indiciada por terrorismo no Reino Unido levantou questões sobre como o país
lida com o problema de menores envolvidos em extremismo.
Uma
investigação da BBC revelou que a menina britânica tinha sido vítima de
aliciamento e exploração sexual — e que evidências disso tinham sido
encaminhadas ao MI5, o serviço de inteligência doméstico britânico antes de seu
indiciamento.
Rhianan
Rudd, que aos 15 anos se tornara a menina mais jovem acusada de terrorismo no
Reino Unido, se matou em um abrigo para menores em maio de 2022.
A
mãe diz que os investigadores da agência MI5 deveriam ter tratado sua filha
"como uma vítima e não como uma terrorista".
Aos
14 anos, Rhianan Rudd se aproximou de grupos de extrema-direta. Sua mãe, Emily
Carter, lembra dela como uma "garota adorável" que gostava de cavalos
— mas que, de repente, começou a expressar pensamentos racistas e antissemitas.
"Se
você não tivesse cabelos loiros e olhos azuis — arianos, como dizem — ela não
queria te conhecer. Você era uma raça inferior e não deveria estar vivo",
lembra a mãe.
Ela
diz que sua filha absorvia essas visões extremistas "como uma
esponja". "Ela estava mudando, já não era mais a Rhianan", diz
Emily. "Era uma criança que se fixava em algumas coisas."
Rhianan,
que vivia em Derbyshire, na região de East Midlands, no centro-leste da
Inglaterra, tinha dificuldade em se relacionar com outras pessoas e fora
diagnosticada com autismo.
Rhianan
havia fugido de casa no passado e sua família era acompanhada pelo órgão
britânico equivalente, no Brasil, ao Conselho Tutelar. A mãe reconhece que
cometeu erros, mas que "sempre tentou fazer o melhor".
Em
setembro de 2020, Carter estava tão preocupada com a saúde mental de Rhianan
que a encaminhou para o Prevent, um programa do governo para evitar a
radicalização de jovens. A essa altura, a menina havia admitido ter baixado um
manual de fabricação de bombas na internet.
Em
um mês, Rhianan foi presa por investigadores antiterroristas e largou o
Prevent. Ela foi interrogada, fichada como suspeita de terrorismo, solta sob
fiança e não pôde mais frequentar a escola.
Há
algum tempo, ela vinha conversando com pessoas mais velhas pela internet, entre
elas um americano chamado Christopher Cook, que promove o neonazismo e tinha
crido uma célula para realizar atentados.
Evidências
mostram que o então parceiro da mãe de Rhianan também teve influência no
aliciamento de Rhianan. Emily Carter diz que não sabia de nada.
O
então parceiro, o americano Dax Mallaburn, tinha sido membro de uma gangue de
prisão supremacista branca nos Estados Unidos. Ele conheceu a mãe de Rhianan
por meio de um sistema de correspondência para prisioneiros.
Antes
mesmo de Rhianan ser presa, o relacionamento de Mallaburn com sua mãe havia
acabado e ele havia voltado para os Estados Unidos. Mas a BBC descobriu que Cook
e Mallaburn estiveram em contato, e que Cook pediu que Mallaburn ensinasse o
"caminho certo" a Rhianan.
Durante
os interrogatórios policiais, Rhianan disse que foi coagida e aliciada,
inclusive sexualmente, e que enviou imagens explícitas de si mesma para Cook. O
abuso que ela descreveu ajudou o governo a identificar o caso como sendo de
exploração infantil.
De
acordo com as leis britânicas modernas de escravidão, certos órgãos públicos,
como a polícia, são obrigados a notificar o Ministério do Interior sobre
quaisquer vítimas em potencial de exploração.
No
entanto, nos meses anteriores à acusação de Rhianan, nenhuma das organizações
envolvidas a encaminhou para a unidade especializada do governo que investiga
esses casos. E não foi por falta de informação.
A
BBC descobriu que, na época da prisão de Rhianan, o MI5 recebeu evidências
mostrando que ela havia sido explorada — inclusive sexualmente — por Cook.
Uma
investigação da agência americana FBI descobriu mensagens e imagens dos
dispositivos de Cook mostrando Rhianan sendo coagida e explorada. O FBI
entregou o material ao MI5.
Rhianan
passou mais de seis meses sob fiança aguardando uma decisão sobre se seria
indiciada. Sua mãe diz que esse período levou a um declínio na saúde mental de
Rhianan, com casos de automutilação, fuga e tentativa de suicídio. A jovem foi
transferida para um abrigo para menores.
Em
abril de 2021, mais de seis meses após ter sido presa, ela foi indiciada,
acusada de seis crimes de terrorismo por ter baixado instruções para fabricar
explosivos e armas. Os promotores alegaram que as instruções estavam ligadas a
um possível plano de atentado.
Dias
depois de ela ter sido acusada, quando advogados de defesa recém-nomeados
intervieram, o município de Derbyshire encaminhou o caso de Rhianan ao
Ministério do Interior como o de uma possível vítima de exploração.
Mas
a decisão sobre isso demorou mais de sete meses. O Ministério do Interior
concluiu que ela havia sido traficada e explorada. E no final de dezembro de
2021, a acusação de terrorismo foi suspensa.
Rhianan
faz parte de uma tendência crescente de crianças sendo investigadas pelo MI5 e
pela polícia — muitas vezes envolvidas com extremismo de direita online.
Entre
as condenações nos dois últimos estão as de um garoto da região de Cornualha
que liderou sua própria célula terrorista online aos 14 anos e um da cidade de
Darlington, preso aos 13 anos.
Os
casos envolvendo crianças são complexos. Mesmo que uma criança tenha sido
vítima de aliciamento e exploração, ela ainda pode representar um risco real de
ameaça a outras pessoas.
Poucas
crianças acusadas de crimes terroristas acabam sendo presas. O processo de
investigação, prisão e acusação pode levar vários meses e, em alguns casos, bem
mais de um ano.
O
revisor independente da legislação sobre terrorismo, Jonathan Hall, diz que em
2020 e 2021 apenas uma criança condenada por crime de terrorismo foi presa. O
especialista sugere mudanças na lei que ofereçam alternativas ao indiciamento,
como limite no uso do telefone celular, monitoramento de atividades via
software e aconselhamento por mentor.
A
mãe de Rhianan acredita que sua filha nunca deveria ter sido indiciada.
Ela
diz que a polícia "obviamente" tem que investigar e buscar
evidências, mas ela acredita que as autoridades deveriam ter lidado com tudo de
forma "completamente diferente".
"Eles
deveriam tê-la tratado como uma vítima e não como uma terrorista. Ela é uma
criança, uma criança autista. Ela deveria ter sido tratada como uma criança que
foi explorada sexualmente."
Christopher
Cook, o americano que explorou Rhianan, se declarou culpado nos EUA de uma
conspiração terrorista neonazista junto com outras pessoas para destruir uma
rede elétrica. Ele estava sob fiança aguardando sentença.
Mas
a BBC descobriu que o tribunal de Ohio só recentemente tomou conhecimento da
conduta predatória de Cook em relação a Rhianan. Sua relação com a menina
britânica não fazia parte do processo original contra ele, apesar de o FBI
saber do abuso há muito tempo. Depois que o tribunal soube da relação, Cook foi
colocado sob custódia em dezembro, antes da sentença.
Depois
que a acusação contra Rhianan foi abandonada, a jovem optou por seguir morando
no abrigo em Nottinghamshire e voltou a frequentar o programa Prevent.
Mas
havia sinais de que ela não estava bem.
Nas
semanas anteriores à sua morte, Rhianan pediu à mãe que a ajudasse a entrar em
contato com um extremista neonazista nos EUA. Sua mãe denunciou isso ao abrigo.
Ela diz que foi informada pelo serviço social e pela polícia que o contato com
o extremista havia sido autorizado. Mas não está claro se de fato houve esse
contato.
Sua
mãe havia alertado o município de Derbyshire sobre o risco de Rhianan tirar a
própria vida. Em e-mails para uma assistente social em 2021, ela escreveu:
"espero que ela não tente se matar quando estiver sozinha em seu
quarto."
Emily
Carter diz que ficou tão preocupada com a aparência de Rhianan dias antes da
sua morte que entrou em contato com o lar. Ela diz que alertou os funcionários
de que sua filha "ia fazer alguma coisa" e pediu que eles a
vigiassem. Mas mais tarde naquela semana, ela diz, três policiais estavam
"na minha sala me dizendo que minha filha havia morrido enforcada".
Rhianan
foi encontrada morta em maio, aos 16 anos. Haverá um inquérito sobre sua morte.
As
organizações contatadas pela BBC disseram que não poderiam comentar detalhes de
sua apuração até que o inquérito seja concluído.
Fonte:
BBC News Brasil
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